quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

O Intolerável Todes


As relações de amizades andam estremecidas por causa da política. Com a popularização das redes sociais, as pessoas acabam sabendo, meio que na marra, o que os conhecidos pensam em relação ao assunto. A trinca que antes era quase sagrada, da política, futebol e religião, hoje está exposta e banalizada. Ninguém tem mais receio de falar e criticar a posição do outro. Virtualmente, os temas são debatidos e discutidos à exaustão.

E daí é liberdade de expressão pra cá, boicote pra lá. Amizades que findam, cancelamentos que surgem, silenciamentos e até linchamentos... A impressão é que as pessoas são o que são e ponto. Estão marcadas a serem de direita, de esquerda ou qualquer outro carimbo que exista por aí.

Trago o exemplo de um amigo conservador. Por ter essa posição, ele se identifica com Jair Bolsonaro. Luta diuturnamente, em muitas frentes e batalhas campais nas redes sociais, pela permanência do atual presidente por mais um mandato. Contudo, esse meu conhecido não é um fanático.

Explico. Ele se vacinou contra a Covid-19. Está indignado com os rumos da economia nacional, com a inflação e o preço das coisas (gasolina, gás, itens da cesta básica). Ele também não tolerou o acordo com o Centrão. E tampouco atura as estripulias dos filhos 01, 02, 03 e 04.

Só que tem um detalhe. Esse meu amigo conservador não suporta o tal de todes. Ele odeia com todas as suas forças essa coisa de pronome neutro, sem gênero. Protesta. Bate-boca. Ofende. Se o tal todes virar regra da Língua Portuguesa, ele, bem provável, pegará em armas.

Pouco importa para ele se a gasolina está custando mais de R$ 7 reais o litro, o gás R$ 120 o botijão e R$ 50 o quilo da carne. Esses fatos ainda não são dignos de fazê-lo mudar de ideia em relação ao presidente. O que ele não tolera mesmo é o tal de todes.

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Artigo publicado no jornal Diário de Canoas, no dia 8 de dezembro de 2021.

domingo, 21 de novembro de 2021

Trilogia Suja de Havana - Salve-se Quem Puder

Malecón, em Havana

De novo o silêncio. Eu me concentrei no rum e na lagosta fervendo. Mas logo em seguida escutei a vizinha ao lado sapateando. Uma mulatinha linda, de uns vinte anos. Tem estilo. É puta, mas poderia ser modelo. É uma beleza. Ainda mora numa toca miserável que nem eu, mas é implacável: sem dinheiro nem olha pra gente. Às vezes, me cumprimenta, mas sem muita intimidade.

 – Bom dia, vizinho.

 – Bom dia, vizinha. Ficou até tarde na batalha, já é quase meio-dia.

 – E quem lhe disse que eu só trabalho de noite? Você é um pouquinho intrometido.

 – Olha, este seu perfume chega até aqui.

 – Bom, pode sofrer. Continua sofrendo, papito.

 – Abusada.

 – Isso é uma canção. Até mais tarde, vou dormir um pouco.

– Quando vou poder chegar mais pertinho de você, mamita? Já estou até de miolo mole.

– Quando você for um papirriqui com graniquiqui. Mas enquanto estiver na pior, nem chegue perto. Sai pra lá, sai pra lá, que esse mal pega!

– Bom, titi, pode continuar me maltratando. Durma bem.

– Tchau, papito.

– Tchau, mamita.

Entrou, fechou a porta e eu voltei para o meu fogareiro. É assim. Se você tiver dinheiro, pode, se não, foda-se. É como nos naufrágios: salve-se quem puder.

Gosto dessa mulher. Ela chegou do campo há um ano, com as mãos calosas e as unhas dos pés manchadas de terra vermelha. Diz que veio de Palma Clara. Sabe-sa lá onde diabos fica isso!

É muito desconfiada. Acha que todos vão lhe fazer mal, mas uma vez me contou uma coisa: aos doze anos largou a escola na quinta série e foi colher café para ter seu próprio dinheiro porque o pai bebia e fumava tudo o que ganhava “e em casa éramos sete irmãos comendo farinha de milho e inhame. Não sei como saímos fortes e saudáveis”, disse. Aos dezesseis viu que o café é trabalho para gente grossa e morta de fome. Uma tarde tomou seu banho, vestiu uma roupa limpa e sem se despedir de ninguém foi para a estrada e chegou a Havana. Assim, sem ter a menor ideia do que poderia ser Havana. Ouvia dizer que em Havana, sim, era possível viver bem porque havia mais dinheiro, e lá se foi. Quando me contava tudo isso, via-se força em seus olhos: “Eu sou muito bonita, papito, acha que não sei? Podem enfiar o café e a fome no rabo! Chega. Não volto para Palma Clara nunca mais na vida… Deus que me perdoe… quando minha mãe morrer vou ter que voltar porque ela é uma santa”.

Chegou assim, com uma mão na frente e outra atrás. Nos primeiros dias morou com um caminhoneiro que a trouxe de carona. Mas o largou na semana seguinte: o cara queria uma escravinha para trepar quando bem entendesse e mantê-la trancada em casa trabalhando e sempre entendiada. Mandou o sujeito à merda. Foi morar com uma vizinha. Começou a fazer programas no Malecón e em menos de um ano a roceirinha é outra pessoa. Já até fala diferente e caminha com estilo. Qualquer hora dessas ela se muda para um apartamento decente e deixa este terraço de merda. Eu gosto de gente assim. Forte. Os frouxos sempre se lamentam e choram. Os fracos acham que tudo termina hoje.

Na verdade é justamente o contrário: é hoje que tudo começa. 

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Trecho de Trilogia Suja de Havana, de Pedro Juan Gutierrez.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Fazendo Amigos

É incrível! Um homem improvisou uma barbearia dentro do mercado de hortifruti do Terminal Parobé.

Quem desviou o rosto por causa do ventinho chato do Guaíba, que trazia toda a fumaça do churrasquinho de gato nas pessoas que esperavam os ônibus na rua ao lado da estação, pode ver com clareza. 

O barbeiro revezava com uma máquina e uma tesoura. Ágil. Borrifava água. O cliente com avental e tudo. Sentado em uma caixa de frutas de madeira. 

Era quase noite. 

As boates Adega's e Encontrus estavam abertas. Os leões-de-chacará na entrada com suas caras fechadas, esperavam a chegada dos primeiros solitários. Quando, do nada, surge um tipo.  

- Ô, amigo! Desculpa incomodar. Mas é que vim de Montenegro. Dormi anteontem no albergue e hoje na rua.. 

- Cara, não tenho dinheiro - me adiantei.

- Nem 10 centavos?

- Nada mesmo.

- É que é pra cachaça. Não precisa ser muito.

Também do nada, cruza por nós um gaiato portando uma cachaça barrigudinha. Vestia uma jaqueta anos 90 de um time de futebol americano. O montenegrino me deixou sem se despedir. Seguiu o outro. Em poucos metros, os dois estavam lado a lado. Dividiam a garrafa de plástico e caminhavam pela avenida Julio de Castilhos. Provavelmente, se tornariam amigos. Afinal, ninguém faz amizade bebendo leite.

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Alugém Aí Pediu Um Manifesto? - Por Joe Sacco


Este volume reúne a maior parte das reportagens de menor extensão que fiz nos últimos anos para revistas, jornais e antologias. Sendo assim, me parece que ele exige algum tipo de saraivada introdutória para achacar todos aqueles que se opõem à legitimidade dos quadrinhos como forma eficiente de fazer jornalismo. 

Mas antes de puxar o gatilho, quem sabe a gente escute a oposição?  Afinal, as objeções podem ter algum mérito. Como responder, por exemplo, quando questionam se o desenho pode aspirar à verdade objetiva? Não é justamente da verdade objetiva que trata o jornalismo? Desenhos, por natureza, não são subjetivos? 

A resposta à última pergunta é: sim. Sempre que se apresentar jornalismo na linguagem dos quadrinhos, haverá uma tensão entre as coisas que se podem verificar, como uma declaração gravada, e as coisas que não se prestam à verificação, tais como um desenho que diz representar um episódio em particular. O desenho é interpretação mesmo quando é subserviente a uma fotografia, e costuma -se entender que as fotografias capturam literalmente um momento do mundo real. No desenho, porém, não há nada de literal. O cartunista mistura os elementos a seu bel -prazer e posiciona-os na página de acordo com seus propósitos. Não existe aquela sorte do fotógrafo que capturou uma imagem no momento certo. O cartunista “captura” seu desenho no momento que quiser. É essa abertura ou licença que torna o cartunismo uma mídia inerentemente subjetiva. 

Mas isso não põe por terra as pretensões dos cartunistas que aspiram ao jornalismo. Ainda valem as obrigações -padrão do jornalista — reportar de maneira precisa, ater-se às falas dos entrevistados, checar afirmações. O jornalista-quadrinista, porém, tem compromissos maiores. O repórter tradicional pode tranquilamente descrever um comboio da ONU como “um comboio da ONU” e seguir adiante com sua matéria. Um jornalista-quadrinista tem que desenhar o comboio, e nesse momento surgem várias questões. Como são os veículos do comboio? Como são os uniformes dos operativos da ONU? Como era a estrada? E o cenário de fundo? 

Por sorte, não há manual de estilo que diga ao jornalista-quadrinista a que ponto deve chegar em termos de detalhamento. O cartunista desenha tendo em mente a verdade essencial, não a literal, o que permite ampla variedade de interpretações e ampla variedade de estilos de desenho. Um cartunista não desenhará um caminhão da ONU da mesma forma que outro cartunista, mesmo que os dois estejam trabalhando a partir da mesma referência.

Posso apresentar aqui as minhas regras particulares no que concerne à veracidade pictórica. Tento desenhar pessoas e objetos da forma mais precisa possível, sempre que possível. No meu entender, tudo que pode ser desenhado fidedignamente tem que ser desenhado fidedignamente — e com isso quero dizer que algo desenhado deve ser facilmente identificado como a coisa real que se intenciona representar. Há desenhos, porém — particularmente cenas que ocorreram no pretérito e que eu não vi com meus próprios olhos —, nos quais sou obrigado a utilizar minha imaginação, ou, ainda, minha imaginação apoiada em pesquisas. Com isso quero dizer que tudo que eu venha a desenhar deve ter sua base nas especificações de temporalidade, lugar e situação que busco reinventar. Na terminologia cinematográfica, o cartunista é cenógrafo, figurinista e diretor de elenco, e é provável que, para executar esses papéis com destreza, ele precise fazer pesquisas em livros, em arquivos e na internet.  Quando dependo do testemunho ocular, faço perguntas pertinentemente visuais: Quantas pessoas havia lá? Onde ficava o arame farpado? As pessoas estavam de pé ou sentadas? Quero que meus leitores pelo menos orientem-se em um momento específico, mas meu objetivo maior é satisfazer uma testemunha ocular no sentido de que minha retratação desenhada represente a essência da experiência que essa testemunha teve. 

