quinta-feira, 2 de setembro de 2021

A Calça da Adidas

Era um tempo de crise. Como esse tempo de agora. Só que era diferente. Era um tempo onde se comprava carne, qualquer uma, para estocar. Pois faltava carne. Amontoavam-se os cortes no minúsculo freezer da geladeira. E o osso ainda ia para a sopa para dar gosto. Não escapava nada. 

Calçado era um de ir pra escola e um para sair. Só que se saía muito pouco. As roupas que ficavam gastas eram costuradas, reformadas. E assim ia se levando. 

Foi nesse tempo bicudo que apareceu uma calça da Adidas no varal. Dividíamos os varais, aqueles de roldanas, localizados no vão dos prédios, com a vizinha da frente, a pacata Dona Santa. Decerto que a velha não teria uma calça da Adidas. Então...

- De onde veio essa calça aqui? – perguntou meu pai.

- Minha que não é – me adiantei.

- É tua essa calça, mulher? 

- Aham – se entregou minha mãe. 

- E como tu comprou uma calça de marca? 

- Não é de marca.

- Como assim? Tá aqui ó: Adidas.

- Não é. Ela é falsificada.

- Nossa, mas que bem feita! 

- Sim! Tem muitas coisas falsificadas nos camelôs. Tudo da China, mas de boa qualidade. E custa menos da metade de uma original.

- Tu vê... Daí, está valendo mesmo. 

Eu ouvi tudo aquilo quieto, intrigado. Depois, fui no varal ver a tal calça. Muito bonita. Tecido macio. As três listras ao longo das pernas. Parecia original. Será que tinha masculina, tamanho M? Ia ser legal ir para escola com uma daquelas. 

- Mãe, em qual camelô tu comprou aquela calça? Na Assis Brasil ou no Centro?

- Que calça? 

- A da Adidas. Queria uma igual pra mim. E se é barata, tava pensando que...

- Comprei na Mesbla.

- Mas tu falou para o pai que foi no camelô.

- E tu acha que vou comprar porcaria em camelô?! Só falei para teu pai não me encher a paciência. A gente, de vez em quando, tem que comprar o que gosta, meu filho... Por favor, vamos viver para que então?!

E ela foi emendando uma frase na outra, dizendo que não aguentava mais aquilo tudo. Afirmou que as coisas estavam pior que quando ela era criança, no Sarandi, onde a porta do forno do fogão era amarrada com um arame, etc etc etc. 

Eu ouvi e entendi a revolta da minha mãe, porque eu também queria uma calça original da Adidas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário