segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Eu sou um dos imbecis do Umberto Eco


Primeiramente, glória a Deus e à Internet.

Explico.

Partindo do pressuposto que não sou dinheiro para que todos gostem de mim e que, segundo Umberto Eco, "as redes sociais deram voz aos imbecis", concluo que sou um desses que ganharam a tal voz.

Porque, para alguém que não gosta de mim, das minhas opiniões, do meu texto, evidentemente, eu sou um imbecil. Um asno completo, que deveria se calar ou se recolher a sua insignificância. As redes geram essa ira, essa dicotomia, essa sandice. Quem não gosta fica fulo. Assim deve ter acontecido com Eco, antes de talhar a tese.

Minto.

As redes não geram nada. Mas isso é outro assunto.

Que sou um imbecil, portanto, é fato. Mas não me calo, tampouco me recolho, pois as redes sociais deram voz aos imbecis. E como todo bom néscio, levo frases de intelectuais e filósofos ao pé da letra, não preciso ler mais que uma máxima ou manchete para saber e, prontamente, contrapor. Já se eu concordar, compartilho.

Para tipos como eu, que afrontam Umberto Eco, Lênin cunhou: "A liberdade é uma coisa tão preciosa que deveria ser racionada".

E Lênin deve ter dito isso a sério.

Como foi comentado, mais de uma vez, eu tenho ciência em qual categoria me enquadro. Contudo, há quem me defenda. "Heresia é apenas um outro nome para liberdade de pensamento", cravou Graham Greene.

Ou seja, além de tudo, sou um tipo de burro que blasfema. O primeiro comentário desse texto será "Quem você pensa que é para questionar Umberto Eco?".

Eu já disse. E acrescento o seguinte.

Hoje, parece um saco essa avalanche de gente que fala pelos cotovelos. Porém, recordar é viver. Mesmo que ninguém se lembre mais, é preciso afirmar veementemente que era muito mais chato viver em "silêncio". Dependíamos apenas da figura onipotente do formador de opinião ou do veículo de imprensa para nos sentirmos ouvidos e representados.

Aos saudosos, aos inconformados, eu sugiro.

Ainda existe a possibilidade de não ler o que não se gosta nas tais redes (opções bloquear, desfazer amizade, silenciar) ou de seguir consumindo tal formador de opinião. Ele ainda existe. Tem jornais, revistas, rádios e TVs por aí. De tudo que é lado, vertente, ideologia. Tem gente boa produzindo nesses meios.

Em último caso, dá para usar o computador só para responder e mandar emails, entrar no site do jornal preferido ou ver pornografia. Também é possível utilizar o telefone celular para as mesmas funcionalidades do computador ou, pasmem!, só para fazer e receber ligações.

Mas.

Quem não suporta o ruído dos tolos não se conforma. Além de se escorar na frase-tese de Eco, eleva o tom e aponta o dedo, alertando ou acusando as fake news. Um grito em comunhão com a mídia tradicional, que está em uma cruzada contra essa prática.

E onde as notícias falsas se propagam?

Nas redes. Bingo! Achamos os culpados. Os imbecis. Entretanto, sabemos que não é bem assim. A moeda tem outro lado. E a mídia tradicional tem seus interesses e usa e abusa de sofismas (sendo até conivente com alguns casos) para alavancar/destruir reputações e se vender como relevante. Daí, não é fake news, logicamente. "Veja bem, erros acontecem...".

Sei.

Sobre isso, o jornalista americano A.J Liebling sentenciou."As pessoas não param de confundir com notícias o que lêem nos jornais".

Eu sei que não podemos levar frases ao pé da letra, não é mesmo? E também não vamos demonizar ninguém, por favor.

Voltando ao que interessa.

Deixa quem gosta de palpitar, palpitar. A plataforma, ou os meios, nesse caso, não tem culpa de nada.

Enfim. Eu vou na fé.

Como eu gosto de escrever minhas coisinhas e ler outras tantas, de amigos e inimigos, nas poucas preces que faço, aquelas das noites de leve desespero, eu fecho os olhos e tento não reclamar nem pedir demais e sempre, ao fim e ao cabo, agradecer a minha saúde, de minha família e a internet por me dar esse espacinho para falar minhas bobagens.

Amém.

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P.S.: Se mesmo assim, eu estiver errado, sei que "Deus me perdoará. É a sua profissão" (Heinrich Heine).

