sexta-feira, 12 de abril de 2019

Jambolão


O outono voltou mais uma vez. Eu sei disso porque não há mais jambolão emporcalhando as calçadas com tinta roxa e cheiro forte. A lataria dos carros dos motoristas desatentos, que só querem uma sombrinha, estão salvas. O fato é que tem árvores demais dessa fruta na cidade. Os pássaros não dão conta. Ou, talvez, nem gostem. Provavelmente, prefiram butiá e pitanga.

Dizem que chá de jambolão é bom para diabetes. Sua tinta tenebrosa pode ser usada em roupas. Há até lendas hindus que citam-no. Um colega de trabalho disse que o caldo dá uma boa chimia. Tem uma avó que faz. "E se deixar curtir na cachaça?", perguntei. Disso ele não sabia. "É que butiá e pitanga sentam bem com cachaça", insisti. Ele também não sabia nada sobre isso. Não gostava de cachaça. Já uma amiga, para minha absoluta surpresa, nunca tinha reparado. Levei-a até um pé. Provou. Achou bom. "Mas é travoso", advertiu. "Se é travoso, é ruim", impliquei.

Lembrei disso enquanto admirava o resquício de uma mancha de jambolão no pátio, no chão de cimento queimado, enquanto meu tio e meu primo discutiam. Eles estavam muito compenetrados, em uma busca frenética por argumentos e ter razão. Era como se eu não estivesse ali. De certa forma, eu não estava mesmo. Divagava sobre o jambolão. E eles seguiam. O que motivou a rusga foi a denúncia de uma professora que estaria doutrinando os alunos a serem comunistas. Meu primo a defendia. Meu tio a acusava. Só que a coisa estava fora de controle.

"Já que tu sabe tudo, me diz onde o comunismo deu certo?", meu tio questionou, impaciente.

"Na Rússia!", respondeu meu primo, agilmente.

"Mas como deu certo se a União Soviética não existe mais? Ou tua professora sonegou essa informação?".

"Eu falei que deu certo, não que segue dando".

"Então, onde o comunismo segue dando certo?".

"Os índices nas áreas da Educação e Saúde de Cuba são ótimos".

"Cuba?!".

"Sim".

"Mas Cuba é uma ditadura!".

"Qual é o problema? Tu disse que a ditadura aqui no Brasil era boa!"

Assim, eles iam. Até que um choro agudo interrompeu meu segundo delírio. Desliguei a torneira. Esperei a água descer por completo. Sequei as mãos no pano. Deixei a louça com espuma na pia e fui acudir meu guri. Seu bico havia caído no chão e ele acordou um tanto assustado no berço. Coloquei em sua boca outra vez. Embalei-o um pouco em meu colo. Logo depois, o menininho voltou a dormir. Olhei sua caretinha sonolenta. Um dia, ele terá seus próprios argumentos e vai me confrontar. Um dia, talvez, ele reflita sobre o jambolão. Vá saber? Voltei à realidade. Peguei a caneta, abri o caderno, aproveitei a luz da cozinha e resolvi escrever. Comecei com "o outono voltou mais uma vez", porque realmente é outono.

--------------------------------

Crônica publicada originalmente no site Mínimo Múltiplo

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Um Silêncio Avassalador - Conto a Conto


Vivendo em Hollywood

Esse é um dos contos do livro que foi publicado primeiro na internet. Saiu na revista Flaubert. Nele, predomina o ritmo, a fluidez. A temática é uma resposta aos escritores que imitam Charles Bukowski e John Fante, dois grandes que admiro. Quis enfatizar que não há glamour no fracasso, como os imitadores dos autores citados fingem existir. Como quase tudo desse livro, tem um pouco das vivências e experiências que tive. Não sei o motivo, mas quando estava trabalhando a edição, pensei que ele seria uma boa abertura de livro. E o editor concordou.

Um Acordo Tácito

Minha tendência é acreditar que o personagem principal não é quem narra essa história. A mulher, sim, é o centro do texto e nela reside todas as perguntas - porque respostas não existem nem tenho a pretensão de oferecer. É um conto duro, pesado. É a solidão corroendo e sombreando tudo. A cena final, um tanto absurda, realmente aconteceu.

Quando fui Puta

Aqui a mulher aparece claramente como dona da situação, ditando as regras, dominando os homens e cedendo ao instinto mais natural e selvagem que existe. A gula e a gana da personagem é idêntica a de uma Kelly Stafford.

Aconteceu na Prússia

Uma crítica a classe artística nacional. Uma queixa a sua sede por editais e verbas da máquina pública para conseguir realizar seus projetos. O que essa postura patriarcal e paternalista implica? O tom um pouco "cabeça" destoa dos demais textos. O conto Geografia também tem esse mesmo enfoque contemplativo. O que acaba equilibrando um pouco o livro nesse sentido. É a história mais truncada. Contudo, foi a mais fácil de ser escrita. Acordei realmente no horário descrito no conto, 6h20, e fui escrevendo. Em menos de uma hora estava tudo pronto. E pude voltar a dormir.

