segunda-feira, 15 de maio de 2023

Das coisas memoráveis


Um dia

Tudo será memória.

As pessoas que andam naquela rua

As gentis, as sábias, as más

Todas, todas serão memória

O mendigo que passa sem o cão

O ginasta, a mãe, o bobo, o cético, a turista

Deus, inclusive, regendo o fim das coisas memoráveis

Também será memória

Deus e os pardais.

Os grandes esqueletos do museu britânico

E todo sofrimento serão memória.

Eu, sentado aqui

Serei só esses versos

Que dizem haver um eu sentado aqui

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Poema de Antônio Brasileiro, publicado no livro Pequenos Assombros (1998). 

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Como a vidraça de uma janela


Todas as linhas de obras sérias que escrevi a partir de 1936 foram escritas, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático, tal como eu entendo. Parece-me sem sentido, numa época como a nossa, pensar que alguém possa evitar escrever sobre esses temas. Todo mundo escreve sobre eles, de uma forma ou de outra. É só questão de saber de que lado se está e qual a abordagem se adota. E quanto mais se tem consciência do próprio viés político, maior é a possibilidade de atuar politicamente sem sacrificar sua integridade estética e intelectual. 

(...) 


Não sou capaz de, e nem quero, abdicar por completo da visão de mundo que adquiri na infância. Enquanto estiver vivo e bem, vou continuar a ter convicções firmes quanto ao estilo da prosa, amar a superfície da Terra e a ter prazer com objetos sólidos e restos de informações inúteis. 


(...) 


Todos os escritores são vaidosos, egoístas e preguiçosos, e bem no fundo de seus motivos sempre há um mistério. Escrever é uma luta horrível e exaustiva, como o longo acesso de enfermidade dolorosa. Ninguém empreenderia se não fosse impelido por algum demônio ao qual não se pode resistir nem tampouco compreender. Até onde se sabe, esse demônio é simplesmente o mesmo instinto que leva um bebê a berrar por atenção. 


(...) 


A boa prosa é como a vidraça de uma janela 


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Trechos de Por Que Escrevo, de George Orwell, ensaio de 1946, escrito quatro anos antes da sua morte. No breve texto, o autor cita que considerava Fazenda dos Animais ou A Revolução dos Bichos (1944), como seu grande avanço. Segundo ele, o livro foi feito “com plena ciência do que estava fazendo”, pois a obra fundia os propósitos artísticos e políticos em uma unidade.  


No mesmo ensaio, Orwell comenta que esperava escrever um novo romance em breve. Ele diz que tinha clareza sobre o que queria escrever e sentencia: “está destinado a ser um fracasso”. O livro em questão viria a ser o clássico 1984 (publicado em 1949). 

 

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Os tempos estão mudando

Era noite. Era uma sexta. Eu estava em casa e era oficialmente um tiozão. Ouvia um disco do Simply Red, tomava uma dose de uísque e não me preocupava com o que os outros iam pensar. Era isso que eu estava fazendo da minha tal liberdade. 

Até que invadiu o apartamento um agradável cheiro de xis. Um cheiro novo. Decerto abriu alguma lancheria perto, pensei. Fui atrás e achei o lugar. Severo Delivery. Uns dez motoqueiros esparramados pela calçada. Espaço acanhado. 

- Me vê o cardápio, por favor. 

- Os pedidos são só para delivery, senhor. 

- Como assim? Não posso pedir e pegar aqui?

- Somos só uma delivery, senhor. 

- Entendi... mas tem maquininha de cartão em cima da mesa e a chapa tá ali, moça. A tua colega tá fazendo um monte de xis agora. 

- Eu lhe passo o nosso número no WhatsApp e o senhor pede. 

- Não posso só pedir pra ti, pagar e sair? 

- É que somos só uma delivery...   

- Ta bem, ta bem. Vou pedir. Eu moro aqui do lado e quando tiver pronto me avisa no WhatsApp e eu pego o xis. 

- Não temos essa opção, senhor.  

- Pô, moça... Assim fica difícil.   

- Pois é... No delivery não tem como fazer isso. 

Me despedi da atendente um tanto injuriado e fui caminhando  para casa. Já começava a me preocupar com o que os outros iam pensar. Eu não conseguia sequer comprar um xis. Estava totalmente desatualizado. Era oficialmente um tiozão.


sexta-feira, 5 de maio de 2023

Um bom político

- Tu tem que conhecer o político Tal. Ele é muito bom!

- Ah, é? E qual é a causa dele?

- Como assim causa?

- Emprego, animais, educação, segurança, sei lá... algo assim.

- Não... Nada de causa. Ele faz uns vídeos pras redes sociais. 

- Hum...

- E detona o partido de oposição ao dele. Tu tem que conhecer! Ele é muito bom!