segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

We Are The People - Poema de Lou Reed na voz de Iggy Pop

Poema de Lou Reed, escrito em 1970 e até então inédito. Iggy Pop o gravou em Free (2019) acompanhado pelo trompete e piano de Leron Thomas.

Um trecho do poema diz mais ou menos assim

Nós somos as pessoas sem direito/ Nós somos as pessoas que conheceram apenas mentiras e desespero/ Nós somos as pessoas sem país, sem voz ou espelho


domingo, 17 de janeiro de 2021

O Velório – Conto de Bernardo Kucinski


Um enterro especial requer um caixão especial. O velho Antunes escolheu o modelo mais bonito. Um ataúde de imbuia maciça munido de braçadeiras e fechos de bronze, com acabamento em laca da Índia. Para o velório, encomendou quatro velas grandes em castiçais de prata sobre colunas de alabastro. E uma coroa de flores com faixa de seda azul e branca na qual mandou escrever: “Ao Roberto, dos seus pais, tios e irmãs, que nunca te esqueceram”.

Na parede dos fundos da sala, transformada em câmara mortuária, um pouco acima da altura do caixão, Antunes mandou pendurar um retrato do filho tirado na sua formatura, no qual ele está ligeiramente de lado, de modo a ressaltar seu perfil anguloso. O filho tinha olhos negros como os do pai, cabelos ondulados, lábios grossos e queixo saliente. Puxou o pai, o velho não se cansou de repetir esses anos todos.

Era uma fotografia pequena que ele pediu ao japonês da loja Kodak para ampliar. Preferiu essa a outro retrato, bem maior, do filho com toda a turma de formandos, por causa da beca e do destaque aos traços enérgicos. O Kazuo precisou refotografar, porque não havia negativo. Roberto era o filho mais velho. Formara-se em engenharia civil.

Antunes acabou de completar noventa anos. A família é longeva. Sua irmã Hermínia, que chegou cedinho e ajudou a montar o velório, está com oitenta e sete anos; as outras duas irmãs têm uma oitenta e quatro e a outra oitenta e um anos. O irmão mais velho morreu no ano passado com noventa e três. Foi quando ele decidiu fazer o enterro do filho. Pensou: nosso limite é entre noventa e noventa e três. Meu irmão, Deus já levou. Logo será minha vez. Não quero morrer sem enterrar o meu Roberto.

Explicou a ideia à patroa. Devota, dona Rita foi consultar o padre Gonçalves, que não disse nem sim nem não; pediu tempo para poder consultar o bispo. Na semana seguinte, o padre explicou que, nas circunstâncias, não oficiaria missa de corpo presente nem de sétimo dia, mas levaria conforto à família no velório e no sepultamento.

Ao contrário do marido, que se tornou um homem seco e calado, dona Rita ainda chora quase todas as noites a ausência do filho. Também por isso o velho Antunes decidiu fazer o enterro. Pela sua Rita, pelas irmãs do Roberto, pela família toda. Os mortos têm que ser enterrados.

As vizinhas também vieram cedo. As irmãs Mercedes, do lado de baixo da rua, e a Diva, do lado de cima, ajudaram na preparação dos salgadinhos e sanduíches. As Mercedes são solteironas e vivem sós. No começo fofocaram sobre o sumiço do Roberto, depois não. A Rita diz que não foi por maldade. A Diva sofreu como se fosse parente; a filha dela, a Cristina, era ligada ao Roberto. Fizeram o grupo escolar na mesma classe, depois o ginásio. Iam juntos, voltavam juntos. Não chegaram a namorar, talvez até porque fossem próximos demais, quase irmãos.

Às dez horas chegaram de Campinas as filhas, Célia e Celina, com os genros e os netos pequenos. Vieram em dois carros, em caravana. Duas horas de viagem. No caminho entraram na chácara das flores e compraram ramalhetes de rosas vermelhas. Elas eram adolescentes quando o irmão desapareceu; tiveram muita dificuldade em entender o que se passava, principalmente Célia, a menor. Os pais não explicavam. Criou-se um segredo de família. No telefone, só falavam aos cochichos.

Primeiro, não queriam que elas soubessem. Depois, quando elas viram a pequena notícia no jornal, pediram que nunca tocassem no assunto com as amigas, com os vizinhos, com ninguém. Diziam que era para o bem delas e de todos. Esse segredo as tornou ainda mais ligadas. Só muito tempo depois é que os pais contaram o pouco que sabiam. Os velhos nunca voltaram a ser como antes, viraram outras pessoas, distantes, tristes. Nos últimos anos, com a vinda dos netos, voltaram a sorrir.

Logo chegam mais moradores da ladeira, com seus filhos e netos. Crianças correm pela casa toda. Deixa correr, diz o velho Antunes. Quero um velório alegre, como era o Roberto. Mas velório é sempre solene. Os homens formam rodas austeras e conversam a meia voz. As mulheres ocupam as cadeiras ao longo das paredes e falam aos cochichos.

As irmãs Mercedes circulam as bandejas com os salgados, os sanduíches e copos de guaraná. Aos poucos as conversas se tornam mais animadas. Alguém critica a devassidão nos programas de televisão. A Maria bordadeira, do outro lado da rua, comenta a decisão da Prefeitura de trazer o asfalto até o bairro. Diva trouxe um álbum de fotografias em que aparecem o Roberto, a filha dela e outros rapazes e moças. Sucedem-se comentários e lembranças sobre esse e aquele.

Às onze e pouco chega o Teixeira, cunhado do Antunes, irmão mais velho da Rita, alto e gordo. Veio de Bauru com a mulher, dona Isaura, uma senhora quieta que se mostra sempre submissa. Teixeira é abonado, dono de fazenda. Uma ocasião recusou um pedido de empréstimo do Antunes para cobrir um ano de safra ruim. Era ninharia. Ficaram dez anos sem se falar. Mas quando o Beto desapareceu o Teixeira se mexeu mais que ninguém. Era gamado no Roberto, seu primeiro sobrinho. Chegou a ir para Brasília falar com uns homens que ele conhecia. Não adiantou.

Teixeira dá um abraço no Antunes, outro na Rita; por alguns minutos o vozeirão dele domina o velório. Depois se aproxima de onde está montado o caixão, permanece um tempão olhando o retrato do Roberto na parede. Balança a cabeça, inconformado. Isaurinha conversa com Rita na cozinha. As duas se fitam por um longo minuto. Depois se abraçam. Ambas são mais novas que os maridos, mas parecem mais velhas. 

Às duas da tarde a casa está cheia e o povo transborda pela calçada, para cima e para baixo da ladeira. O sepultamento está marcado para as quatro, antes da chuva. Circulam mais bandejas com sanduíches, broa de milho e cuscuz de sardinha. É quando chega o Dino violeiro, amigo de infância do Beto, acompanhado de outros dois, um de nome Alcides e o outro, Mário. O Dino fez até o colegial. Jogou muito futebol com o Beto. Iam juntos à matinê. No sábado à noite paqueravam as moças em torno do coreto. Quando o Beto foi para São Paulo fazer faculdade, Dino ficou no armazém ajudando o pai. Depois formou esse conjuntinho de violeiros.

Os músicos entram para cumprimentar o velho Antunes e dona Rita. Depois se aproximam do ataúde, tiram os chapelões de palha, respeitosos. Fitam a fotografia na parede, depois saem dando passadas cuidadosas, cumprimentando as outras pessoas à direita e à esquerda com um menear de cabeça. Lá fora, depois de algum tempo, tocam uma toada triste com um refrão que diz “Nossa vida passa, é como fumaça…”. Lá dentro os convidados comentam acontecimentos. Quem casou, quem descasou. Quem teve filho. O farmacêutico Diogo conta mais um de seus causos. A Diva continua circulando o álbum de fotografias. Do quintal emana um aroma de churrasco. É o Alcebíades, da banca de jornal, churrasqueiro fanático. Os violeiros agora vão para o quintal, onde há mais espaço. O velho Antunes manda que cantem música alegre e eles respondem com o samba da fita amarela: Quando eu morrer, não quero choro nem vela, quero uma fita amarela, gravada com o nome dela.

Aparecem duas senhoras com jarras de refresco de limão e abacaxi. Alguém distribui picolés à garotada. Às três da tarde tem-se a impressão de que todos os viventes da cidade estão no velório do Roberto, inclusive os cachorros e os gatos. Comentam que nunca houve um velório tão concorrido. Não se vê ninguém nas outras ruas, na praça da matriz, na rodoviária. Virou cidade fantasma. É quando surge lá longe, no topo da ladeira, meio esfumaçado como se fosse assombração, o Chevrolet preto da Prefeitura. O carro se aproxima lentamente e para um pouco antes do terraço dos Antunes. Descem o prefeito Belisário, o delegado de polícia, dr. Costa, e o padre Gonçalves.

À chegada das autoridades, o povo abre espaço. Os novos visitantes entram, o prefeito à frente; acenam para uns, inclinam a cabeça para outros. Um de cada vez, oferecem condolências ao velho Antunes, depois se dirigem ao ataúde. Fitam a fotografia do Roberto longamente em postura de reverência. Conversam um pouco entre si em voz baixa. Dona Rita vem da cozinha e cumprimenta o prefeito e os demais, agradece a visita, pede bênção ao padre. Alguém oferece refresco de limão às autoridades. Padre Gonçalves ergue o braço, pedindo silêncio, e sem esperar dá início a uma oração pelos mortos: “Pai santo, Deus eterno e Todo-Poderoso, nós Vos pedimos por Roberto Antunes, que chamastes deste mundo. Dai-lhe a felicidade, a luz e a paz… que sua alma nada sofra…”. Algumas vozes acompanham, hesitantes, a oração não muito conhecida. “Perdoai-lhe os pecados para que alcance junto a Vós a vida imortal no reino eterno. Por Jesus Cristo, Vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém.”