Porém, como já explicitei, dificilmente será um trabalho imaculado. Afinal, o desenho reflete a visão do cartunista como indivíduo. Não creio, porém, que esse fato proíba que um relato desenhado entre no campo do jornalismo. Creio que é possível almejar precisão no âmbito de uma obra desenhada. Em outras palavras, os fatos (um caminhão que carregava prisioneiros vindo pela estrada) e a subjetividade (como essa cena é desenhada) podem conviver juntos — uma coisa não impede a outra. Eu, pelo menos, aceito as implicações do relato subjetivo e dou preferência a destacar essas implicações. Já que é difícil (embora não impossível) me apagar de uma história, não é algo que eu costume tentar. O resultado, em termos jornalísticos, é libertador. Como sou “personagem” da minha própria obra, me atribuo licença jornalística para mostrar minhas interações com aqueles que conheço. Descobre-se muito sobre esses indivíduos a partir da representação do intercâmbio pessoal, o que a maioria dos jornalistas convencionais, infelizmente, subtrai de suas matérias. (As histórias que os jornalistas contam entre pares, na mesa do jantar, que geralmente envolvem interações similares, costumam ser mais interessantes e reveladoras do que as que entram no texto.) Apesar da impressão que alguns tentam passar, o jornalista não é uma mosquinha na parede, invisível e muda. Em campo, na apuração, a presença do jornalista quase sempre é relevante. Os jovens rebeldes erguem e brandem as armas quando a equipe de televisão começa a filmar, ou começam a se policiar quando o repórter faz perguntas contundentes. Ao admitir que estou presente na cena, minha intenção é sinalizar ao leitor que o jornalismo é um processo no qual defeitos e marcas de costura ficam aparentes, como se realizado por um ser humano — e não ciência executada friamente por um robô atrás do acrílico. 

O que nos leva à vaca sagrada do jornalismo norte -americano, a “objetividade”. Deixo claro que não tenho problemas com a palavra em si, se o significado for apenas abordar um fato sem ter pré-concepções. O problema é que não acredito que a maioria dos jornalistas consiga abordar um fato, seja qual for sua relevância, com “objetividade”. Eu, decerto, não consigo. A jornalista norte -americana que acaba de pôr os pés na pista do aeroporto afegão não se livra de imediato do ponto de vista norte -americano nem abdica de toda pré -concepção para gravar novas observações em tábula rasa. Será que ela, de uma hora para outra, vai deixar de ver os soldados norte-americanos que acompanha como compatriotas de respeito e boas intenções, que compartilham muitos de seus valores, e passará a percebê -los como instrumento de um estado-nação que opera segundo seus próprios interesses, o que na prática — em termos objetivos — eles são? Na melhor das hipóteses, ela tenta relatar suas ações e reações da forma mais sincera, nas quais quer que recaia sua simpatia. Como dizia o lendário jornalista norte -americano Edward R. Murrow: “Toda pessoa é prisioneira de sua experiência. Ninguém consegue eliminar seus preconceitos — mas tão somente reconhecê-los”. 

Outra armadilha que se promove nas escolas de jornalismo dos Estados Unidos é a fidelidade servil ao “equilíbrio”. Mas se um lado diz uma coisa e o outro diz outra, será mesmo que a verdade se encontra “em algum ponto entre os dois”? O jornalista que diz “bom, deixei os dois lados fulos da vida, então acho que estou no caminho certo” provavelmente está se enganando e, o pior, engana também o leitor. O equilíbrio não devia acobertar a preguiça. Caso haja duas ou mais versões dos fatos, o jornalista precisa não só explorar e avaliar cada declaração, mas também ir a fundo no relato contestado independente de quem o relata. Por mais que o jornalismo seja “o que eles disseram que viram”, ele também é “o que eu vi”. O jornalista deve empenhar-se em descobrir o que acontece e relatar, e não tornar a verdade neutra só porque houve distribuição igualitária de espaço. 

Fui eu que escolhi as histórias que desejo contar, e nesta seleção devem ficar claras quais são minhas afinidades. Tenho interesse sobretudo por aqueles que raramente são ouvidos, e não creio que caiba a mim equilibrar suas vozes com as apologias bem escovadas dos que detêm o poder. Os poderosos geralmente estão muito bem servidos pela mídia massiva ou pelos órgãos de propaganda ideológica. Os poderosos têm que ser citados, é claro, mas para que seus pronunciamentos possam ser avaliados diante da verdade, não para obscurecê-la. Se acredito que o poder faz as pessoas mostrarem o que têm de pior, já observei que aqueles que ficam na ponta da miséria também não são inocentes por completo, e é isso que me empenho em reportar. Creio que o jornalista britânico Robert Fisk seja quem melhor resume a equação: “Sempre digo que os repórteres devem ser neutra e imparcialmente a favor daqueles que sofrem”. 

Em resumo, a grande benesse de uma mídia inerentemente interpretativa, como é o caso dos quadrinhos, é que ela não me deixou confinado ao jornalismo tradicional. Ao tornar difícil me ausentar de uma cena, ela não me permite fazer da imparcialidade uma virtude. Para o bem ou para o mal, a mídia dos quadrinhos é inflexível, o que me leva a fazer escolhas. A meu ver, isso faz parte de sua mensagem inerente. 

Joe Sacco
Abril de 2011

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Texto de abertura do livro Reportagens (1ª edição no Brasil, em 2016), de Joe Sacco. 

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Agrippino Grieco?, perguntaram


Há uma semana, citei o crítico fluminense Agrippino Grieco (1888-1973) como o autor original da frase “Se a vida bastasse, ninguém se daria ao trabalho de convertê-la em arte” e da expressão ”profeta do passado”, consagradas por outros no futuro. “Agrippino Grieco?”, perguntaram. Sim, um dos poucos grandes wits da língua. Eis uma amostra.

“Ontem é sempre poesia. Hoje é quase sempre prosa”; “Sabe-se que um escritor está em declínio quando começa a escrever como seus imitadores”; “A ciência progride. A literatura, não. Copérnico destruiu Ptolomeu. Camões não destruiu Homero.” Sobre Machado de Assis: “Acreditava-se um humorista porque vivia de mau humor”. Sobre Coelho Neto: “Autor de o nada em dezenas de tomos”. Sobre Castro Alves: “Não foi um homem. Foi uma convulsão da natureza”

Sobre um escritor seu amigo: “Voto-lhe estima tão forte que ela resistiu até à leitura de seus livros”. Sobre um poetastro do passado: “Seu único mérito consiste em estar morto”. Sobre o escritor Carneiro Leão, eleito para a Academia: “Em geral, a Academia elege só um animal. Agora elegeu dois”. Sobre os poetas parnasianos em geral: “Leões de mármore, suntuosos e inofensivos. Seus poemas eram pretensiosos e imprestáveis, como os vidros de água colorida das farmácias, perfeitamente inúteis”.

Sobre a Semana de Arte Moderna: “Como na peça de Shakespeare, muito barulho para nada”; “Os modernistas se ajoelham diante das rodas de um Ford como os parnasianos diante das patas do Pégaso”. Sobre Chaplin: “Pouco sei de Proust, quase nada de Bergson e absolutamente nada de Einstein. Mas sei toda a alma de Carlitos, e isso me faz riquíssimo”. “Só houve um cristão: Cristo”; “Nunca me arrependi de haver atacado. Só de ter elogiado” etc.

Poucos escreveram tanto e tão bem sobre literatura no Brasil como Agrippino. Temido e famosíssimo em seu tempo, é pouco lembrado hoje. Foi seu erro: escreveu no Brasil.


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Texto de Ruy Castro, publicado na Folha de São Paulo

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Série Traduzindo a Música Gauchesca - Do Fundo da Grota

Com a série Traduzindo a Música Gauchesca, pretendo destacar algumas palavras, termos e versos de clássicos do cancioneiro Rio Grande do Sul. A fonte de pesquisa para explicá-los são dicionários voltados a esmiuçar essa língua falada no sul do país. A primeira canção a ser vertida para o português mais formal é Do Fundo da Grota, que foi composta e gravada por Baitaca (nome artístico de Antônio César Pereira Jacques), em 2002, no disco Meu Rio Grande é Deste Jeito.

Aliás, baitaca é o mesmo que maitaca, um tipo de ave, da família do papagaio. Um outro significado possível é pessoa faladeira, tagarela.

A música

Do Fundo da Grota

Fui criado na campanha / Em rancho de barro e capim / Por isso é que eu canto assim / Pra relembrar meu passado / Eu me criei arremendado / Dormindo pelos galpão / Perto de um fogo de chão / Com os cabelo enfumaçado

Refrão:

Quando rompe a estrela d'alva / Aquento a chaleira já quase no clariá o dia / Meu pingo de arreio relincha na estrevaria / Enquanto uma saracura / Vai cantando empoleirada / Escuto o grito do sorro / E lá do piquete relincha o potro tordilho / Na boca da noite me aparece um zorrilho / Vem mijar perto de casa / Pra inticá com a guapecada

Numa cama de pelego / Me acordo de madrugada / Escuto uma mão-pelada / Acoando no banhadal / Eu me criei xucro e bagual / Honrando o sistema antigo / Comendo feijão mexido / Com pouca graxa e sem sal

Refrão

Reformando um alambrado / Na beira de um corredor / No cabo de um socador / Com as mão rodeada de calo / No meu mango eu dou estalo / E sigo a minha campereada / E uma perdiz ressabiada / Voa e me espanta o cavalo

Refrão

Lá no santo do capão / O subiar de um nambú / Numa trincheira o jacú / Grita o sabiá nas pitanga / E bem na costa da sanga / Berra a vaca e o bezerro / No barulho dos cincerro / Eu encontro os bois de canga

Refrão e fim

A tradução

Banhadal – Banhado grande, terreno alagadiço.

Cama de pelego – cama improvisada no chão, utilizando a pele de carneiro ou de ovelha, com a lã natural.

Campanha – Zona de campo, apropriada à criação de gado. Local distante da cidade; interior.

Cincerro – Campainha grande que se pendura ao pescoço de determinados animais para fins de condução ou manejo.

Estrela D’Alva – É como também é conhecido o planeta Vênus. Porém, no contexto da música, imagina-se que o autor esteja afirmando que a noite está acabando e, por obvio, o dia raiando.

Guapecada – o mesmo que guaipecada. Guaipeca é um cão pequeno, cusco. Um cãozinho ordinário, vira-lata, sem raça definida.

Mango – Punho, empunhadura ou cabo de um relho ou de um facão.

Pingo – Cavalo de montaria.

Piquete – Nas estâncias, espaço cercado, próximo das casas, usado para prender e manejar animais de serviço diário.

Potro tordilho – Potro é um cavalo novo ou não, ainda xucro ou com apenas alguns galopes. Já tordilho se refere a cor da pelagem do animal, que é predominantemente branca, salpicada de pontos pretos.

Xucro e bagual – Ambos se referem a equino selvagens, ainda não domados. Há diferenças. Bagual é arisco, abrutalhado, rude, grosseiro, bravio, bonito, vistoso, indômito, muito grande. Pode ser usado tanto no sentido pejorativo como elevado. Já xucro, no caso de uma pessoa, está mais para alguém sem trato social. Diferente de bagual, não cabe como elogio.

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Bibliografia usada como fonte de consulta para a série: Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul (Zeno e Rui Cardoso Nunes), Dicionário da Cultura Pampeana Sul-Rio-Grandense (Aldyr Garcia Schlee), Dicionário de Expressões Populares da Língua Portuguesa (João Gomes da Siveira), Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Morta (Alberto Villas), Aves Silvestres do Rio Grande do Sul (W. Belton e J. Dunning), Contos Escolhidos (Cyro Martins; glossário organizado por Aldyr Garcia Schlee), Wikipédia e consultas na internet diversas. 

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

A Calça da Adidas

Era um tempo de crise. Como esse tempo de agora. Só que era diferente. Era um tempo onde se comprava carne, qualquer uma, para estocar. Pois faltava carne. Amontoavam-se os cortes no minúsculo freezer da geladeira. E o osso ainda ia para a sopa para dar gosto. Não escapava nada. 

Calçado era um de ir pra escola e um para sair. Só que se saía muito pouco. As roupas que ficavam gastas eram costuradas, reformadas. E assim ia se levando. 

Foi nesse tempo bicudo que apareceu uma calça da Adidas no varal. Dividíamos os varais, aqueles de roldanas, localizados no vão dos prédios, com a vizinha da frente, a pacata Dona Santa. Decerto que a velha não teria uma calça da Adidas. Então...

- De onde veio essa calça aqui? – perguntou meu pai.

- Minha que não é – me adiantei.

- É tua essa calça, mulher? 

- Aham – se entregou minha mãe. 

- E como tu comprou uma calça de marca? 

- Não é de marca.

- Como assim? Tá aqui ó: Adidas.

- Não é. Ela é falsificada.

- Nossa, mas que bem feita! 

- Sim! Tem muitas coisas falsificadas nos camelôs. Tudo da China, mas de boa qualidade. E custa menos da metade de uma original.

- Tu vê... Daí, está valendo mesmo. 

Eu ouvi tudo aquilo quieto, intrigado. Depois, fui no varal ver a tal calça. Muito bonita. Tecido macio. As três listras ao longo das pernas. Parecia original. Será que tinha masculina, tamanho M? Ia ser legal ir para escola com uma daquelas. 

- Mãe, em qual camelô tu comprou aquela calça? Na Assis Brasil ou no Centro?

- Que calça? 

- A da Adidas. Queria uma igual pra mim. E se é barata, tava pensando que...

- Comprei na Mesbla.

- Mas tu falou para o pai que foi no camelô.

- E tu acha que vou comprar porcaria em camelô?! Só falei para teu pai não me encher a paciência. A gente, de vez em quando, tem que comprar o que gosta, meu filho... Por favor, vamos viver para que então?!

E ela foi emendando uma frase na outra, dizendo que não aguentava mais aquilo tudo. Afirmou que as coisas estavam pior que quando ela era criança, no Sarandi, onde a porta do forno do fogão era amarrada com um arame, etc etc etc. 

Eu ouvi e entendi a revolta da minha mãe, porque eu também queria uma calça original da Adidas.

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

A Nova Opinião Formada Sobre Tudo



Dia desses, no famigerado grupo de Whats App, um amigo discorreu longamente sobre o Afeganistão. Tinha opinião formada e um aparente entendimento da região, cultura, política, costumes e etc. Ele nos falou da tomada do poder por parte dos talibãs. Apresentou-nos um card, afirmando que o país só foi dominado porque a população afegã não tem porte de armas. Caso tivesse, seria bem possível que o golpe de Estado não ocorresse, pois as pessoas lutariam de revólver em punho contra os mísseis e tanques dos tais talibãs.

Esse meu amigo sabia a orientação político-ideológica dos que agora comandam o país, se eles são de esquerda ou direita. Afinal, isso é muito importante hoje. Eu li tudo embasbacado! Se alguém me der um mapa, não sei apontar ao certo onde fica o Afeganistão. E meu amigo, que nunca esteve lá, nunca leu um livro sobre ou conheceu, de fato, um afegão, sabia tudinho.

Impressiona como as pessoas se tornaram menos ignorantes com as redes sociais. Teve outro amigo que, mesmo trabalhando com venda de roupas, se especializou em infectologia. Ao saber que um conhecido nosso, também participante do grupo do Whats App, teve Covid-19 e foi hospitalizado na UTI, salvando-se depois de quase um mês de internação, questionou o procedimento do médico. “O doutor não aplicou o tratamento precoce de forma correta. Provavelmente, a medicação foi prescrita tardiamente”.

São tantas coisas que aprendemos diariamente nesses grupos. Por isso, a gente não consegue mais fazer outras tantas coisas interessantes, como passear, brincar com o filho, namorar, ou, simplesmente, não fazer nada. Temos sede de conhecimento. Queremos saber das coisas que acontecem. E o Whats App tá cheio de gente para nos informar e explicar.

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Texto publicado originalmente no jornal Diário de Canoas, no dia 25 de agosto. 

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Verdureiros do Centro de Porto Alegre

Eles têm a mania de abordar as mulheres, indiferente da idade da mulher, da mesma maneira. “Oi, guria!”. A maioria delas já nem olha mais para os verdureiros, porque eles estão por toda a parte do Centro. Os verdureiros, os camelôs, os ônibus, as filas nas paradas de ônibus, os haitianos, os dálias do compro ouro/vendo ouro, os locutores das lojas de varejo e os moradores de rua são as figuras fixas do quadro que alguém um dia ainda vai pintar de Porto Alegre. Se é que ainda se pintam quadros em 2021... Se é que ainda se pintam quadros em Porto Alegre... Mas voltando aos homens do hortifrúti. Eles, obviamente, não se restringem a atuar nas áreas delimitadas pela prefeitura. Suas frutas, verduras e legumes, com suas cores e cheiros, tomam conta das calçadas e calçadões em um raio significativo do Centro Histórico. São personagens muito parecidos, os verdureiros. Grande parte veste um guarda-pó azul, que lhes confere uma certa respeitabilidade. Eles não possuem balança para pesar os produtos e efetivar suas transações. É tudo a preço fixo. Ao mesmo tempo, é tudo negociado. Seja o que está embalado. Seja o que está a granel. Nesse último caso, a pesagem é no olho. Os preços são em conta porque, até onde se sabe, não há aluguel para quem trabalha na rua. Maçãs, tomates, bananas, brócolis, mamões, alfaces, couves-flores, aipins, cebolas... Tudo vem da Ceasa, que fica a mais de dez quilômetros da área central. Agora, se os produtos são frescos ou não, quem haverá de saber? Só apalpando, vendo, auscultando, sentindo. É assim que é. Quando faz Sol é tranquilo. Quando chove é problema. Contudo, sempre surgem gazebos ou enjambrinas com lonas que protegem verdureiros e clientes do aguaceiro. O lado negativo é que a circulação fica mais complexa e conflituosa. Guarda-chuvas, marquises, gazebos. Os verdureiros começam cedo na labuta e só saem depois da maioria ter evaporado. É no fim da tarde, quando não é noite, nem dia, que as abordagens ficam mais agressivas. As vozes se elevam, se exaltam. Citam preços e promoções relâmpagos. É uma feira livre todo santo dia. Então, se a mulher quer uma fruta, legume ou verdura, ela atende ao primeiro contato. O tal “Oi, guria!”. Se ela não quer, segue seu caminho.

Oi, guria!
Cléber?!
Eu mesmo! Fátima?!
Sim! Como tu tá?
Indo… E tu?
Comigo, tudo certo. Tá morando na Vila dos Sargentos ainda?
Não tô mais. Agora, tô no Sarandi.
Bah, que longe!
Pois é. Continua vivendo com o Davi?
Aham. Desde aquela época. Temos três filhos. Dois guris e uma guria. O guri já é adulto. Vinte e poucos anos na cara.
Meu Deus, o tempo passa!
Passa voando. E tu, casou?
Não casei. Continuo solteiro.
Vai ficar pra titio, hein?
Pior… E tô cheio de sobrinhos mesmo. Nem sei o nome de todos.
Nossa, que fedor de mijo que tá aqui!
É o Centro né?
Tá terrível esse cheiro. Como tu consegue?
Costume.
Quanto tá a banana?
Cinco o cacho.
Qualquer cacho?
Qualquer cacho.
Vou querer aquele maiorzinho ali.
Quer colocar na sacolinha?
Sim.
Ó! Que bom te ver, Fátima.
Igual. Fico feliz em saber que tu tá bem.
Manda um abraço para o Davi. Saudade dele.
Pode deixar. Vou avisar que tu trabalhando por aqui.

Ela botou a sacolinha com a banana dentro de uma outra sacola maior e partiu rumo ao terminal de ônibus. O verdureiro seguiu. Avistou uma velha, a uns três metros, e a saudou: “Oi, guria!”. 


quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Negócio de Menino - Rubem Braga

 


Tem dez anos, é filho de um amigo, e nos encontramos na praia:


– Papai me disse que o senhor tem muito passarinho…

– Só tenho três.

– Tem coleira?

– Tenho uma coleirinha.

– Virado?

– Virado.

– Muito velho?

– Virado há um ano.

– Canta?

– Uma beleza.

– Manso?

– Canta no dedo.

– O senhor vende?

– Vendo.

– Quanto?

– Dez contos.


Pausa. Depois volta:


– Só tem coleira?

– Tenho um melro e um curió.

– É melro mesmo ou é vira?

– É quase do tamanho de uma graúna.

– Deixa coçar a cabeça?

– Claro. Come na mão…

– E o curió?

– É muito bom o curió. 

– Por quanto o senhor vende?

– Dez contos.


Pausa.


– Deixa mais barato…

– Para você, seis contos.

– Com a gaiola?