Fora o aforismo de Umberto Eco, os demais foram extraídos do livro de citações O Melhor do Mau Humor (edição de Ruy Castro, Companhia das Letras, 1989).

Texto originalmente publicado no site Mínimo Múltiplo.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

No Máximo, de Umas Três


Velho Zé vendia churrasquinho. A gente conversava e eu gostava de ouvir o velho. Certa feita, falávamos das coisas do coração. Eu me queixava. Tava numa fossa desgraçada. Praguejava e colocava todas mulheres num balaio, porque, para mim, elas não prestavam. Além disso, eram confusas demais. Ele escutou tudo e não disse nada.

Então, perguntei.

- Vem cá, Zé. Tu que já viu muito. Tu entende as mulheres?

- Olha, até entendo. Mas, no máximo, de umas três.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O Cachorro do Mendigo


Relação que tenho com a Literatura é a mesma do cachorro com o mendigo.

Olhando de fora, não faz sentido algum o bicho perseguir a pobre criatura humana pra cima e pra baixo, todo o dia, dormindo em brinquedos do parque ou em carrinhos de supermercado, e recebendo as migalhas das migalhas.

Mas o certo é que o cão, de alguma forma que não se explica direito, vê o coração do mendigo. E acaba alimentando uma boa dose de esperança naquele sujeito.

Assim, sem que o animal perceba, seguir ao seu lado não parece uma sina.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

As Canções que Você Fez Pra Eles - Músicas que Roberto Carlos Deu Para Outros Gravarem


Um breve compilado de canções que Roberto Carlos compôs e deu para outros artistas gravarem. A maioria delas foi feita em parceria com Erasmo Carlos. Algumas são sucessos que ninguém imagina que foram criados pela dupla.

Lembranças - Kátia (1979)



Kátia, a cantora cega, fez um grande sucesso nos anos 80 e 90. Ela foi apadrinhada por Roberto Carlos, que a levou em diversos programas de auditório e nos seus próprios shows Brasil afora. Além de Lembranças, que no período figurou no ranking da mais tocadas, o Rei compôs mais cinco músicas para Kátia, todas assinadas em parceria com o seu amigo Erasmo Carlos.

Uma delas foi Qualquer Jeito, versão de It Should Have Been Easy, de Bob MacDill, sucesso na voz de Anne Murray. A música é reconhecida até hoje pelo refrão "não está sendo fácil".

Meu Grito - Agnaldo Timóteo (1967)



Clássico na voz de Agnaldo, Meu Grito foi composta por Roberto Carlos, sem seu parceiro habitual. Como a maioria de suas letras, nessa também há um tom pessoal. Os versos falam de seu relacionamento com Nice. O motivo desse tal grito era a impossibilidade do Rei se casar com ela, pois na época a lei brasileira não permitia casamento para desquitados (que era o caso de Nice). A Lei do Divórcio entrou em vigor em 1977.

A Volta - Os Vips (1966)



Foi gravada pelos irmãos Ronaldo Luís Antonucci e Márcio Augusto Antonucci, este falecido em 2014. A dupla Os Vips era reconhecida pelas versões dos Beatles e outros sucessos estrangeiros. Em sua discografia, gravaram muitas canções de Roberto e Erasmo que nunca saíram nos discos dos dois, como as faixas Emoção, Faça Alguma Coisa pelo Nosso Amor, Não Adianta Ficar Me Esperando, Que Bobo Fui Eu e a primeira gravação de É Preciso Saber Viver, de dezembro de 1968. Além delas, Os Vips lançaram A Despedida, música composta só por Erasmo, e Largo Tudo e Venho Te Buscar, composição somente de Roberto.

Uma curiosidade. A Volta foi gravada por RC somente em seu disco de 2005 e foi tema da novela América, da Globo.

Trilha sonora da novela O Bofe (1972)



Roberto e Erasmo Carlos assinaram a trilha sonora da novela O Bofe, da rede Globo. A trama de Bráulio Pedroso foi ao ar em 1972. O disco, produzido por Eustáquio Sena e com arranjos de Waltel Blanco, é considerado cult atualmente. Roberto e Erasmo não cantam nenhuma música, os intérpretes são Elza Soares (Rainha da roda), Os Vips (Grego só) e Maria Creuza (Só de Brincadeira), entre outros. Tem até Nelson Motta cantando! A faixa é Madame Sabe Tudo.

