terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O Azedume no Rádio - Crônica de Paulo Sant'ana


Hoje vou falar sobre um fato que me provoca engulhos: os apresentadores de programas de rádio que são mal-humorados, azedos.

Houve recentemente um apresentador de programa de rádio que passou xingando, durante 15 anos, todos os ouvintes que ele entrevistava.

Isso devia causar revolta nos entrevistados, mas nos ouvintes em geral causava espanto que se entregasse o microfone de uma rádio para um profissional desancar os entrevistados em todas as entrevistas.

Durante 15 anos, foi aquele mal-estar entre os ouvintes daquele programa. Era pau e pau no ouvinte, mas não era um pau e pau cordial, tipo brincadeira. Era pau e pau severo, pancadaria verbal amaríssima (vem de amargo) sobre os entrevistados.

Foi uma página triste do rádio gaúcho.

Mas há ainda muitos outros apresentadores de programas mal-humorados. A gente está engarrafado no trânsito e fica ouvindo os mal-humorados do rádio espalhando com metástase o seu azedume entre os ouvintes.

Não há nada pior do que estar engarrafado numa das avenidas porto-alegrenses e receber no rádio aquela onda de acidez humoral despejada no microfone pelos mal-humorados que apresentam certos programas. O engarrafamento fica mais longo, penoso e insuportável.

Não posso entender, sinceramente, que se utilize o rádio para transmitir amargor permanentemente.

Rádio não é lugar para mal-humorado trabalhar. Que busque outra atividade, talvez como segurança, mas não infringindo o apostolado de alegria e cordialidade que deve caracterizar as transmissões radiofônicas.

Há dias, eu tinha de ir a Esteio para uma reunião com membros de uma imobiliária que me fizeram uma trampolinagem.

Eu estava decidido a botar pra quebrar nessa reunião. Queria lascar o pau verbal nos autores da falsa esperteza em que quiseram me envolver.

Então planejei o seguinte: marquei a reunião lá para Esteio para um horário logo em seguida a um programa de rádio apresentado por um desses azedinhos que não têm jogo de cadeiras e inculcam seu mau humor nos ouvintes.

Fui ouvindo durante 50 minutos o programa do apresentador mal-humorado. Fui me irritando pela BR-116 e, quando cheguei à reunião, eu estava no ponto, na ponta dos cascos para a intervenção severa e mal-humorada que eu tinha de apresentar na reunião.

Em meio ao meu discurso ácido, as pessoas que eu xinguei impavidamente chegaram a me oferecer um sal de frutas para tentar me suavizar.

Mas consegui me safar da encrenca de Esteio massageado pelo programa mal-humorado que fui ouvindo até lá.

Por outra parte, para ser justo, há muitos apresentadores de programas de rádio que são alegres e cordiais, infundem otimismo nos ouvintes, principalmente pelas manhãs, quando todos estão iniciando o dia e necessitam levantar o astral.

Portanto, abaixo o mau humor no rádio, viva o contentamento no rádio. Sejam otimistas e alvissareiros os apresentadores de programas de rádio, espalhem bom astral para seus ouvintes, já que na maioria das vezes as pessoas ligam o rádio para ver se ele as ajuda para saírem de sua aflições.

E um dos deveres principais do rádio é o de socorrer as pessoas preocupadas ou aflitas.

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Crônica de Paulo Santana. Publicada originalmente no jornal Zero Hora, em 23 de setembro de 2012.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Piá Injuriado


Aconteceu na linha T6.

O piá trazia um caminhãozinho nos braços. Quieto, tava sentado com a vó no banco vermelho, o assento preferencial dos idosos, obesos, grávidas. Com o ônibus cheio, logo uma velha encostou próximo a dupla.

- Cléverson, deixa a senhora sentar.

Cléverson saiu. Ficou em pé. Mas segundos depois soltou essa.

- Mas isso é injusto.
- É injusto o quê? – perguntou a vó.
- Eu cheguei primeiro.
- Tu tem que dar lugar pros mais velhos, sabia?
- Eu sei. Mas é que eu cheguei primeiro.
- Não interessa quando tu chegou. Os bancos vermelhos são pros  idosos sentarem.
- Mas eu já disse que cheguei primeiroooooooooooo!

A velha que acabara de sentar, manteve o rosto firme. Sequer olhava a birra. A vó ralhou com seu netinho.

- Fica quieto! Esse lugar é da senhora aqui, viu? Seu mal criado!

Com a voz murcha o moleque rebateu.

- Eu sei que sou mal criado... mas é que eu cheguei primeiro, vó.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

A Vida É Assim Mesmo


Melhor é comprar dos dogrados. É menos da metade do preço. Se pechinchar, sai uns 10% do valor da loja. Era sua justificativa quando aparecia com algo de segunda mão em casa.

Dessa maneira, já tinha adquirido um ventilador de teto, computador, som 3 em 1, processador de alimentos, barbeador elétrico, escova alisadora e chapinha, ocúlos de sol, roupas, sapatos... Produtos de última geração e marcas de qualidade.

A esposa ficava chateada, mas utilizava as bugigangas. Um tanto a contragosto, é bem verdade, pois sua consciência pesava, principalmente, à noite, antes de dormir. Nesses momentos, cutucava o marido e puxava assunto. Dividia sua angústia. Mesmo se fosse às duas da madrugada.

- Hoje, uma senhora desesperada veio até aqui tentar recuperar uma panela de pressão.
- O quê?!

A velha afirmou que seu neto tinha vendido a tal panela "novinha". Desconfiava que eles eram os compradores.

- Temos a mesma panela há um tempão! - ele disse.
- Eu sei, amor.
- E o que tu fez?
- Falei que não compramos. Mas coitada... tu tinha que ver a cara da senhora. Tava acabada.
- Coitado de mim, que me ralo o dia inteiro trabalhando e não ganho merda nenhuma.
- Imagina ficar sem panela de pressão...
- Para com isso! Tu não quer que compre mais coisas de drogados, é isso?
- Não é isso...
- Tu quer ficar pagando carnê, tu prefere não ter porra nenhuma em casa, é isso?
- Tá bom, chega dessa conversa. Vamos dormir, amor. Desculpa por ter te acordado - ela concluiu, porque tinha trauma de contas e seu nome estava sujo há anos.

Virou pro lado e pensou que, no fundo, seu marido tinha razão. Azar dos crackeiros, que se fudessem. Eles e suas famílias. Estava se lixando. Não mandou ninguém se meter com droga. As mães e vós deles que se virassem. A vida é assim mesmo. Pensava isso de coração, pois primeiro queria o melhor para si. Sofreu demais com a pobreza. Agora, merecia desfrutar as coisas boas da vida, em sua casinha e com seu homem.

E que Deus tratasse de lhe perdoar e, também, de lhe devolver o sono, que ela havia acabado de perder.