– Sem a gaiola.


Pausa.


– E o melro?

– O melro eu não vendo.

– Como se chama?

– Brigitte.

– Uai, é fêmea?

– Não. Foi a empregada que botou o nome. Quando ela fala com ele, ele se arrepia todo, fica todo despenteado, então ela diz que é Brigitte.


Pausa.


– O coleira o senhor também deixa por seis contos?

– Deixo por oito contos.

– Com a gaiola?

– Sem a gaiola.


Longa pausa. Hesitação. A irmãzinha o chama de dentro d’água. E, antes de sair correndo, propõe, sem me encarar:


– O senhor não me dá um passarinho de presente, não?

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Crônica publicada originalmente em 26 de julho de 1966, no jornal Diário de Notícias

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Os Acorrentados de Sacalina


Se existem cães, são apáticos, não bravos, e que, como eu já disse, só latem contra os guiliaques, provavelmente, porque eles usam botas feitas de couro de cachorro. E por alguma razão esses cães mansos, inofensivos, ficam presos. Se há um porco, traz um bloco de madeira preso no pescoço. Os galos também ficam presos pelo pé. 

"Para que você mantém os galos e os cachorros presos?", pergunto ao proprietário.

"Em Sacalina, todo mundo vive acorrentado", responde ele, mordaz. "Esta terra é assim".

sábado, 21 de agosto de 2021

Observações Diante da Pira

Ele estava visivelmente bêbado. Latão de Nova Schin na mão direita. Foi até a entrada da prefeitura. Parou diante da escadaria. Em respeito ao símbolo público, não prosseguiu. Deu uma olhada panorâmica. Uma olhada preguiçosa, lenta. Viu aquele objeto estranho. Refletiu brevemente sobre. Puxou assunto com o guarda. 

- Isso ali é aquele troço que botam fogo né? 

- Sim.

- Pira que chama né?

- Aham.

- Vai ficar aí por um mês né?

- Vai.

- Eu tô ligado. Já vi essa pira aí...

Tomou um gole do latão. 

- Hum... E não me diz que tu vai ter que ficar de guarda?

- ...

- Hein? Tu vai ter que ficar de guarda né?

- ...

- Bah... É foda!

Ele entendeu que o diálogo tinha acabado. Se insistisse, seria provável que o homem da lei o orientasse a circular. Tomou outro gole e matou o latão. Iniciou uma caminhada desritmada e falou consigo mesmo. 

- Bah... Ficar de guarda é foda. 

E foi em direção a Rua da Praia.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Impossibilidade

 Já era tarde. Bem tarde. Então, deitei com meu guri. Ele seguia excitado, falando sem parar, praticamente sem fôlego, rememorava suas travessuras do dia, elencava a paleta de cores de suas canetas e lápis, citava os números que decorou “um, dois, quatro, cinco, dez” e os nomes dos super-heróis e bichos que viu na televisão.  

- Tá bem, filho. Agora, fica quieto que temos que dormir – eu disse.

Ele, prontamente, se aquietou. Me abraçou desajeitado. Se aninhou. Ficamos com o rosto colado um no outro. Seu bico ia e voltava na boquinha, subia e descia, fazendo aquele barulhinho. 

- Sabia que eu poderia ficar abraçado contigo assim a vida toda? 

- Não pode.

- Por que não pode?

- Amanhã, tem escolinha.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

O Amor Cronometrado


As dançarinas tocam a vida porque na realidade se aplicam a outros expedientes também, alguns clandestinos, como o do amor cronometrado, remunerado e com garantias antecipadas, cuja a taxa de serviço pode variar entre dez cruzeiros, quinze cruzeiros e vinte cruzeiros (sem se incluir o preço da entrada do hotel, é claro). 

João Antônio 

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Trecho do conto/crônica "Lapa acordada para morrer". Texto que integra o livro Malhação do Judas Carioca, editora Civilização Brasileira, 1975.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Saudades da CRT?

 

O tempo inevitavelmente vai passando e a saudade se torna mais presente na gente. A saudade está à venda nos sebos e antiquários e à mostra nos museus. Tem gente que faz da saudade sua profissão, como os historiadores, arquivistas e o escritor Ruy Castro. 

Porém, tem coisas que não deixam boas recordações. Uma delas é a Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT). Quem é mais velho sabe. Antigamente, era um parto ter um telefone para se comunicar. Tinha até fila, absurdamente burocrática, para poder adquirir uma linha. Demoravam anos até chegar a sua vez. O jeito era alugar. Sim, existia aluguel de linha telefônica, com contrato e tudo! Outra opção era comprar fichas e usar no orelhão. 

O Estado definia quem poderia ou não ter um telefone. Um jovem, que não conhece um disco de vinil, certamente não consegue imaginar um mundo assim. Só que esse mundo existiu. Bons tempos? Claro que não. 

Para nós gaúchos, a telefonia se tornou acessível com a privatização e extinção da CRT, no fim da década de 90. O contexto era de empresas do ramo em crescimento. Por isso, quando vejo calorosos e ideológicos debates sobre a necessidade ou não de privatização de um certo serviço público, geralmente insatisfatório para a população e oneroso para o Estado, automaticamente me lembro da companhia estatal de telefone.

Não quero dizer que o jeito é privatizar tudo, mas é certo que privatizações ajudam a diminuir o tamanho da máquina pública. Em áreas de notória capacidade de atendimento pela iniciativa privada, elas são bem-vindas. 

A CRT um dia teve sua relevância. Novas tecnologias e empresas privadas surgiram. O que antes era moderno, virou obsoleto. É assim com muita coisa. Daí, só resta a saudade. Não da CRT, lógico.

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Texto originalmente publicado no jornal Diário de Canoas.

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Amy

 


Era 7h e pouco da manhã. Estava chacoalhando no T6. Meio dormindo, meio acordado. Indo trabalhar. Ouvindo a rádio Ipanema nos fones. Tocou Tears Dry On Their Own. Eu acordei. Queria saber quem era aquela voz.  

Era Amy Winehouse. 

Vi Amy, viva, em Florianópolis. Ela estava sem condições de cantar. Eu estava sem condições de assitir. Ambos, completamente bêbados. 

Coisas da vida.

Mais tarde, fui pra Londres. No seu pub preferido, no seu bairro e na frente de sua casa. Mas Amy não existia mais. 

Saudade da Amy.

terça-feira, 29 de junho de 2021

A Autocrítica do Outro


Tem uma novidade filosófica contemporânea. A autocrítica que eu faço do outro. Recentemente, a atriz Leandra Leal, no programa Altas Horas, da Rede Globo, afirmou o seguinte: “Acho que tem uma autocrítica que toda sociedade tem que fazer agora” e seguiu elencando discursos e posturas do presidente Jair Bolsonaro em um período anterior a ele ter sido eleito, demonstrando que, conforme suas posições prévias, era previsível a péssima gestão em relação a pandemia e outras pautas. O que concordo com ela.

Sua fala repercutiu nas redes sociais e, como tudo que reverbera nesses meios, gerou tensão e polêmica. O curioso é que nada do que ela disse se tratou, de fato, de uma autocrítica, pois ela não é uma eleitora do presidente. Em uma pesquisa rápida no Google, seu nome é relacionado ao Partido dos Trabalhadores (PT). Leandra afirmou que votaria em Dilma Rousseff, na eleição passada, e Fernando Haddad, no pleito mais recente.

Então, que autocrítica é essa que ela faz se passando por outra pessoa? Em outro ramo filosófico, o da Lógica, não há sentido nenhum nisso. Na verdade, apenas reflete um comportamento banal e que existe desde sempre: o de julgar. No caso da Leandra, a tal autocrítica seria fazer uma análise dos motivos que fizeram milhares de pessoas votarem em Haddad, uma segunda opção do PT, após Lula se tornar inelegível por corrupção, ainda no primeiro turno, sendo que havia outras opções à direita e à esquerda.

Perguntas, perguntas… Enfim, a autocrítica de verdade – a redundância aqui se faz necessária – é um exercício fundamental em todos os momentos de nossas vidas. No campo da política, não é diferente. O ano de 2022 será um período precioso para exercê-la.

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Texto publicado no jornal Diário de Canoas

domingo, 27 de junho de 2021

Três poemas na revista Sepé

 


Estou com três poemas na edição mais recente da Sepé, editada pelo escritor Lucio Carvalho. Na imagem coube um só, mas no link tem mais dois.

Vale folhear digitalmente a revista e ler os demais autores. Conteúdo de primeira!

quarta-feira, 16 de junho de 2021

O Fator Humano

 


Você acha que não tem problema o presidente da república não ter implementado um plano nacional de prevenção à Covid-19? Ok. Você não vê nada demais em um presidente que troca quatro ministros da Saúde durante uma pandemia? Ok. Você não viu erro algum do presidente nas negociações e aquisições de vacinas para a população brasileira? Ok. Você não entende como um equívoco do presidente, no fim das contas um servidor público, fazer propaganda de remédio? Ok. Falando em ok, uma das explicações etimológicas do termo vêm do inglês 0 killed, que em português quer dizer zero morte. Em relação a pandemia, esse número é utopia. Ainda mais com uma gestão como a que estamos presenciando no Palácio do Planalto. Contudo, é possível que haja justificativas e argumentos plausíveis para defender os pontos citados acima. Não consigo imaginar nenhum. Mas é possível que haja, vá saber... Só não é ok assistir com indiferença esse palanque eleitoreiro que o presidente promove rotineiramente. Aglomeração pela aglomeração, como as chamadas “motociatas”. Isso é inadmissível, mesquinho, desumano. Uma postura gananciosa que coloca muitas vidas em risco. Sim, ainda há uma pandemia nas ruas! Estamos próximos das 500 mil mortes e longe de vacinar 70% da população com a segunda dose – índice considerado seguro para voltar à normalidade.

E se a morte que não comove mais, o que comove? Outro fator desumano do presidente é sua própria imagem nesses eventos – e, portanto, a mensagem que ele transmite. Vemos sempre a figura de alguém orgulhoso em não usar máscara. Logo quem deveria dar o exemplo.

O resultado é trágico. Um total desrespeito às normas e legislações sanitárias brasileiras e mundiais. Imagine se um cidadão ou empresário fizesse um evento com aglomeração e sem uso de máscara, exatamente como o presidente faz com frequência. Seria criminalizado por essa atitude, certamente.

O fato é que assistimos um líder que se mostra indiferente à realidade. A dor de milhares de pessoas que perderam parentes e amigos para a Covid-19 não diminui o afã do presidente em se perpetuar no poder. Os constantes palanques se justificam, porque representam uma pretensa demonstração de apoio para um pleito que se avizinha. Tudo é 2022. Uma campanha política escancarada. E vinda de um presidente que se elegeu com a bandeira de não ser político, de ser contrário a politicagem.