Às quatro em ponto tem início o saimento. À frente do cortejo, o ataúde é sustentado pelo tio Teixeira, pelo prefeito, pelo Dino violeiro e pelo farmacêutico Diogo. O velho Antunes acompanha, com a mão direita sobre o caixão. Faz força para caminhar ereto e com passadas firmes. Sente-se exausto mas feliz. Seu sonho de tantos anos finalmente se realiza; já pode morrer em paz. E toda a cidade compreendeu. Isso foi o mais importante. Toda a cidade. Até o padre Gonçalves, que primeiro lavou as mãos, depois deu a bênção. É tanta gente que os últimos do cortejo só alcançam a cova dez minutos depois dos primeiros. No céu, bem acima do cemitério, as nuvens engrossam. As duas irmãs do Roberto, Célia e Celina, sobem numa pedra e pedem silêncio para dar início à cerimônia. Passam então a ler uma memória sobre Roberto. Celina lê um parágrafo e passa para Célia, que lê o seguinte. Falam de como ele era quando menino, de suas travessuras, depois de seus sonhos de adolescência, do drama do vestibular, da alegria de ter passado, da colação de grau. Algumas pessoas soluçam. Falam brevemente do sofrimento da família. Depois, em uníssono, agradecem: muito obrigada pela presença de todos vocês.

A um sinal de Antunes, o caixão é baixado à sepultura e padre Gonçalves repete a oração pelos mortos. Pessoas passam rente à cova e atiram punhados de terra, mulheres jogam as rosas vermelhas trazidas pelas irmãs. O coveiro João assume, despejando muito depressa com a pá quantidades robustas de terra. O tio Teixeira de Bauru pega outra pá e apressa o sepultamento. As pessoas começam a dispersar. Caem os primeiros pingos de chuva. O caixão está enterrado. Dentro dele estão um paletó e um par de sapatos do Roberto. Seu corpo nunca foi encontrado.

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O conto integra o livro Você Vai Voltar Pra Mim, publicado em 2014 pela Cosac Naify


quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Obituário

Viver uma vida complemente diferente da que se vive. Quem nunca refletiu sobre essa possibilidade? Quem, afinal, tem coragem para mudar o rumo das coisas? 

Sair ileso de um quase atropelamento, de um acidente vascular cerebral, de um amor que chegou ao fim. São muitos os motivos para os seres humanos buscarem a tal nova vida. Digo seres humanos, porque existiu um animal que teve duas completamente diferentes. 

Uma gata chamada Mendi. Em sua primeira metade da vida, ela viveu no bairro Azenha, região central de Porto Alegre. Foi boêmia. Dormiu em bueiros. Revirou lixo. Brigou. Namorou. Perdeu boa parte dos dentes. Um retrato da rua, basicamente. Durante essa etapa caótica e efervescente, a felina resolveu descansar em um motor de uma viatura da EPTC (empresa de trânsito situada na Azenha). 

O resultado dessa má escolha foi o rabo escalpelado e uma internação via extinta Seda (Secretaria dos Direitos dos Animais). Foi tratada, castrada e vacinada. Sua ficha dizia assim: "fêmea, preta, idade e raça indefinidas". Sem um lar, ela retornou para a sede da EPTC. Virou um animal comunitário. Adquiriu um hobby: caçar sabiás. Fato que desagradou os cuidadores dos pássaros, que penduravam suculentas laranjas e bebedouros nas árvores. A população dos sabiás caiu consideravelmente. O que ocasionou um forte protesto. "Seria bom que essa gata arranjasse um dono e saísse daqui, porque como está não dá mais".  

A partir daí, inicia a segunda vida de Mendi. Aliás, nessa etapa ela foi assim nomeada. Tornou-se uma felina classe média, que dividia um bom apartamento com outro gato e dois humanos. Com eles, viveu mais sete anos. Nesse meio tempo, ganhou  a companhia de um novo humano, um bebê, e virou inspiração para o livro "Um gato que se chamava Rex". 

No dia 31 de dezembro Mendi faleceu. Foi vencida por um tumor . Deixou dois donos, Lucas Barroso e Marília Macedo, e, pelo menos, dois grandes amigos, Murilo e Mick (o outro gato). Se epitáfio tivesse, nele estaria escrito "amou, foi amada e morreu". 

Como todas as vidas tem que ser.