Da para se considerar como uma das obra mais experimentais deles. Um álbum que serviu de ponto de virada na carreira de ambos. A partir daí, Roberto abraçou as músicas românticas de vez e Erasmo enveredou mais para a MPB. O tempo do iê-iê-iê e do rock ficou para trás. Por esses motivos, O Bofe é um disco singular na carreira de RC.

Papai, não foi esse o mundo que você falou - Toni Tornado (1971)



No início da década de 70, Roberto Carlos estava vidrado na soul music americana de James Brown. Tinha composto, em parceria com Erasmo, o hino Jesus Cristo. "Nós queríamos apenas fazer um som gospel com a levada que eles tocavam lá. Roberto nem era religioso na época", disse Erasmo, na biografia não autorizada de RC. Logo após, veio outra pedrada soul, Todos Estão Surdos.

Papai, Não Foi Esse o Mundo que Você Falou tem essa mesma pegada. Os versos não poderiam ser mais atuais: "Abro o jornal vejo guerrilhas/ o sangue deixa a sua trilha/ vejo protestos, ocupação/ vejo misérias e traição/ Prevejo a morte da alegria/ a noite vai vencendo o dia".

A música é a nona faixa do disco de estréia de Toni Tornado, que também tem outra canção da dupla Roberto e Erasmo, a bela Não Lhe Quero Mais. Na época, o álbum ficou marcado pelo clássico BR-3, mas vai muito além.

Dela - Cyro Monteiro (1969)



Roberto e Erasmo já fizeram samba. Quem acompanha a carreira dos dois sabe. Tem Cama e Mesa (Roberto), Coqueiro Verde (Erasmo)... Contudo, todas as composições deles nesse ritmo não devem caber em uma mão.

Seu namoro com o ritmo do Brasil começou com participações em festivais de música, onde RC agregou outros estilos ao seu modo de compor e ver a música. Em 1967, ele participou do III Festival da Música Brasileira, interpretando Maria Carnaval e Cinzas, de Luiz Carlos Paraná. Em seu disco de sobras e lados b, San Remo 1968, gravou Ai que Saudades da Amélia, Ataulfo Alves e Mário Lago.

Dessas experiências, surgiu a vontade e fazer um samba. Assim, surgiu Dela, composição de Roberto e Erasmo, que foi gravado por Cyro Monteiro, quatro anos antes de falecimento.

Mais músicas de Roberto Carlos que outros gravaram


  • Meu Nome é Gal - Gal Costa (1969)
  • Preciso Urgentemente Encontrar um Amigo - Mutantes (1970)
  • Estou Começando a Chorar - Wilson Miranda (1967)
  • É Difícil Amar na Minha Idade - Ed Carlos (1969)
  • Um Quilo de Doce - Wanderléa (1965)
  • Procurando um Broto - Cleide Alves (1963)
  • Não Adianta Nada - Nichollas Mariano (1967)
  • O Muro de Berlim - The Bells (1966)
  • Quando a Cidade Acorda - Gerson King Combo (1970) 
  • A Festa do Bolinha - Trio Esperança (1965)
  • Consideração - A Bolha (1977)
  • Telefonema - Cidinha Campos (1967)
  • Juro Por Deus - Rosemary (1965)
  • Você Já Morreu e Se Esqueceu de Deitar - Silvinha (1971)
  • Matando A Miséria A Pau - Lafayette e Dina Lúcia (1965)
  • Toque Balanço, Moço! - Golden Boys (1965)
  • Não Presto Mas Te Amo - José Roberto e Demetrius (ambos gravaram em 1967)
  • Tenho um Amor Melhor que o Seu - José Roberto (1967) e Antônio Marcos (1968)
  • Promessa - Wanderley Cardoso (1966) - Essa foi regravada por RC em seu disco de 2005
  • Duas Bonequinhas - Sérgio Murilo (1964)
  • Vou Fechar a Porta - Luiz Carlos (1966)
  • Reynaldo Rayol - Aniversário do Meu Bem (1963)
    Optei por não citar mais de uma canção do mesmo artista. De todos os nomes elencados no texto, Wanderléa (oito) e Cleide Alves (sete) foram as cantoras que mais gravaram músicas "doadas" pelo Rei. 

    terça-feira, 9 de outubro de 2018

    O Dia Em Que o Papa foi a Melo - Aldyr García Schlee

    Autor brasileiro tem forte ligação com o Uruguai

    Trecho do Conto II, que fala sobre a expectativa de Jesús María, um cego, morador de Melo, no dia em que o Papa chegou na cidade.

