segunda-feira, 18 de junho de 2018

Borges e o Futebol


Em época de Copa do Mundo sempre surge aquela pessoa que odeia e/ou menospreza o futebol. Nesse sentido, é interessante lembrar a figura de Borges. O canônico escritor argentino não tinha nenhum apreço pelo esporte bretão. Simplesmente, o desprezava como qualquer outra coisa que não correr atrás de uma bola em busca de um gol. Dele, há um sem número de frases anti-futebol, como as conhecidas:

"O futebol é popular porque a estupidez é popular".

"O futebol desperta as piores paixões".

“Onze jogadores contra outros onze correndo atrás de uma bola não são especialmente bonitos".

"O homem deixou de jogar xadrez e passou a jogar futebol. É um símbolo da degradação social". 

Segundo consta em biografias, sua preferência esportiva eram as rinhas de galos. O desdém ao futebol era tamanho que o autor de Ficções chegou realizar uma palestra no mesmo dia e horário da estreia da Argentina em 1978, ano que o país sediou a Copa. Enquanto a albiceleste enfrentava a Hungria (o placar acabou em 2x1 para os donos da casa), Borges dava uma palestra em Belgrano.

O evento dele não ficou para trás. O auditório estava lotado. Talvez, porque o assunto era um tanto peculiar: imortalidade.

Além disso, há um outro registro de Borges criticando o esporte mais popular do mundo. Em um conto, intitulado Esse Est Percipi (Ser É Ser Percebido, em latim), publicado em Crónicas de Bustos Domecq, o escritor descreveu assim o futebol.

Não existem escores nem jogadores nem jogos. Os estádios são prédios em estado de demolição, caindo aos pedaços. Hoje em dia tudo passa pela TV e pelo rádio. A falsa excitação dos locutores. Ora, nunca teve a desconfiança de que tudo é uma maracutaia? O último jogo que foi jogado na realidade nesta capital foi no dia 24 de junho de 1937. Desde aquele preciso momento, o futebol, da mesma forma que um amplo leque de esportes, é um gênero dramático, a cargo de um único homem em uma cabine ou de atores com camisetas perante o cinegrafista.

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Três Barras


Um conhecido me contou com uma certa naturalidade que seu filho não foi aprovado em um concurso público porque desistiu na etapa do teste físico. Acontece.

O tal teste era composto por fazer três barras.

"Mas eram três séries de quanto?", perguntei.

"Não eram séries. Eram três barras", ele confirmou.

Ou seja, o rapaz só precisava deixar o corpo descer e erguê-lo com os próprios braços três vezes.

Nessa madrugada, embalei meu guri, o intrépido Murilo, que tem dois meses e 5kg, por três horas, até o sem vergonha dormir. Caminhei. Cantei. Me irritei. Busquei o número da adoção no Google. Me acalmei. E dormi lindamente com o pingo de gente.

Tudo para que ele fique numa boa e toque sua vidinha sem sobressaltos. E, pelo amor de Deus, não se mixe para três barras.

terça-feira, 12 de junho de 2018

Descendo a Rua da Ladeira


Uma rápida pesquisa me indicou o caminho. Rua da Ladeira. Bati o ponto. Intervalo. Dava tempo, sim. Subi a Espírito Santo a pé. Uma tarefa árdua. O forte cheiro de mijo ao lado da Catedral, esquina com a Duque de Caxias, me deixou zonzo. Na Praça da Matriz, em obras, respirei um pouco. Do alto, tudo parece mais bonito, mesmo não sendo. 

Enquanto tentava me recompor, um flanelinha me confundiu com um motorista. "Ficou bem guardado, patrão!". Desfiz o mal entendido. Cruzei a praça. Acessei a Rua da Ladeira com uma certa esperança. Um homem anão e sem braços se atravessou na calçada. Quase bloqueou meu caminho. Pediu umas moedas. Respondi mecanicamente que não tinha. O que era mentira, pois estava ali exatamente porque havia dinheiro em meu bolso. 

A bendita perdição dos sebos. Ia em busca de João Antônio. Casa de Loucos. Dez reais. Malhação do Judas Carioca. Dez reais. Ô, Copacabana! Doze reais. Malagueta, Perus e Bacanaço. Cinco reais. Leão de Chácara. Treze reais. Relíquias. Pechinchas. Achados. Somados dão o preço de um bom buffet, quiça com um chopp incluso – dois dedos de colarinho tirado na hora. 