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Texto publicado originalmente no Jornal do Comércio, dia 14 de junho.

domingo, 6 de junho de 2021

Angústia - Conto de Tchekhov

Crepúsculo vespertino. Uma neve úmida, em grandes flocos, remoinha preguiçosa junto aos lampiões recém-acesos, cobrindo com uma camada fina e macia os telhados das casas, os dorsos dos cavalos, os ombros das pessoas, os chapéus. O cocheiro Yona Potapov está completamente branco, como um fantasma. Encolhido o mais que pode se encolher um corpo vivo, está sentado na boléia, sem se mover. Tem-se a impressão de que, mesmo que caísse sobre ele um montão de neve, não consideraria necessário sacudi-la… Seu rocim está igualmente branco e imóvel. Graças a sua imobilidade, à angulosidade das formas e à perpendicularidade de estaca de suas patas, parece mesmo, de perto, um cavalinho de pão-de-ló de um copeque. Seguramente, ele está imerso em meditação.

Não pode deixar de meditar quem foi arrancado do arado, da paisagem cinzenta e familiar, e atirado nessa voragem, repleta de luzes monstruosas, de um barulho incessante e de gente correndo…

Faz muito tempo que Yona e seu rocim não se mexem do lugar. Saíram de casa ainda antes do jantar, e, até agora, não apareceu trabalho. Mas, eis que a treva noturna desce sobre a cidade. A palidez das luzes dos lampiões cede lugar a cores vivas e a confusão das ruas torna-se mais barulhenta.

— Cocheiro, para a Víborgskaia! — ouve Yona. — Cocheiro! Estremece e vê, através das pestanas cobertas de neve, um militar de capote com capuz. — Para a Viborgskaia! — repete o militar. — Está dormindo? Para a Víborgskaia!

Em sinal de consentimento, Yona puxa as rédeas, e a neve cai em camadas de seus ombros e do dorso do cavalo… O militar senta-se no trenó. O cocheiro faz ruído com os lábios, estende o pescoço à feição de cisne, ergue-se um pouco e agita o chicote, mais por hábito que por necessidade. O cavalinho estica também o pescoço, entorta as pernas, que parecem estacas, e desloca-se com indecisão…

— Onde vai, demônio?! — ouve, logo depois, Yona exclamações partidas da massa escura de gente, que se desloca em ambos os sentidos. — Para onde te empurram os diabos? Mantenha-se à direita! — Não sabe dirigir! Olha a direita — zanga-se o militar.

O cocheiro de uma carruagem solta impropérios; um transeunte, que atravessou a rua correndo e chocou-se com o ombro contra a cara do rocim, lança um olhar rancoroso e sacode a neve da manga. Na boléia, Yona parece sentado sobre alfinetes e aponta com os cotovelos para os lados; seus olhos tontos perpassam pelas coisas, como se não compreendesse onde se encontra e o que está fazendo ali.

— Que gente canalha! — graceja o militar. — Eles se esforçam em chocar-se contra você ou cair embaixo do cavalo.

Combinaram isso. Yona volta-se para o passageiro e move os lábios… Sem dúvida, quer dizer algo, mas apenas uns sons vagos lhe saem da garganta.

— O quê? — pergunta o militar.

Yona torce a boca num sorriso, faz um esforço com a garganta e cicia:

— Pois é, meu senhor, assim é… perdi um filho esta semana. — Hum!… De que foi que morreu? Yona volta todo o corpo na direção do passageiro e diz: — Quem é que pode saber! Acho que foi de febre… Passou três dias no hospital e morreu… Deus quis. — Dá a volta, diabo! — ressoa nas trevas uma voz. — Não está mais enxergando, cachorro velho? É com os olhos que tem que olhar! — Anda, anda… — diz o passageiro. — Assim, não chegamos nem amanhã. Mais depressa!

O cocheiro estica novamente o pescoço, ergue-se um pouco e agita o chicote, com uma graciosidade pesada. Depois, torna a olhar algumas vezes para o passageiro, mas este fechou os olhos e parece pouco disposto a ouvir. Depois de deixá-lo na Víborgskaia, pára diante de uma taverna, encurva-se sobre a boléia e fica novamente imóvel… A neve molhada torna a pintá-lo de branco, juntamente com o rocim. Decorre uma hora… outra…

Três jovens passam pela calçada, fazendo muito barulho com as galochas e trocando impropérios: dois deles são altos e magros, o terceiro é pequeno e corcunda.

— Cocheiro, para a Ponte Politzéiski! — grita o corcunda, com voz surda. — Damos vinte copeques… os três! Yona sacode as rédeas e faz ruído com os lábios. Vinte copeques são um preço inadequado, mas, agora, pouco lhe importa o preço… Tanto faz seja um rublo ou cinco copeques, contanto que haja passageiros… Empurrando-se e soltando palavrões, os jovens acercam-se do trenó e sobem para os assentos, os três ao mesmo tempo. Começam a discutir a questão: dois deles irão sentados, e quem vai ficar de pé? Depois de uma longa troca de insultos, manhas e recriminações, chegam à conclusão de que o corcunda é quem deve ficar de pé, por ser o menor.

— Bem, faz o cavalo andar! — grita com voz trêmula o corcunda, ajeitando-se de pé e soprando no pescoço de Yona. — Dá nele! Que chapéu você tem, irmão! Não se encontra um pior em toda Petersburgo… — Hi-i… hi-i… — ri Yona. — Assim é… — Ora, você assim é, bate no cavalo! Vai andar desse jeito o tempo todo? Sim? E se eu te torcer o pescoço? — Estou com a cabeça estalando… — diz um dos moços compridos. — Ontem, em casa dos Dukmassov, eu e Vaska tornamos quatro garrafas de conhaque. Não compreendo para que mentir! — irrita-se o outro moço comprido. — Mente como um animal. — Que Deus me castigue, é verdade… — Tão verdade como um piolho tossindo. — Hi-i! — ri Yona entre dentes. — Que senhores alegres! — Irra, com todos os diabos!… — indigna-se o corcunda. — Você vai andar ou não, velha peste? É assim que se anda? Estala o chicote no cavalo! Eh, diabo! Eh! Dá nele!

Yona sente, atrás de si, o corpo agitado e a voz trêmula do corcunda. Ouve os insultos que lhe são dirigidos, vê gente, e o sentimento de solidão começa, pouco a pouco, a deixar-lhe o peito. O corcunda continua os impropérios e, por fim, engasga com um insulto rebuscado, descomunal, e desanda a tossir. Os moços compridos começam a falar de uma certa Nadiejda Pietrovna. Yona volta a cabeça para olhá-los. Aproveitando uma pausa curta, olha mais uma vez e balbucia:

— Esta semana… assim, perdi meu filho! — Todos vamos morrer. — suspira o corcunda, enxugando os lábios, após o acesso de tosse. — Bem, bate nele, bate nele! Minha gente, decididamente, não posso continuar andando assim! Esta corrida não acaba mais? — Você deve animá-lo um pouco… umas pancadas no pescoço! — Está ouvindo, velha peste? Vou te moer o pescoço de pancada! Não se pode fazer cerimônia com gente como você, senão é melhor andar a pé! Está ouvindo, Zmiéi Gorínitch? Ou você não se importa com o que a gente diz? E Yona ouve, mais que sente, os sons de uma pancada no pescoço. — Hi-i… — ri ele. — Senhores alegres… que Deus lhes dê saúde! — Cocheiro, você é casado? — pergunta um dos compridos.

Eu? Hi-i… que senhores alegres! Agora, só tenho uma mulher, a terra fria… Hi-ho-ho… O túmulo, quer dizer!… Meu filho morreu, e eu continuo vivo… Coisa esquisita, a morte errou de porta… Em vez de vir me buscar, foi procurar o filho… E Yona volta-se, para contar como lhe morreu o filho, mas, nesse momento, o corcunda solta um suspiro de alívio e declara que, graças a Deus, chegaram ao destino. Tendo recebido vinte copeques, Yona fica por muito tempo olhando os pândegos, que vão desaparecendo no escuro saguão. Está novamente só e, de novo, o silêncio desce sobre ele… A angústia que amainara por algum tempo torna a aparecer, inflando-lhe o peito com redobrada força. Os olhos de Yona correm, inquietos e sofredores, pela multidão que se agita de ambos os lados da rua: não haverá, entre esses milhares de pessoas, uma ao menos que possa ouvi-lo? Mas a multidão corre, sem reparar nele, nem na sua angústia… Uma angústia imensa, que não conhece fronteiras. Dá a impressão de que, se o peito de Yona estourasse e dele fluísse para fora aquela angústia, daria para inundar o mundo e, no entanto, não se pode vê-la. Conseguiu caber numa casca tão insignificante, que não se pode percebê-la mesmo de dia, com muita luz… Yona vê o zelador de uma casa, carregando um embrulho, e resolve travar conversa.

— Que horas são, meu caro? — pergunta. — Mais de nove… Por que você parou aqui? Passa!

Yona afasta-se alguns passos, torce o corpo e entrega-se à angústia… Considera já inútìl dirigir-se às pessoas. Mas, decorridos menos de cinco minutos, endireita-se, sacode a cabeça, como se houvesse sentido uma dor aguda e puxa as rédeas… Não pode mais.

“Para casa”, pensa, “para casa”.

E o cavalinho, como se tivesse compreendido seu pensamento, começa a trotar ligeiramente. Uma hora e meia depois, Yona está sentado junto ao fogão grande e sujo. Há gente roncando em cima do fogão, no chão e sobre os bancos. O ar é abafado, sufocante… Yona olha para os que dormem, coça a cabeça e lamenta haver voltado tão cedo para casa… “Não ganhei nem para a aveia”, pensa. “Daí essa angústia. Uma pessoa que conhece o ofício… que está bem alimentada e tem o cavalo bem nutrido também, está sempre calma…” Num dos cantos, levanta-se um jovem cocheiro, funga, sonolento, e arrasta-se para o balde de água.

— Ficou com sede? — pergunta Yona. — Com sede, sim! — Bem… Que lhe faça bom proveito… Pois é, irmão, e eu perdi um filho… Está ouvindo? Foi esta semana, no hospital… Que coisa!