    (...)

    O Papa virá num ardor, carregado nos braços como os santos em procissão. As pessoas desafiarão o rosário entre ave-marias e padre-nossos. Haverá aleijados e doentes à espera de um milagre.

    Jesús María faz força para imaginar o Papa sem óculos de Pio XII, faz força para vê-lo como via Nossa Senhora dos Passos levado ao encontro da Virgem. Jesús María pensa nos desenganados de toda a sorte, em gente carregada em catre, levada nos braços, gente de muleta, cadeira de rodas, mancos, pernetas, surdos, mudos, fanhos... E não pensa em milagre.

    Os olhos sem luz tinham sido roídos, tinham sido comidos, e já não existia neles uma mínima fagulha que por milagre lhes restituísse os brilhos e as cores, as formas - que povoavam o seu mundo de lembranças e sonhos e que eram, ao mesmo tempo, consolo e desesperança. Ele vivia na certeza de que só a memória lhe permitia ver, vivia no medo de que se apagasse essa memória que lhe ensinara definitivamente a enxergar para trás; ele vivia certo de que também a imaginação lhe permitia ver, mas temia que ela se fosse - a imaginação que lhe dava a alegria de enxergar para frente. Mas o medo maior que o afligia, e que não contava para ninguém, e que nem explicaria como é que tinha, era o medo de não saber mais enxergar sem lembranças e sonhos com que via nitidamente tudo.

    (...)

    O Dia Em Que o Papa foi a Melo, editora Mercado Aberto, 1999. Livro publicado originalmente em 1991, em espanhol, Ediciones de La Banda Oriental. 

    No link, a jornalista Rosane de Oliveira lê o Conto IV, presente no mesmo livro https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/livros/noticia/2017/11/leituras-da-feira-o-dia-em-que-o-papa-foi-a-melo-de-aldyr-garcia-schlee-cja1hh24l013w01pm2x5ilepu.html

    sexta-feira, 5 de outubro de 2018

    Teddy - Trecho do Conto de J.D Salinger


    Teddy parecia alheio ao fato de que alguém estava de pé junto a sua cadeira, ou mesmo que uma sombra viera projetar-se sobre seu caderno de notas. Alguns passageiros nas fileiras de trás, entretanto, demonstraram possuir menor poder de concentração - e olharam para o rapaz talvez como só uma pessoa deitada numa espreguiçadeira consegue olhar para alguém. Mas o rapaz aparentava ser dotado de uma auto-confiança capaz de durar para sempre, ou pelo menos enquanto ele mantivesse uma das mãos no bolso.

    - Olá - ele disse para Teddy.

    Teddy olhou para cima e responde da mesma maneira ao cumprimento, deixando o caderno de notas checar-se quase que por si próprio.

    - Você se incomoda se eu sentar aqui um pouco? Essa cadeira é de alguém? - perguntou o rapaz, com o que parecia ser uma cordialidade infinita.
    - Bom, essas quatro cadeiras são da minha família, mas meus pais ainda não se levantaram.
    - Não se levantaram? Com um dia desses?

    O rapaz já se tinha sentado na cadeira à direita de Teddy. As cadeiras estavam tão próximas que os braços se tocavam.

    - Mas isso e um sacrilégio. Um sacrilégio total - disse o rapaz.

    Esticou as pernas que eram extraordinariamente grossas nas coxas, quase como o corpo de uma pessoa. Tinha a aparência típica de um americano da costa leste: entre o cabelo cortado à escovinha e os sapatos de lona já muito usados, o uniforme era bastante variado: meias de lã amarelas, calças de mescla cinza, camisa de colarinho, sem gravata, e um paletó que parecia ter sido devidamente amadurecido num dos cursos de doutorado mais prestigiosos de Yale, Harvard ou Princeton.
    - Meu Deus, que dia maravilhoso - disse ele satisfeito, apertando os olhos enquanto voltava o rosto para o sol. - Eu sou um prisioneiro absoluto das condições atmosféricas. Para ser franco, considero qualquer dia de chuva como uma ofensa pessoal. Um dia assim é um verdadeiro maná para mim - acrescentou, cruzando as pernas à altura do tornozelo.

