segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Algumas Boas Leituras Possíveis


Fiz uma lista breve com dicas de leitura para uma revista literária, que optou por não publicar meu texto. Faz parte.

Mas como gostei do que sugeri, publico por aqui. São livros de contos, romance, poesia, quadrinhos, biografia e jornalismo. 


A Vida Como Ela É – Nelson Rodrigues

Em uma série de entrevista culturais que fiz, em um certo momento da minha vida jornalística, conversei com algumas personalidades da Cultura, como músicos, escritores, cineastas. Durante o papo, perguntava sobre as ideologias políticas deles, essas coisas de ser de direita ou de esquerda. Quando o entrevistado se dizia de esquerda, eu tascava na sequência “e quem da direita você admira ou respeita?”. Quase todos diziam Nelson Rodrigues. 

Eu sei que indicar a leitura de um autor onipresente no imaginário brasileiro é reforçar o obvio ululante – termo cunhado pelo próprio Nelson. Porém, A Vida Como Ela É tem muita força. Seus contos e personagens ultrapassaram o lugar-comum de serem o retrato de sua época. Eles ainda residem nos subúrbios, nas altas rodas da sociedade ou nas páginas policiais. Basta ler – ou reler – com atenção. 

Dora Bruder – Patrick Modiano

Patrick Modiano inicia Dora Bruder, romance publicado em 1997, a partir de um anúncio, que descobriu folheando um jornal antigo, o Paris-Soir, do dia 31 de dezembro de 1941.

"Procura-se jovem, Dora Bruder, 15 anos, 1,55cm, rosto oval, olhos marrom-acinzentados, casacão cinza, suéter bordô, saia e chapéu azul-marinho, sapatos marrons. Qualquer informação dirigir-se ao Sr. e à Sra. Bruder, bulevar Ornano, 41, Paris".

A partir dessas informações, Modiano tenta recontar os passos de Dora, uma francesa filha de judeus. A narrativa, não linear, é construída com base em pistas, suspeitas, alguns dados oficiais e lembranças do período de ocupação nazista na França – tema recorrente nas obras do autor. A própria trajetória de Modiano, que viveu esse período na mesma região da personagem, serve como auxílio para tentar entender o que aconteceu a ela.

O romance reconstitui um tempo nebuloso de nossa história, onde vidas eram relegadas ao esquecimento, por pura tirana e intolerância. Entretanto, Modiano não aponta para os culpados, ele apenas se faz presente - de mãos dadas a Dora. Seu objetivo é não nos deixar esquecer a barbárie.

Morda meu coração na esquina: Poesia reunida – Roberto Piva

Roberto Piva não foi um poeta fácil - em todos os sentidos que a palavra compreende. Dono de uma poesia declamada, esbravejada, suja e lírica, ele dizia que só acreditava em poeta experimental, que tenha tido uma vida experimental. Um autor que estava fora de catálogo há anos e, ao mesmo tempo, era muito admirado, lido e copiado – poetas de redes sociais tem aos montes, fingindo ter a sua verve. 

Alguns arriscam que Piva foi um autor à frente de seu tempo, o que é uma bobagem – recorrente quando se fala de escritores do seu calibre. Entretanto, é inegável que seus versos falam desse mundo de hoje, tão virtual, frio, disperso, urbano e decadente. 

Bob e Harv: Dois Anti-Herois Americanos – Harvey Pekar e Robert Crumb

Quando um desajustado encontra outro desajustado a tendência é não dar boa coisa. Mas em Bob e Harv: Dois Anti-Herois Americanos a coisa funcionou muito bem. O consagrado Crumb soube captar as intenções e o próprio espírito de Pekar – um cronista de meia-idade, solitário e ranzinza.

O livro compila alguns dos quadrinhos publicados pela dupla em American Splendor, revista onde Crumb foi um dos tantos desenhistas colaboradores de Pekar. As histórias são sempre banais e giram em torno de uma cidade sem importância – Cleveland – e de um personagem cheio de manias – no caso, o próprio Pekar. 

Não parece uma leitura promissora, afinal, é só a vida acontecendo. Mas é como bem disse Laerte: “quando você já está lá dentro, conhecendo os amigos dele, achando graça nas esquisitices dele, como se fosse uma visita real naquele mundo”.

Dez! Nota dez! Eu sou Carlos Imperial – Denilson Monteiro

Não é uma tarefa simples resumir quem foi e o que fez Carlos Imperial. O trabalho do biógrafo Denilson Monteiro, portanto, foi uma missão árdua. Imperial lançou diversos cantores, como Roberto Carlos, Wilson Simonal e Tim Maia. Ele também compôs – há controvérsias – músicas de sucesso, foi jurado de programa auditório na televisão, cineasta e agitador do meio cultural nos anos 60, 70 e 80. Ah, Imperial foi pai de 11 filhos de sete mulheres diferentes.

Um anti-heroi e marqueteiro em estado puro. Alguém que jogou sujo com muita gente – Mário Gomes que o diga! Tudo isso está nessa biografia, nada chapa branca, assinada por Monteiro. Um texto ágil, bem construído e que também serviu como base para um ótimo documentário. 

O Gosto da Guerra – José Hamilton Ribeiro

José Hamilton Ribeiro, então jornalista da revista Realidade, foi escalado para cobrir a guerra do Vietnã, em 1968. Enquanto acompanhava soldados americanos no norte do país asiático, Ribeiro pisou em uma mina e perdeu a perna esquerda. Seu relato da guerra é cru, sem rodeios e não toma partido. Inclusive, em relação ao seu drama. Uma reportagem que virou o maior livro de jornalismo do país. A foto do trecho descrito abaixo ilustra a capa do livro.

"Ele foi na frente, seguindo o mesmo caminho usado pelos enfermeiros. E eu fui atrás dele. Nem bem dei uns cinco passos quando o estrondo de uma explosão povoou inteiramente meus ouvidos. Um zumbido agudo e interminável brotava na minha cabeça. Uma nuvem negra de fumaça fez desaparecer tudo à roda e eu tive a impressão, nítida, de que a bomba explodira exatamente em cima do soldado Henry. Quando a fumaça se dissipou um pouco e eu ainda não via Henry, imaginei que ele tivesse sido projetado para longe e a essa hora já devia até estar morto. Ele apareceu na minha frente de repente, com o rosto transformado numa máscara de horror. - Henry, você está bem? Ele não respondeu e continuou caminhando em minha direção. Senti-me sentado e não descobri por quê. Entrevi Shimamoto, saindo da fumaça, e ainda lhe perguntei: - Shima, você está ok? Ele trazia um cigarro aceso e tentou colocá-lo na minha boca. Não aceitei. Sentia na boca um gosto ruim, como se tivesse engolido um punhado de terra, pólvora e sangue - Hoje eu sei, era o gosto da guerra. Cuspia, cuspia, mas aquela gosma amarga permanecia na boca. Então senti um repuxão violento na perna esquerda e só aí tive consciência de que a coisa era comigo".