Yona procura ver o efeito que causaram suas palavras, mas não vê nada. O jovem se cobriu até a cabeça e já está dormindo. O velho suspira e se coça… Assim como o jovem quis beber, assim ele quer falar. Vai fazer uma semana que lhe morreu o filho e ele ainda não conversou direito com alguém sobre aquilo… É preciso falar com método, lentamente… É preciso contar como o filho adoeceu, como padeceu, o que disse antes de morrer e como morreu… É preciso descrever o enterro e a ida ao hospital, para buscar a roupa do defunto. Na aldeia, ficou a filha Aníssia… É preciso falar sobre ela também… De quantas coisas mais poderia falar agora? O ouvinte deve soltar exclamações, suspirar, lamentar… E é ainda melhor falar com mulheres. São umas bobas, mas desandam a chorar depois de duas palavras.

“É bom ir ver o cavalo”, pensa Yona. “Sempre há tempo para dormir…”

Veste-se e vai para a cocheira, onde está seu cavalo. Yona pensa sobre a aveia, o feno, o tempo… Estando sozinho, não pode pensar no filho… Pode-se falar sobre ele com alguém, mas pensar nele sozinho, desenhar mentalmente sua imagem, dá um medo insuportável…

Está mastigando? — pergunta Yona ao cavalo, vendo seus olhos brilhantes. — Ora, mastiga, mastiga… Se não ganhamos para a aveia, vamos comer feno… Sim… Já estou velho para trabalhar de cocheiro… O filho é que devia trabalhar, não eu… Era um cocheiro de verdade… Só faltou viver mais…

Yona permanece algum tempo em silêncio e prossegue: — Assim é, irmão, minha egüinha… Não existe mais Kuzmá Iônitch… Foi-se para o outro mundo… Morreu assim, por nada… Agora, vamos dizer, você tem um potrinho, que é teu filho… E, de repente, vamos dizer, esse mesmo potrinho vai para o outro mundo… Dá pena, não é verdade?

O cavalinho vai mastigando, escuta e sopra na mão de seu amo… Yona anima-se e conta-lhe tudo...

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Conto publicado em 1886. A tradução é Boris Schnaidermann. 

terça-feira, 1 de junho de 2021

Olhar Pode


Era meio-dia. O velho pegou as sacolas com as compras e soltou essa pra caixa do mercadinho.

- Então, tá. Vou ver minhas novelas. Sassá Mutema, A Viagem e depois tem um jogo de vôlei feminino. 

- É isso aí, seu Arlindo – respondeu a caixa.

- Como são bonitas aquelas russas! 

- São é? Não se esqueça que o senhor é casado. 

- Sou, mas só vou olhar.


quarta-feira, 26 de maio de 2021

26 de maio

 

Uma noite daquelas. Fria. Internacional consegue a façanha de empatar em casa. Jogo murrinha. Não deu pra ver. Só pagando mais na televisão que já é paga. O velho radinho de guerra. Chega dar angústia na gente. Vai! Vai! E o time não vai... O guri apagou no sofá. Dormiu todo enviesado. Ferveu o dia todo e se entregou vendo desenho. Desliguei a TV. Ajeitei a areia dos gatos. Preenchi o pote de ração. Nem sinal dos bichos. Entocados. Frio. A mulher zanzando. Ajeita uma coisa no roupeiro. Recolhe um brinquedo do chão. Fala sozinha. No céu uma Lua. Dessas que só aparecem de tantos e tantos anos. Se eu vi? Mal vi. Não tava no meu dinheiro. Dei uma espiada e foi só. Humor ruim. Azedo. Nunca mais a tal Lua, dizem. A tal que se foda, vou te dizer. Puxei um João Antônio da estante. Zicartola e que tudo mais vá para o inferno! Assim mesmo. Esse é o título. Cabra que sabe dar nome pra livro! Lá pelas tantas, ele diz. “Essa coisada emotiva braba tem me batido mais aos domingos, se acordo pela manhã e me ponho preguinçando, fazendo hora sei lá pra quê, adiando sem propósito a ida à praia, um aborrecimento sem motivo aparente, quem sabe. Pra depois virar aborrecimento mesmo. Uma perda. Um homem não consegue se perdoar por deixar de ver o vôo das gaivotas. E por aí vai”. Continho de 1986. Tempos idos. Onde um homem tinha seu momento pra preguiçar. Não tinha aparelho apitando. Tela. Rola e rola tela. Letra miúda. Força as vistas. Fotos e mais fotos. E quantas fotos horríveis da tal Lua, meu Deus do céu! Peguei o guri. Acordou. “Coloca o desenho da caveira, papai”. “Xuuuu... Pronto, pronto... Vamos dormir, cara. É de noite”. Ele, então, se aninhou. Eu me acalmei. Coloquei o pequeno na cama. Cobri com uma manta. Coloquei uma segunda pra garantir. E saí pra ver a Lua outra vez.


quarta-feira, 19 de maio de 2021

"A literatura já existe em algum lugar dentro da gente" - Entrevista Para o Site Angústia Criadora


O que é literatura?

Creio que, na visão limitada do escritor, literatura seja escrever, escrever, escrever, escrever. Contudo, passando para o outro lado do balcão e vendo a literatura como leitor, que é melhor jeito de vê-la, é muito mais que a palavra escrita. A literatura, como qualquer expressão artística, não cabe em si, tampouco em definições.

O que é escrever ficção?

É uma maneira de matar o tempo e tentar passar a perna em Deus.

Vocação, talento, carma, destino…..o escritor é um predestinado a carregar adjetivos que tentam justificar o ofício?

Creio que sim, mas não gosto dessas definições, nem acredito nelas. Entretanto, entendo quem vê assim, porque o escritor, de modo geral, tem essa pretensão de registrar o seu tempo ou um naco da história.

Qual o melhor aliado do escritor?

A certeza da morte.

E qual o maior inimigo?

A vida.

Escrever é um ato político? Por qual motivo?

Vivemos um período que fazer lista de compras do supermercado é um ato político. Escrever é só mais um desses tantos atos políticos que tem por aí.

Quais os aspectos que você leva em conta no momento que começa a escrever?

Geralmente, parto de uma ideia. Não sou de olhar a folha em branco e pensar que tenho que escrever algo. Isso até já aconteceu, mas é muito raro. Não gosto de forçar nada, não gosto de bater ponto com a Literatura, porque tenho receio que essa forçação de barra transpareça na minha escrita. Então, o principal aspecto é esse: ter uma ideia.

A literatura existe para entendermos o começo, o meio ou fim?

Acredito que uma das razões dela existir é exatamente porque não entendemos o começo, o meio e o fim. E não nos contentamos com isso.

Se escreve para buscar respostas ou para estimular as dúvidas?

Prefiro sempre as dúvidas, gosto de ir na direção daquilo que me assusta.

Criar é tatear no escuro das incertezas?

Por mais que alguns textos saiam num “jorro”, dando a entender que está tudo “certo”, o processo todo sempre é envolto de incertezas, seja de quem escreve ou lê.

Cite um trecho de alguma obra que te marcou profundamente.

Separei um trecho de Chuva de Prata, de Antônio Fraga.

“Enquanto o verso não vem, namora um pensamento. Ei-lo: chuva de estrelas dá um ótimo título de livro. É. Está resolvido. Escreverá um livro.

E o editor? E a crítica?

Nada de editores. Os editores são uns piratas. Nem um exemplar para a crítica. A crítica é incompetente.

Mastiga as palavras piratas e, incompetente como um homem superior, como um gênio!

Começa a ser consagrado – na imaginação, por enquanto. Solicitam-lhe autógrafos, entrevistas – como os repórteres são cacetes! – e é confidente de ministros. Ministros? Ministros? Ministros nada! Vê lá se vai dar confiança a ministros. O ditador? Sim, confidente do ditador. Ali na batata!

Ensaia sorrisos hipócritas, protetores, compassivos.

– Seu Cândido, vou desligar a luz. Tá na hora.

É dona Maricota, a proprietária da pensão, sempre preocupada com o gasto de energia elétrica.

Coitada, ela não sabe quem hospeda, pensa. Olha mais uma vez o título, despe-se e deita-se, ferrando logo no sono.

E é assim que Cândido Gentil, último do seu nome, “publica” diariamente um livro.”

É possível recriar o silêncio com as palavras? Como?

Creio que aí reside uma das respostas para “por que escrever?”. Como disse, o escritor é um sujeito pretensioso. Certamente, escreve também para isso, para recriar esse silêncio que, no fundo, é o silêncio de Deus. Como recriá-lo? Não faço ideia.

Você acredita que qualquer pessoa pode escrever uma história? Mas, então, o que vai fazer dela escritora, de fato?

Qualquer pessoa pode escrever uma história. Imagino que o meio ou mercado editorial, em eventos literários, dê carteiras assinadas ou crachás de escritores para confirmar quem é ou não é (risos). Mas a verdade é que não acredito em escritores de fato. Não acredito em nenhum artista de fato.

É preciso saber olhar o mundo com os olhos da ficção? O mundo fica melhor ou pior a partir dessa observação?

O ser humano sonha, delira, cria suas fabulações. Se for pra escolher melhor ou pior… Acho que isso, de modo geral, piora as coisas. Os bichos não tem nada dessas bobagens e eles compreendem muito mais o mundo que a gente.

Todo texto ficcional, mesmo os mais extensos, acaba sendo apenas um trecho ou fragmento da história geral? Digo, a ficção lança o seu olhar para as esquinas das situações, sendo praticamente impossível se ter uma noção do todo?

Quando li É Isto Um Homem?, de Primo Levi, senti todo o mal do Nazismo. O quanto o ser humano pode ser ruim e desprezível. Foi uma leitura que me impactou demais. Então, penso que a ficção pode, sim, nos dar essa impressão de todo, de História.

Nesse sentido, uma história nunca tem início, meio e fim?

Acho que acaba não tendo fim. Porque uma boa história (e a boa Literatura) fica na gente por muito tempo.

Você escolhe os seus temas ou é escolhido por eles?

Minha limitação acaba escolhendo. Pode parecer romântico a inspiração de tropeçar num verso, criar um personagem do nada, mas, no fundo, a literatura já existe em algum lugar dentro da gente.

É necessário buscar formas de expressão cada vez menos sujeitas ao cânone, desafiando a língua, tornando-a mais “suja”, para se aproximar cada vez mais da verossimilhança que a história pede? Ou seja, escrever cada vez “pior”, longe da superficialidade de escrever “certinho”, como disse Cortázar, talvez na tentativa de fugir da armadilha do estilo único?

Não tenho uma resposta para isso. Gosto de pensar que não tenho estilo. Aliás, gosto de pensar que não tenho nada, que sou um completo ignorante e estou apenas contando algo. Pensar em teorias literárias, estilos, autores, me atrasa a vida, me desanima completamente, porque tudo já foi feito.

Quando é que um escritor atinge a maturidade?

Quando ele não tem mais nada de relevante a dizer.