Como pode? Um dos maiores escritores brasileiros! Assim, de barbada. Alguém que descreveu e transcreveu nossa alma sem subterfúgios, sem tiques, exatamente como somos. Alguém que morreu só. E somente depois de quinze dias, deram falta de seu corpo, já apodrecendo, em um apartamentinho. 
Então, sua obra vale um almoço. Não paga sequer um sushi em um shopping center. Não vale uma fútil iguaria gourmetizada do momento. 

Onde foi que a Literatura errou para valer tão pouco? Tomo o caminho de volta. O anão sem braços segue no mesmo lugar. Agora, encostado em uma mureta, ao lado do sebo Beco dos Livros. Dessa vez, não me pede nada. Finge que não me vê. Eu também não teria mais nada. 

Em mãos, só uma sacola cheia de livros. Repleta de histórias de pobres homens e pobres cidades, que João Antônio escreveu como ninguém.

segunda-feira, 11 de junho de 2018

O Futebol Sempre Nos Explica


Era final da década de 1990, início dos anos 2000. Me lembro de debater com amigos e colegas de universidade a postura apática da população brasileira em relação à política nacional de então. Depois da Era Collor, não tivemos movimentos significativos de povo ocupando as ruas Brasil afora. Uma coisa aqui, outra ali, porém nada de massa, de milhões bradando palavras de ordem.

O futebol, principalmente devido às seleções campeãs mundiais de 1994 e 2002, vivia seu melhor momento. Jogadores brasileiros fazendo sucesso no exterior. Uma sequência de craques sendo eleitos os melhores do mundo pela Fifa, como Romário, Rivaldo e Ronaldinho. Lembro muito bem. Pessoas andavam com bandeiras verde-amarelas nos carros. Pintavam suas casas. Usavam camisetas dos jogadores. E nós, os jovens politizados, dizíamos assim: “Ah, se o povo fosse tão apaixonado por política como é por futebol, o país certamente não estaria desse jeito”.

Porque para nós, é importante deixar bem claro, o país não ia bem. A gente vivia no subúrbio. Não tínhamos grana, nem perspectivas de empregos decentes (entenda-se: melhores que de nossos pais). Nós havíamos estudado em instituições públicas por toda a infância e adolescência, e na hora h, de acessar uma universidade, não tinha como passar no tal vestibular da Federal. O jeito era bancar uma particular, sabe-se lá como. Essa questão era (e ainda é, pois há um déficit muito grande nessa área) uma tremenda injustiça. “E cadê o povo para protestar?”, a gente dizia. Não havia ninguém.

Hoje, contudo, percebemos uma população realmente apaixonada por política. Tanto quanto as torcidas organizadas dos clubes brasileiros. Assistimos ou participamos de diversos grupos e protestos de vulto. Ruas bloqueadas e passeatas tem quase todo dia nas principais capitais. Sem contar nos milhões de 2013 e 2016. Os reflexos disso foram a derrubada de uma presidente, políticos presos, políticos presos e soltos logo depois, políticos corruptos ainda não julgados, políticos corruptos julgados e condenados, políticos com malas de dinheiro em apartamento, políticos, políticos... Uma forte indignação com os vícios de nossa classe política tomou corpo.

O Brasil, diferentemente do que pensavam aqueles moleques em 90/00, não melhorou com essa paixão pela política. Para muitos, tornou-se mais chato, mais intolerante, menos diverso. O horizonte é desanimador. Não há esperança e perspectiva de futuro melhor. Há, como sempre houve, um forte aparato de marketing governamental para criar um discurso positivo, com um olhar generoso dos intelectuais orgânicos de ocasião. Todavia, essa mensagem de fé esbarra inevitavelmente nos R$ 13 milhões de desempregados e nos R$ 52 milhões vivendo abaixo da linha da pobreza, ambos dados atuais do IBGE.

Existe uma diferença significativa nos dois períodos, que é a disseminação da internet. O surgimento das redes sociais fez proliferar uma enxurrada de discursos e narrativas para o que nos cerca. Algo que é salutar, a diversidade, pois oferece um vasto conteúdo para todos os gostos. Entretanto, esse livre acesso a informação acabou gerando uma dicotomia. Uma guerra de versões, que se demonstra insolúvel. Claro, você sabe do que estou falando: direita e esquerda. Até o momento, não surgiu ninguém, nenhuma figura pública ou política, realmente interessada em diluir esse maniqueísmo.