    Sua voz, embora revelasse boa educação, tinha um volume bem superior ao necessário, como se ele estivesse plenamente convicto de que tudo que ia dizer pareceria correto - inteligente, culto, e até engraçado ou estimulante -, tanto para Teddy quanto para as pessoas sentadas nas fileiras de trás, caso estivessem escutando. Olhou de modo oblíquo para Teddy, sorriu e perguntou:

    - E como é que você encara o tempo?

    Seu sorriso não era desprovido de personalidade, mas tinha um que de artificial, refletindo, ainda que indiretamente, seu próprio ego.

    - Você se deixa influenciar demais pelo tempo? - perguntou, ainda sorrindo.
    - Não, nunca encaro o tempo de forma pessoal, se é isso que você quer dizer - respondeu Teddy.

    O rapaz riu, jogando a cabeça para trás, e disse:

    - Ótimo. Aliás, eu me chamo Bob Nicholson. Não sei se disse isso a você no ginásio. Eu sei o seu nome, é claro.

    Teddy virou-se um pouco de lado e repôs o caderninho de notas no bolso lateral do calção.

    - Eu estava vendo você escrever... lá em cima - disse Nicholson, apontando para o lugar em que estivera. - Poxa, você estava trabalhando como um mouro.

    Teddy olhou para ele:

    - Eu estava escrevendo no meu caderno de notas.

    Nicholson sacudiu a cabeça e perguntou, sorrindo, como quem quer puxar conversa:

    - Que tal a Europa? Você gostou?
    - Gostei. Gostei muito, sim.
    - Por onde vocês andaram?

    Teddy curvou-se para a frente e coçou a barriga da perna.

    - Bom, ia demorar muito para dizer todos os lugares, porque nós fomos de carro e rodamos um bocado. Mas eu e minha mãe ficamos mais tempo em Edimburgo, na Escócia, e em Oxford, na Inglaterra. Acho que eu disse, no ginásio, que fui entrevistado nesses dois lugares. Principalmente, na Universidade de Edimburgo.
    - Não, acho que você não me disse. Eu estava mesmo pensando se você não havia feito algum troço desses. E como é que foi? Te apertaram muito?
    - O quê? - perguntou Teddy.
    - Como é que foi? Interessante?
    - Às vezes sim, às vezes não. Ficamos mais tempo do que pensávamos. Meu pai queria chegar a Nova York um pouco antes desse navio. Mas vinham umas pessoas de Estocolmo, na Suécia, e de Innsbruck, na Aústria, para me ver, e nós tivemos que esperar.
    - É sempre assim.

    Teddy olhou para ele diretamente, pela primeira vez, e perguntou:

    - Você é poeta?
    - Poeta? Eu não, Deus me livre. Mas por quê que você perguntou?
    - Não sei. Os poetas sempre encaram o tempo de maneira pessoal. Estão sempre pondo emoções em coisas que não tem emoções.

    Nicholson sorriu e tirou do bolso fósforos e um maço de cigarros. Então, disse:

    - Sempre pensei que fosse matéria-prima que eles usam. Não é principalmente com emoções que os poetas se preocupam?

    Teddy aparentemente não o ouviu, ou não estava prestando atenção. Olhava distraidamente em direção às duas chaminés no convés de esportes.

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    Trecho do magnífico conto de Salinger, que integra o livro Nove Estórias. Teddy é um menino-prodígio de 10 anos. Ele faz uma viagem de navio com a família e, em certo momento da história, divaga com um tripulante sobre filosofia, religiosidade, entre outros temas. 

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    Mais sobre o autor

    Documentário "Salinger", de 2013 - https://www.youtube.com/watch?v=_JSFr7YdKLE

    Conto completo "Um dia ideal para os peixes-banana" - https://www.revistabula.com/683-um-dia-ideal-para-os-peixes-banana/

    terça-feira, 2 de outubro de 2018

    Conversa de Compra de Passarinho - Crônica de Rubem Braga

    Rubem Braga, 1913-1990

    Entro na venda para comprar uns anzóis e o velho está me atendendo quando chega um menino da roça, com um burro e dois balaios de lenha. Fica ali, parado, esperando. O velho parece que não o vê, mas afinal olha as achas com desprezo e pergunta: “Quanto?” O menino hesita, coçando o calcanhar de um pé com o dedo de outro. “Quarenta”. O homem da venda não responde, vira a cara. Aperta mais os olhos miúdos para separar os anzóis pequenos que eu pedi. Eu me interesso pelo coleiro do brejo que está cantando. O velho:

    – Esse coleiro é especial. Eu tinha aqui um gaturamo que era uma beleza, mas morreu ontem; é um bicho que morre à toa.