O leitor torna-se cúmplice do escritor em qual momento?

O leitor sempre é cúmplice. No momento que ele leu a primeira frase, ele já é cúmplice. E isso, para ambos, nem sempre é bom. Quando se entendem, lógico, é melhor.

Apenas um livro para livrá-lo do fim do mundo em uma espaçonave. O seu livro inesquecível. Qual seria?

O meu livro inesquecível é A Vida Como Ela É, de Nelson Rodrigues, que peguei na biblioteca da minha escola estadual, pavilhão de madeira, Ana Neri. Li bem jovem e me marcou. Então, levaria esse.

Qual a sua angústia criadora?

Teimosia. Imagino que ela se encaixe nessa aflição que motiva a criar algo.

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Entrevista publicada originalmente aqui

sábado, 8 de maio de 2021

Sorte no Jogo


No jornal policialesco da TV passava uma reportagem sobre bingos clandestinos. Máquinas recolhidas. Policiais de peito estufado. Repórter no local. 

A balconista da lancheria viu tudo e puxou assunto com o cliente.

- Isso tinha que legalizar. Qual o problema? Todo mundo joga! 

- É verdade - disse o homem velho, que tomava um café preto e espalitava os dentes.

- Mas jogatina legalizada só com o governo né?

- Bem isso.

- Tu já foi num bingo?

- Sim, já fui. 

- Na Assis Brasil tem um funcionando. Ali perto do Cristo. Às vezes fecham. Logo abre de novo. Dia desses, fui lá. Ganhei 17 reais. Fiz duas linhas só.

- Mas deixou quanto com eles pra ganhar isso?

- Uns 70 reais...

- Ah, pois é!

E ambos deram uma risada aberta. Faceiros. 


sábado, 17 de abril de 2021

A Hora de Doar as Ferramentas


Pela primeira vez na história moderna, ou desde que se tem notícia, temos mais mortes que nascimentos. A culpa é da pandemia. Não só dela, claro. A culpa é mais nossa. O homem fracassou faz um bom tempo. Não se sabe se essa triste estatística prosseguirá, pois a humanidade sempre pode surpreender. E como estamos presenciando, essa surpresa nem sempre é positiva. Ainda pode ser pior. 

Ninguém, pelo menos os que ainda estão em consciência plena, acreditam que o mundo sairá melhor dessa. As divisões e os extremismos, sob qualquer aspecto, se mostram indissolúveis. O distanciamento social, o real, o da diferença entre as pessoas, persistirá. 

No princípio da pandemia, ainda se cogitava a possibilidade de um mundo melhor, mais unido, pois somente assim seria possível combater de forma eficaz o coronavírus. Era um otimismo que tinha sentido de ser. Afinal, se tratava de uma postura lógica para garantir a sobrevivência de todos. Não foi o que ocorreu. Ficou comprovado, mais uma vez, que somos um desastre. E, agora, vivemos uma fase onde os agentes funerários trabalham mais que as parteiras. 

A morte, portanto, não nos comove mais. E se é assim, o que nos comoverá daqui em diante? Aparentemente, só nos falta uma guerra. Se é que ela já não está entre nós...

Vez por outra, lembramos que ainda existe afeto, amizade, amor e outras pieguices tão necessárias para deixar os dias e a vida mais leves e com algum sentido. O vizinho da frente morreu faz pouco de Covid19. Em um dia estava descendo do ônibus, atravessando a rua e indo para casa. No outro, não existia mais. Não é força de expressão. Foi tudo muito rápido. Disseram que não tinha leito. 

Seu parente, que mora junto e o nomearei aqui como Seu Gervásio para preservar seu nome real, conseguiu uma cama. Ficou internado um tempo e ganhou alta. 

Tão logo chegou, tocou o interfone do apartamento de meu pai. Meu velho, receoso, queria saber o que era, pois não tinha a intenção de conversar presencialmente, mesmo se tratando de uma possível boa notícia.

- Eu não peguei covid. Foi pneumonia. Desce, por favor! Preciso muito falar contigo. 

Convencido, meu pai foi atender o Seu Gervásio. Os velhos estavam na calçada.

- É o seguinte. Vou direto ao assunto. É verdade, eu não peguei covid, mas sei que vou morrer e é logo.

- Não fala bobagem, homem de Deus! 

- É certo. Mas não vem ao caso. Quero te doar todas as minhas ferramentas.

- Como assim?! Tu nunca empresta essas benditas ferramentas.

- De que me adianta ficar com elas? Eu não vou leva-las comigo. 

- E se eu morrer antes de ti?

- Tu não vai morrer. Tu nunca tem nada. E se alguém tem que ficar com elas, esse alguém é tu.

Queriam se abraçar, mas não sabiam como. Se despediram desajeitadamente. Dias depois, meu pai me contou a história e mostrou as ferramentas. Uma a uma.

- Olha essa polidora! Parece nova. Isso aqui é dos anos 80, certamente. Como ele cuidava bem delas! 

- Ele ainda está vivo, pai. Tu fala como se ele estivesse morto.

- Eu sei, eu sei... Como é triste ficar velho, meu filho. Mas tem uma coisa boa.

- Qual?

- Só se fica velho uma vez.


segunda-feira, 12 de abril de 2021

Taxação de Livros no Brasil - Um Relato

 Falo sobre minha relação com a Literatura na Folha de São Paulo. A pauta é a possível taxação dos livros, que pode dificultar ainda mais o acesso a leitura no Brasil.


Matéria completa no link.


sábado, 27 de março de 2021

Sete discos de artistas vivos que souberam se reinventar depois dos 60 anos


- Jards Macalé (tem 77 anos) / Disco: Besta Fera (2019)

Qualquer top 10 discos brasileiros de todos os tempos que não contar com o álbum Jards Macalé, de 1972, não é uma seleção digna de respeito. Mas o fato é que depois disso, ele não fez nada muito significativo. Com Besta Fera, Jards voltou a gravar um disco de inéditas depois de um longo e tenebroso inverno. E valeu a empreitada!

- Elza Soares (tem 90 anos) / Disco: Do cocix até o pescoço (2002)

Deixando o samba um pouco de lado, Elza retoma e revigora sua carreira. O diálogo com compositores da nova geração resultou em uma ótima aceitação da crítica e público. Elza gostou tanto do resultado que mantém a fórmula até hoje.

- Ney Matogrosso (tem 79 anos) / Disco: Vagabundo (2004)

O melhor álbum da carreira de Ney Matogrosso tem a companhia fundamental do grupo Pedro Luis e a Parede. Reportório certeiro! Desde Secos e Molhados que Ney não encontrava uma segunda voz (Pedro Luis) que encaixasse tão bem a sua.

- Caetano Veloso (tem 78 anos) / Disco: Cê (2006)

Caetano enveredava para uma velhice artística tediosa, usando terno e cantando versões de Peninha e clássicos norte-americanos, quando descobriu que os amigos de seu filho, Moreno, eram bons músicos. Calcado numa formação de banda de rock, Caetano fez um disco despojado, que figura entre os melhores de sua vasta discografia.

- Erasmo Carlos (tem 79 anos) /Disco: ... Amor é isso (2018)

O início dos anos 2000 foi libertador para Erasmo. Ele, enfim, buscou novos parceiros musicais, praticamente abandonando a dupla com Roberto Carlos. Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Nando Reis, entre outros, compuseram com ele. Em ... Amor é isso sua voz está fraca, frágil. O que dá um tom honesto e belo ao disco, porque a essa altura não é necessário mais falsear nada.

- Renato Teixeira (tem 75 anos) / Disco: AR (2015)

Em parceria com Almir Sater. Teixeira é dono uma bela e desconhecida discografia, porém, é reconhecido como compositor (Tocando em frente, Romaria, Frete). Em AR, ele se mostra especialmente inspirado. Os temas são os mesmos: o homem do campo, a natureza, a vida fluindo devagar. Disco feito para se ouvir com atenção, saboreando cada verso.

- Monarco (tem 87 anos) / Disco: De todos os tempos (2018)

Segundo o jornalista João Máximo, Monarco "é o mais legítimo representante de um samba que se mantém vivo, resistindo a agonias". Seu mais recente disco confirma essa afirmação. Um clássico, talvez, fora de seu tempo - onde o samba de raiz já não comove muita gente. Mas, daí, o problema não é de Monarco e, sim, do próprio tempo.

quarta-feira, 10 de março de 2021

Na Natureza Selvagem - Trecho

 


O sol surgiu. Enquanto desciam das cristas reflorestadas acima do rio Tanana, Alex olhava para o terreno pantanoso, coberto de juncos e musgos e varrido pelo vento que se estendia para o sul. Gallien se perguntava se não teria dado carona para um daqueles birutas dos outros 48 estados do Sul que vinham para o Norte realizar as arriscadas fantasias de Jack London.

Há muito tempo que o Alasca atrai sonhadores e desajustados, gente que acha que a vastidão imaculada da Última Fronteira irá preencher todos os vazios de sua vida. Porém, o mato é um lugar que não perdoa, que não dá a mínima para a esperança ou o desejo.

"As pessoas de fora", relata Gallien com sua fala arrastada e sonora, "pegam um exemplar da revista Alaska, folheiam e ficam pensando: 'Ei, vou para lá, viver da terra, levar uma boa vida'. Mas quando chegam aqui e entram de verdade no mato, bem, aí não é como a revista tinha contado. Os rios são grandes e rápidos. Os mosquitos comem você vivo. Na maioria dos lugares, não há muitos animais para caçar. Viver no mato não é um piquenique."


segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

We Are The People - Poema de Lou Reed na voz de Iggy Pop

Poema de Lou Reed, escrito em 1970 e até então inédito. Iggy Pop o gravou em Free (2019) acompanhado pelo trompete e piano de Leron Thomas.

Um trecho do poema diz mais ou menos assim

Nós somos as pessoas sem direito/ Nós somos as pessoas que conheceram apenas mentiras e desespero/ Nós somos as pessoas sem país, sem voz ou espelho


domingo, 17 de janeiro de 2021

O Velório – Conto de Bernardo Kucinski


Um enterro especial requer um caixão especial. O velho Antunes escolheu o modelo mais bonito. Um ataúde de imbuia maciça munido de braçadeiras e fechos de bronze, com acabamento em laca da Índia. Para o velório, encomendou quatro velas grandes em castiçais de prata sobre colunas de alabastro. E uma coroa de flores com faixa de seda azul e branca na qual mandou escrever: “Ao Roberto, dos seus pais, tios e irmãs, que nunca te esqueceram”.