Uma Tarde de Chuva na Praia

É a história que mais gosto. O livro já estava editado, com data para ir à gráfica, quando o conto me surgiu. Senti que ele cabia no conceito de Um Silêncio Avassalador. É uma rememoração de uma experiência infantil, do conhecimento do sexo, do nosso corpo. Uma troca. Só há inocência nos personagens. Já nos leitores... Enviei ao editor ele se assustou um pouco. "Não poderemos usar isso aqui. Tu entende, não é mesmo?". Eu não entendi. Bati o pé e ele cedeu.

Geografia

Um texto que teve um bom tempo de maturação. O conto foi publicado primeiro na internet, em 2014, no site Mínimo Múltiplo. Deu para revisar com calma e perceber como ele envelheceu razoavelmente bem. A história remete a um caso comum em salas de aula. O momento que o professor dá sermão e divaga, fugindo dos temas propostos pela disciplina.

Ruiva

Mais uma vivência. Quem nunca foi no cinema com uma companhia e, na verdade, queria estar fazendo outra coisa? O filme que está passando, e não é explicitamente citado, é Sob o Domínio do Medo. O medo também remete ao personagem masculino do conto.

Disfunção

Esse surgiu de uma sacada, como um poema que inicia de um verso. A história veio do mote de um homem que estupra skinheads por tesão. A partir disso, fui construindo as situações, como se fosse um roteiro de filme de ação. Tem uma inspiração de Rubem Fonseca, autor que hoje não me diz mais muita coisa. Ele foi publicado antes na revista Sexus.

A Ginasta

É o texto mais longo do livro. Escrevi quando tinha 20 e poucos anos, entre 2006 e 2007. Tirei da gaveta e retomei a leitura quando estava selecionando contos para o livro. Foi uma surpresa positiva. Não senti a vergonha habitual ao ler um texto velho. Não foi como ouvir a própria voz num gravador. Foi até prazeroso. Mesmo extensa, não me parece uma história cansativa. Ele transcorre com naturalidade, tem os altos e baixos de uma carreira esportiva, as descobertas sexuais da adolescência, assim como os desencantos que a maturidade trás. Demandou uma boa pesquisa sobre ginástica artística. Na época, a jovem e chorosa Jade Barbosa foi uma das inspirações para a personagem principal.

Tudo que se Passa na Cabeça Antes de uma Noite de Amor

Retrata a tensão prévia de um encontro, como deixa claro o título. Para mim, é uma tentativa de tratar a homoafetividade com naturalidade. A falta de um final fechado foi um diferencial que valorizou o conteúdo. O texto foi o escolhido pelo editor como amostra grátis para os leitores do site da Editora Moinhos.

Noivinha

Foi outro que resistiu ao tempo. Também foi escrito quando tinha 20 e poucos. Hoje, posso afirmar: é o que menos gosto. Ao todo, cinco contos foram extraídos na revisão final. Esse não me recordo o motivo de ter ficado... Talvez, porque seja uma história sobre delírio. Cabe no contexto do livro, mas me parece menor em qualidade que os demais.

Vento Mistral

A gênese do texto foi publicada em uma coletânea na internet: a Antologia Clint Eastwood, organizada pelos escritores Diego Moraes e André Timm, que me convidaram a participar. Portanto, uma história sob encomenda. Rolou aquele conflito de inspiração x prazo de entrega. Algo tão comum no jornalismo, mas complexo de lidar na Literatura. Saiu um conto reflexivo. Um dos mais belos do livro. Não tenho coragem, nem vontade de relê-lo. Mas ainda sinto a história, porque Clint, na verdade, foi só uma desculpa para falar de meu avô.

Como um Filme de Almodóvar

A história mais verídica do livro. Só transcrevi uma vivência que tive numa noite em Porto Alegre. O título do livro está em algum lugar desse conto e não foi intencional. Só tive a consciência disso na edição.

Angélica Bella

Vendo em perspectiva, esse conto é uma evolução, bem mais violenta, de Uma Tarde de Chuva na Praia. O sexo, como nas fitas VHS, é bem mais explícito e selvagem. Da inocência, resta muito pouco. Os homens, enfim, assumem que são selvagens.

A Vez que Minha Mãe Mandou Trancar a Geladeira

Outra vivência. A mais explícita do livro. Só não é autoficção porque não tem meu nome. Entretanto, meu bairro e as referências da época estão todas aí. Uma história bonita e triste. Um fim de livro digno.