Nossa vida se tornou essa insanidade. Não há um jantar de família, um encontro de amigos, uma reunião de trabalho, uma sessão no cinema ou uma publicação qualquer no Facebook, Twitter, Instagram, em blogs ou portais de notícias que não descambe para o famigerado combate entre os dois lados. Um escancarado Fla-Flu ideológico.

E assim retornamos ao futebol. Ele sempre nos ajuda a entender o momento que vivemos.

Em entrevista ao programa Comtexto, do canal Arte1, o jornalista Juca Kfouri relembrou que em 1970, quando estava em vigência a ditadura militar brasileira, contra a qual ele chegou a atuar, alguns companheiros seus de guerrilha torceram contra a seleção de Tostão, Pelé, Rivelino e Jairzinho durante a Copa do Mundo do México. Para Kfouri, além de ser uma heresia contra a alta qualidade do escrete canarinho, essa era uma atitude de total incoerência, pois o futebol sempre explicou o país. “Quem não dá ao futebol a devida importância que ele tem fica sem entender o Brasil. Ser contra o futebol é ser contra aquilo que se tem de mais íntimo. É um fator de mobilização social, não de alienação”, disse.

De fato, o futebol é um bom parâmetro social. Tem o já citado e atualíssimo Fla-Flu, que, aplicado em um contexto sociocultural, é usado para representar um antagonismo obrigatório e irracional entre duas paixões. Assim como há o Complexo de Vira-Latas, termo cunhado por Nelson Rodrigues em um artigo no qual ele dizia que os brasileiros se sentiam inferiores aos estrangeiros em razão da falta de títulos mundiais. A máxima rodrigueana explicaria o recorrente pessimismo em relação a qualquer medida que, supostamente, não esteja em sintonia com o que há de melhor em outros países.

Seguindo nessa linha, podemos citar a derrota humilhante de 7x1 para a Alemanha, na semifinal da Copa do Mundo realizada aqui, em 2014. Esse momento, que, sem dúvida, se tornou uma marca, uma ferida em nossa moral esportiva, também serviu para compreender a nossa distância real para os países de primeiro mundo (ou seria mais um complexo de vira-lata?). O Brasil, diferente do que pensávamos, não decolou conforme a propaganda prometeu. Não éramos uma potência em desenvolvimento. Foi preciso um grande baque, para que a ficha caísse. Estamos falando de futebol, certo? Ou de tudo que culminou no Impeachment e na derrocada econômica?

Aonde eu quero chegar com isso? Qual é minha tese, afinal? O trunfo do coletivo certamente é o principal caminho. Mas não há uma única resposta.

Albert Camus, que antes de ser Nobel de Literatura foi goleiro do Racing, da cidade de Argel, talhou uma bela frase sobre o esporte bretão. “Tudo o que eu conheço da moral dos homens eu devo ao futebol”. É, talvez estejamos falando disso o tempo todo.

...

P.S. Para quem gosta do assunto, sugiro assistir ao documentário Os Rebeldes do Futebol, de 2012, do cineasta francês Gilles Rof. O filme é protagonizado por Eric Cantona, que apresenta cinco atletas célebres por misturar a paixão pelo futebol com as causas sociais. Um deles é o brasileiro Sócrates.

Texto originalmente publicado no site Mínimo Múltiplo

sexta-feira, 8 de junho de 2018

O Que Vim Fazer em Saigon?, Por Anthony Bourdain

Anthony Bourdain se suicidou em um quarto de hotel na França 

Trecho da crônica A Ferida, publicada no livro Em busca do prato perfeito, um cozinheiro em viagem, de 2003. 