Na parede dos fundos da sala, transformada em câmara mortuária, um pouco acima da altura do caixão, Antunes mandou pendurar um retrato do filho tirado na sua formatura, no qual ele está ligeiramente de lado, de modo a ressaltar seu perfil anguloso. O filho tinha olhos negros como os do pai, cabelos ondulados, lábios grossos e queixo saliente. Puxou o pai, o velho não se cansou de repetir esses anos todos.

Era uma fotografia pequena que ele pediu ao japonês da loja Kodak para ampliar. Preferiu essa a outro retrato, bem maior, do filho com toda a turma de formandos, por causa da beca e do destaque aos traços enérgicos. O Kazuo precisou refotografar, porque não havia negativo. Roberto era o filho mais velho. Formara-se em engenharia civil.

Antunes acabou de completar noventa anos. A família é longeva. Sua irmã Hermínia, que chegou cedinho e ajudou a montar o velório, está com oitenta e sete anos; as outras duas irmãs têm uma oitenta e quatro e a outra oitenta e um anos. O irmão mais velho morreu no ano passado com noventa e três. Foi quando ele decidiu fazer o enterro do filho. Pensou: nosso limite é entre noventa e noventa e três. Meu irmão, Deus já levou. Logo será minha vez. Não quero morrer sem enterrar o meu Roberto.

Explicou a ideia à patroa. Devota, dona Rita foi consultar o padre Gonçalves, que não disse nem sim nem não; pediu tempo para poder consultar o bispo. Na semana seguinte, o padre explicou que, nas circunstâncias, não oficiaria missa de corpo presente nem de sétimo dia, mas levaria conforto à família no velório e no sepultamento.

Ao contrário do marido, que se tornou um homem seco e calado, dona Rita ainda chora quase todas as noites a ausência do filho. Também por isso o velho Antunes decidiu fazer o enterro. Pela sua Rita, pelas irmãs do Roberto, pela família toda. Os mortos têm que ser enterrados.

As vizinhas também vieram cedo. As irmãs Mercedes, do lado de baixo da rua, e a Diva, do lado de cima, ajudaram na preparação dos salgadinhos e sanduíches. As Mercedes são solteironas e vivem sós. No começo fofocaram sobre o sumiço do Roberto, depois não. A Rita diz que não foi por maldade. A Diva sofreu como se fosse parente; a filha dela, a Cristina, era ligada ao Roberto. Fizeram o grupo escolar na mesma classe, depois o ginásio. Iam juntos, voltavam juntos. Não chegaram a namorar, talvez até porque fossem próximos demais, quase irmãos.

Às dez horas chegaram de Campinas as filhas, Célia e Celina, com os genros e os netos pequenos. Vieram em dois carros, em caravana. Duas horas de viagem. No caminho entraram na chácara das flores e compraram ramalhetes de rosas vermelhas. Elas eram adolescentes quando o irmão desapareceu; tiveram muita dificuldade em entender o que se passava, principalmente Célia, a menor. Os pais não explicavam. Criou-se um segredo de família. No telefone, só falavam aos cochichos.

Primeiro, não queriam que elas soubessem. Depois, quando elas viram a pequena notícia no jornal, pediram que nunca tocassem no assunto com as amigas, com os vizinhos, com ninguém. Diziam que era para o bem delas e de todos. Esse segredo as tornou ainda mais ligadas. Só muito tempo depois é que os pais contaram o pouco que sabiam. Os velhos nunca voltaram a ser como antes, viraram outras pessoas, distantes, tristes. Nos últimos anos, com a vinda dos netos, voltaram a sorrir.

Logo chegam mais moradores da ladeira, com seus filhos e netos. Crianças correm pela casa toda. Deixa correr, diz o velho Antunes. Quero um velório alegre, como era o Roberto. Mas velório é sempre solene. Os homens formam rodas austeras e conversam a meia voz. As mulheres ocupam as cadeiras ao longo das paredes e falam aos cochichos.

As irmãs Mercedes circulam as bandejas com os salgados, os sanduíches e copos de guaraná. Aos poucos as conversas se tornam mais animadas. Alguém critica a devassidão nos programas de televisão. A Maria bordadeira, do outro lado da rua, comenta a decisão da Prefeitura de trazer o asfalto até o bairro. Diva trouxe um álbum de fotografias em que aparecem o Roberto, a filha dela e outros rapazes e moças. Sucedem-se comentários e lembranças sobre esse e aquele.

Às onze e pouco chega o Teixeira, cunhado do Antunes, irmão mais velho da Rita, alto e gordo. Veio de Bauru com a mulher, dona Isaura, uma senhora quieta que se mostra sempre submissa. Teixeira é abonado, dono de fazenda. Uma ocasião recusou um pedido de empréstimo do Antunes para cobrir um ano de safra ruim. Era ninharia. Ficaram dez anos sem se falar. Mas quando o Beto desapareceu o Teixeira se mexeu mais que ninguém. Era gamado no Roberto, seu primeiro sobrinho. Chegou a ir para Brasília falar com uns homens que ele conhecia. Não adiantou.

Teixeira dá um abraço no Antunes, outro na Rita; por alguns minutos o vozeirão dele domina o velório. Depois se aproxima de onde está montado o caixão, permanece um tempão olhando o retrato do Roberto na parede. Balança a cabeça, inconformado. Isaurinha conversa com Rita na cozinha. As duas se fitam por um longo minuto. Depois se abraçam. Ambas são mais novas que os maridos, mas parecem mais velhas. 

Às duas da tarde a casa está cheia e o povo transborda pela calçada, para cima e para baixo da ladeira. O sepultamento está marcado para as quatro, antes da chuva. Circulam mais bandejas com sanduíches, broa de milho e cuscuz de sardinha. É quando chega o Dino violeiro, amigo de infância do Beto, acompanhado de outros dois, um de nome Alcides e o outro, Mário. O Dino fez até o colegial. Jogou muito futebol com o Beto. Iam juntos à matinê. No sábado à noite paqueravam as moças em torno do coreto. Quando o Beto foi para São Paulo fazer faculdade, Dino ficou no armazém ajudando o pai. Depois formou esse conjuntinho de violeiros.

Os músicos entram para cumprimentar o velho Antunes e dona Rita. Depois se aproximam do ataúde, tiram os chapelões de palha, respeitosos. Fitam a fotografia na parede, depois saem dando passadas cuidadosas, cumprimentando as outras pessoas à direita e à esquerda com um menear de cabeça. Lá fora, depois de algum tempo, tocam uma toada triste com um refrão que diz “Nossa vida passa, é como fumaça…”. Lá dentro os convidados comentam acontecimentos. Quem casou, quem descasou. Quem teve filho. O farmacêutico Diogo conta mais um de seus causos. A Diva continua circulando o álbum de fotografias. Do quintal emana um aroma de churrasco. É o Alcebíades, da banca de jornal, churrasqueiro fanático. Os violeiros agora vão para o quintal, onde há mais espaço. O velho Antunes manda que cantem música alegre e eles respondem com o samba da fita amarela: Quando eu morrer, não quero choro nem vela, quero uma fita amarela, gravada com o nome dela.

Aparecem duas senhoras com jarras de refresco de limão e abacaxi. Alguém distribui picolés à garotada. Às três da tarde tem-se a impressão de que todos os viventes da cidade estão no velório do Roberto, inclusive os cachorros e os gatos. Comentam que nunca houve um velório tão concorrido. Não se vê ninguém nas outras ruas, na praça da matriz, na rodoviária. Virou cidade fantasma. É quando surge lá longe, no topo da ladeira, meio esfumaçado como se fosse assombração, o Chevrolet preto da Prefeitura. O carro se aproxima lentamente e para um pouco antes do terraço dos Antunes. Descem o prefeito Belisário, o delegado de polícia, dr. Costa, e o padre Gonçalves.

À chegada das autoridades, o povo abre espaço. Os novos visitantes entram, o prefeito à frente; acenam para uns, inclinam a cabeça para outros. Um de cada vez, oferecem condolências ao velho Antunes, depois se dirigem ao ataúde. Fitam a fotografia do Roberto longamente em postura de reverência. Conversam um pouco entre si em voz baixa. Dona Rita vem da cozinha e cumprimenta o prefeito e os demais, agradece a visita, pede bênção ao padre. Alguém oferece refresco de limão às autoridades. Padre Gonçalves ergue o braço, pedindo silêncio, e sem esperar dá início a uma oração pelos mortos: “Pai santo, Deus eterno e Todo-Poderoso, nós Vos pedimos por Roberto Antunes, que chamastes deste mundo. Dai-lhe a felicidade, a luz e a paz… que sua alma nada sofra…”. Algumas vozes acompanham, hesitantes, a oração não muito conhecida. “Perdoai-lhe os pecados para que alcance junto a Vós a vida imortal no reino eterno. Por Jesus Cristo, Vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém.”

Às quatro em ponto tem início o saimento. À frente do cortejo, o ataúde é sustentado pelo tio Teixeira, pelo prefeito, pelo Dino violeiro e pelo farmacêutico Diogo. O velho Antunes acompanha, com a mão direita sobre o caixão. Faz força para caminhar ereto e com passadas firmes. Sente-se exausto mas feliz. Seu sonho de tantos anos finalmente se realiza; já pode morrer em paz. E toda a cidade compreendeu. Isso foi o mais importante. Toda a cidade. Até o padre Gonçalves, que primeiro lavou as mãos, depois deu a bênção. É tanta gente que os últimos do cortejo só alcançam a cova dez minutos depois dos primeiros. No céu, bem acima do cemitério, as nuvens engrossam. As duas irmãs do Roberto, Célia e Celina, sobem numa pedra e pedem silêncio para dar início à cerimônia. Passam então a ler uma memória sobre Roberto. Celina lê um parágrafo e passa para Célia, que lê o seguinte. Falam de como ele era quando menino, de suas travessuras, depois de seus sonhos de adolescência, do drama do vestibular, da alegria de ter passado, da colação de grau. Algumas pessoas soluçam. Falam brevemente do sofrimento da família. Depois, em uníssono, agradecem: muito obrigada pela presença de todos vocês.

A um sinal de Antunes, o caixão é baixado à sepultura e padre Gonçalves repete a oração pelos mortos. Pessoas passam rente à cova e atiram punhados de terra, mulheres jogam as rosas vermelhas trazidas pelas irmãs. O coveiro João assume, despejando muito depressa com a pá quantidades robustas de terra. O tio Teixeira de Bauru pega outra pá e apressa o sepultamento. As pessoas começam a dispersar. Caem os primeiros pingos de chuva. O caixão está enterrado. Dentro dele estão um paletó e um par de sapatos do Roberto. Seu corpo nunca foi encontrado.

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O conto integra o livro Você Vai Voltar Pra Mim, publicado em 2014 pela Cosac Naify