    Um pescador de bigodes brancos chega-se ao balcão, murmura alguma coisa: o velho lhe serve cachaça, recebe, dá troco, volta-se para mim: “- O senhor quer chumbo também?” Compro uma chumbada, alguns metros de linha. Subitamente ele se dirige ao menino da lenha:

    – Quer vinte e cinco? Pode botar lá dentro.

    O menino abaixa a cabeça, calado. Pergunto:

    – Quanto é o coleiro?

    – Ah, esse não tenho para venda, não…

    Sei que o velho esta mentindo; ele seria incapaz de ter um coleiro se não fosse para venda; miserável como é, não iria gastar alpiste e farelo em troca de cantorias. Eu me desinteresso. Peço uma cachaça. Puxo o dinheiro para pagar minhas compras. O menino murmura: “- O senhor dá trinta…?” O velho cala-se, minha nota na mão.

    – Quanto é que o senhor dá pelo coleiro?

    Fico calado algum tempo. Ele insiste: “- O senhor diga…” Viro a cachaça, fico apreciando o coleiro.

    – Se não quer vinte e cinco vá embora, menino.

    Sem responder, o menino cede. Carrega as achas de lenha para os fundos, recebe o dinheiro, monta no burro, vai-se. Foi no mato cortar pau, rachou cem achas, carregou o burro, trotou léguas até chegar aqui, levou 25 cruzeiros. Tenho vontade de vingá-lo:

    – Passarinho dá muito trabalho…

    O velho atende outro freguês, lentamente.

    – O senhor querendo dar quinhentos cruzeiros, é seu.

    Por trás dele o pescador de bigodes brancos me fez sinal para não comprar. Finjo espanto: “- Quinhentos cruzeiros?”

    – Ainda a semana passada eu rejeitei seiscentos por ele. Esse coleiro é muito especial.

    Completamente escravo do homem, o coleirinho põe-se a cantar, mostrando sua especialidade. Faço uma pergunta sorna: “- Foi o senhor quem pegou ele?” O homem responde: “- Não tenho tempo para pegar passarinho.”

    Sei disso. Foi um menino descalço, como aquele da lenha. Quanto terá recebido esse menino desconhecido, por aquele coleiro especial?

    – No Rio eu compro um papa-capim mais barato…

    – Mas isso não é papa-capim. Se o senhor conhece passarinho, o senhor está vendo que coleiro é esse.

    – Mas quinhentos cruzeiros?

    – Quanto é que o senhor oferece?

    Acendo um cigarro. Peço mais uma cachacinha. Deixo que ele atenda um freguês que compra bananas. Fico mexendo com o pedaço de chumbo. Afinal digo com voz fria, seca: “- Dou duzentos pelo coleiro, cinquenta pela gaiola.”

    O velho faz um ar de absoluto desprezo. Peço meu troco, ele me dá. Quando vê que vou saindo mesmo, tem um gesto de desprendimento: “Por trezentos cruzeiros o senhor leva tudo.”

    Ponho minhas coisas no bolso. Pergunto onde é que fica a casa de Simeão pescador, um zarolho. Converso um pouco com o pescador de bigodes brancos, me despeço.

    – O senhor não leva o coleiro?

    Seria inútil explicar-lhe que um coleiro do brejo não tem preço. Que o coleiro do brejo é, ou devia ser, um pequeno animal sagrado e livre, como aquele menino da lenha, como aquele burrinho magro e triste do menino. Que daqui a uns anos quando ele, o velho, estiver rachando lenha no inferno, o burrinho, menino e o coleiro vão entrar no Céu – trotando, assobiando e cantando de pura alegria.

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    Crônica publicada na Revista Manchete, em 19 setembro de 1959. 
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    Obs: No livro 200 Crônicas Escolhidas - As Melhores de Rubem Braga (Record, 1977), a crônica data de novembro de 1951.