"Já estava acostumado aos amputados, às vitimas do agente laranja, aos famintos, pobres, garotos de rua de seis anos de idade que você encontra às três da madrugada gritando "Feliz ano novo! Olá! Bye-Bye!" em inglês, e depois aponta para suas bocas e faz "bum bum?". Estou ficando quase indiferente aos garotos famintos, sem pernas, sem braços, cobertos de cicatrizes, desesperançados, dormindo no chão, em triciclos, na beirada do rio. Mas não estava preparado para o homem sem camisa, com um corte de cabelo a la forma de pudim, que me detém na saída do mercado, estendendo a mão. No passado ele sofreu queimaduras e tornou-se uma figura humana quase irreconhecível, a pele transformada numa imensa cicatriz sob a coroa de cabelos pretos. Da cintura para cima (e sabe Deus até onde), a pele é uma cicatriz só; ele não tem lábios, nem nariz, nem sobrancelha. Suas orelhas são como betume, como se tivesse mergulhado e moldado num alto-forno, sendo retirado pouco antes de derreter por completo. Mexe seus dentes como uma abóbora de Halloween, mas não emite um único som através do que foi um dia, uma boca. Sinto um murro no estômago. Minha animação exuberante dos dias e horas anteriores desmorona. Fico paralisado, piscando e pensando na palavra napalm, que oprime cada batida do meu coração. De repente nada mais é divertido. Sinto vergonha. Como pude vir até esta cidade, até este país por razões tão fúteis, cheio de entusiasmo por algo tão...sem sentido, como sabores, texturas, culinária? A famíla daquele homem deve ter sido pulverizada, ele mesmo transformado num boneco desgraçado, como um modelo de cera de madame Tussaud, a pele escorrendo como vela pingando. O que estou fazendo aqui? Escrevendo um livro de merda? Sobre comida? Fazendo um programinha leve e inútil de tevê, um showzinho de bosta? A ficha caiu de uma vez e fiquei me desprezando, odiando o que faço e o fato de estar ali. Imobilizado, piscando nervosamente e suando frio, sinto que todo mundo na rua está me observando, que irradio culpa e desconforto, que qualquer passante vai associar os ferimentos daquele homem a mim e ao meu país. Dou uma espiada nos outros turistas ocidentais que vagueiam por ali com suas bermudas da Banana Republic e suas camisas pólo da Land´s End, suas confortáveis sandálias Weejun e Bierkenstock, e sinto um desejo irracional de assassiná-los. Parecem malignos, comedores de carniça. O Zippo com a inscrição pesa no meu bolso, deixou de ser engraçado, virou uma coisa tão pouco divertida quanto a cabeça encolhida de um amigo morto. Tudo o que comer terá gosto de cinzas daqui pra frente. Fodam-se os livros. Foda-se a televisão. Nem mesmo consigo dar algum dinheiro ao coitado. Tenho as mãos trêmulas, estou inutilizado, tomado pela paranoia, Volto correndo ao quarto refrigerado do New World Hotel, me enrosco na cama ainda desfeita, fico olhando para o teto com os olhos cheios de lágrimas, incapaz de digerir ou entender o que presenciei e impotente para fazer qualquer coisa a respeito. Não saio nem como nada pelas 24 horas seguintes. A equipe de tevê acha que estou tendo um colapso nervoso.
Saigon...Ainda em Saigon.

O que vim fazer no Vietnã?"

quinta-feira, 7 de junho de 2018

Prefácio de É Isto Um Homem?, de Primo Levi


Foto do autor. Primeira publicação de É Isto um Homem data de 1947
Trecho do livro

Por minha sorte, fui deportado para Auschwitz só em 1944, depois que o governo alemão, em vista da crescente escassez de mão-de-obra, resolveu prolongar a vida média dos prisioneiros a serem eliminados, concedendo sensíveis melhoras em seu nível de vida e suspendendo temporariamente as matanças arbitrárias. Este meu livro, portanto, nada acrescenta, quanto a detalhes atrozes, ao que já é bem conhecido dos leitores de todo o mundo com referência ao tema doloroso dos campos de extermínio. Ele não foi escrito para fazer novas denúncias; poderá, antes, fornecer documentos para um sereno estudo de certos aspectos da alma humana. Muitos, pessoas ou povos, podem chegar a pensar, conscientemente ou não, que "cada estrangeiro é um inimigo". Em geral, essa convicção jaz no fundo das almas como uma infecção latente; manifesta-se apenas em ações esporádicas e não coordenadas; não fica na origem de um sistema de pensamento. Quando isso acontece, porém, quando o dogma não enunciado se torna premissa maior de um silogismo, então, como último elo da corrente, está o Campo de Extermínio. Este é o produto de uma concepção do mundo levada às suas últimas conseqüências com uma lógica rigorosa. Enquanto a concepção subsistir, suas conseqüências nos ameaçam. A história dos campos de extermínio deveria ser compreendida por todos como sinistro sinal de perigo. Sou consciente dos defeitos estruturais do livro e peço desculpas por eles. Se não de fato, pelo menos como intenção e concepção o livro já nasceu nos dias do Campo. A necessidade de contar "aos outros", de tornar "os outros" participantes, alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação interior. Daí, seu caráter fragmentário: seus capítulos foram escritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência. O trabalho de ligação e fusão foi planejado posteriormente. Acho desnecessário acrescentar que nenhum dos episódios foi fruto de imaginação.

PRIMO LEVI