Era um tempo de crise. Como esse tempo de agora. Só que era diferente. Era um tempo onde se comprava carne, qualquer uma, para estocar. Pois faltava carne. Amontoavam-se os cortes no minúsculo freezer da geladeira. E o osso ainda ia para a sopa para dar gosto. Não escapava nada.
Calçado era um de ir pra escola e um para sair. Só que se saía muito pouco. As roupas que ficavam gastas eram costuradas, reformadas. E assim ia se levando.
Foi nesse tempo bicudo que apareceu uma calça da Adidas no varal. Dividíamos os varais, aqueles de roldanas, localizados no vão dos prédios, com a vizinha da frente, a pacata Dona Santa. Decerto que a velha não teria uma calça da Adidas. Então...
- De onde veio essa calça aqui? – perguntou meu pai.
- Minha que não é – me adiantei.
- É tua essa calça, mulher?
- Aham – se entregou minha mãe.
- E como tu comprou uma calça de marca?
- Não é de marca.
- Como assim? Tá aqui ó: Adidas.
- Não é. Ela é falsificada.
- Nossa, mas que bem feita!
- Sim! Tem muitas coisas falsificadas nos camelôs. Tudo da China, mas de boa qualidade. E custa menos da metade de uma original.
- Tu vê... Daí, está valendo mesmo.
Eu ouvi tudo aquilo quieto, intrigado. Depois, fui no varal ver a tal calça. Muito bonita. Tecido macio. As três listras ao longo das pernas. Parecia original. Será que tinha masculina, tamanho M? Ia ser legal ir para escola com uma daquelas.
- Mãe, em qual camelô tu comprou aquela calça? Na Assis Brasil ou no Centro?
- Que calça?
- A da Adidas. Queria uma igual pra mim. E se é barata, tava pensando que...
- Comprei na Mesbla.
- Mas tu falou para o pai que foi no camelô.
- E tu acha que vou comprar porcaria em camelô?! Só falei para teu pai não me encher a paciência. A gente, de vez em quando, tem que comprar o que gosta, meu filho... Por favor, vamos viver para que então?!
E ela foi emendando uma frase na outra, dizendo que não aguentava mais aquilo tudo. Afirmou que as coisas estavam pior que quando ela era criança, no Sarandi, onde a porta do forno do fogão era amarrada com um arame, etc etc etc.
Eu ouvi e entendi a revolta da minha mãe, porque eu também queria uma calça original da Adidas.
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