sexta-feira, 29 de maio de 2015

O Que É A Vida, Senão Uma Encenação?


Era uma sensação esquisita, de estar sempre recomeçando, como se ainda não tivesse vivido e errado o suficiente. Eles, muitos que nem conhecia, orientavam-me, na busca por um desempenho satisfatório. E eu queria agradar. Não posso mentir a vocês. Eu queria agradar. Já era noite e ainda estávamos no set, gravando as últimas cenas da minha vida. A seleção de atores fracassou e acabei sendo escolhido para o papel. Ninguém esperava. Ninguém botava fé. Mas estudei meus trejeitos, caracterizei-me e mergulhei fundo na psique do personagem. Quando me dei conta, estava sendo uma bela representação de mim mesmo. Como nunca fui.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Quem Poderia Ter Sido Dora Bruder


Dora Bruder, no centro, com seus pais

Patrick Modiano, o mais recente vencedor do prêmio Nobel de Literatura, inicia o romance Dora Bruder, publicado em 1997, a partir de um anúncio, que descobriu folheando um jornal antigo, o Paris-Soir, do dia 31 de dezembro de 1941.

“Procura-se jovem, Dora Bruder, 15 anos, 1,55cm, rosto oval, olhos marrom-acinzentados, casacão cinza, suéter bordô, saia e chapéu azul-marinho, sapatos marrons. Qualquer informação dirigir-se ao Sr. e à Sra. Bruder, bulevar Ornano, 41, Paris”.

A partir dessas informações, Modiano tenta recontar os passos de Dora, uma francesa filha de judeus. A narrativa, não linear, é construída a partir de pistas, suspeitas, alguns dados oficiais e lembranças do período de ocupação nazista na França - época recorrente nas obras do autor. A própria trajetória de Modiano, que viveu esse período na mesma região de Dora, serve como auxílio para tentar entender o que aconteceu a ela.

O romance reconstitui - mesmo quando não há precisão - um tempo nebuloso de nossa história, onde vidas eram relegadas ao esquecimento, por pura tirana e intolerância. Entretanto, Modiano não aponta para os culpados, ele apenas se faz presente - de mãos dadas a Dora. Seu objetivo é não nos deixar esquecer a barbárie.


Alguns trechos de Dora Bruder

"Como muitos outros antes mim, acredito pessoalmente nas coincidências, e, às vezes, no dom de vidência dos escritores - a palavra "dom" não é o termo exato, já que sugere uma espécie de superioridade. Não, isso faz parte da profissão: os esforços de imigração, necessários nessa profissão, a necessidade de fixar o espírito em pontos, detalhes - de maneira até obsessiva - para não perder o fio da meada, deixando-se ir de forma aleatória - toda essa tensão, essa ginástica cerebral, pode certamente provocar, a longo prazo, breves instituições "relativas a acontecimentos passados ou futuros", como está escrito no dicionário Larousse, no tópico "Vidência" (pág 48-49).

"Lembro-me da forte emoção que experimentei ao fugir em janeiro de 1960 - tão forte que acho que até hoje não conheci nada igual. Era como a embriaguez de arrebentar, de uma só vez, todas as amarras: ruptura brutal e voluntária com a disciplina imposta, o pensionato, os professores, os colegas de classe. De agora em diante, você não tem mais nada a ver com essas pessoas; ruptura com os pais, que não o souberam amar, e de quem você diz que não pode esperar nenhuma ajuda; sentimentos de revolta e de solidão levados ao extremo, que interceptam nossa respiração, colocando-nos em um estado de levitação. Sem dúvida, uma das raras ocasiões da minha vida em que fui eu mesmo, em que caminhei com meus próprios pés (...) Penso em Dora Bruder. Digo a mim mesmo que sua fuga não era tão simples como a que vivi, vinte anos mais tarde, num mundo que se tornaria inofensivo. Esta cidade de dezembro de 1941, com seu toque de recolher, seus soldados, sua polícia, tudo lhe era hostil e queria destruí-la. Aos 16 anos, o mundo todo estava contra ela, sem que ela soubesse o por quê" (pág 72-73).

segunda-feira, 25 de maio de 2015

O Último Imigrante - Trecho do Conto


Trecho do conto O Último Imigrante, que estou trabalhando.

(...)

A celebração da missa contou com a presença do arcebispo. Para eles, isso era algo fascinante. O homem declamou uns versos da Bíblia e eu vi meu pai bocejar diversas vezes. Antes do encerramento, um assistente pediu um instante de atenção e avisou que padres estariam dispostos no fundo da igreja, para quem quisesse se confessar. Fui até o local. E eles estavam lá, sentados, aguardando os fiéis. Era curioso. Confissões a céu aberto. Apenas um deles estava só. Uma cadeira de ferro, dessas de marca de cerveja, esperando alguém.

Desconfiei que aquilo era um sinal e fui me confessar, talvez, fosse uma boa hora para me redimir.

- Padre, eu...
- Você fez catequese, meu filho? – interrompeu-me.
- Por que a pergunta?
- Foi batizado?
- Não é comum padres saírem perguntando essas coisas logo de cara. Qual é o seu problema?
- Meu filho, você não é católico.
- E como você sabe?!
- Pressenti.
- Você não quer me ouvir, é isso? Seja sincero, um homem na sua posição, quase uma autoridade, não pode mentir.
- Só ouço confissões de pessoas que pretendem ou querem, de fato, arrepender-se do que fizeram. O que não é seu caso, meu filho.
- Vou lhe dar um desconto, padre. Imagino que deva estar cansado de ver o mundo nessa situação, de ouvir tanta gente prometer coisas e não cumprir ou, talvez, no fundo, você sabe que essas falhas fazem parte do jogo e você não tem serventia – tomei um pouco de ar e segui disparando palavras pesadas, como cavalos em uma cancha reta. – Você sabe que tudo isso vai ruir. Essas pessoas precisam de esperança, de conquistas. Os meninos querem minha vida, padre! Você percebeu como me olhavam? Os meninos sequer ouvem seus conselhos. O mundo é maior que você e sua igrejinha no meio do nada!
- Meu filho, você está tomando meu tempo e o lugar de outra pessoa.

Levantei-me. Ele tinha toda a razão. Estava na cara que eu não prestava. Estava na cara que eu era uma má influência. Aquelas pessoas tinham, sim, um propósito, um ideal. Eles eram a resistência. Eu e meu pai éramos apenas vendedores de ilusão.

(...)

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Arte É Conflito


"A Itália, durante trinta anos sob os Borgias, conheceu a guerra, o terror, o assassinato e o derramamento de sangue. Mas produziu Michelangelo, Leonardo da Vinci e o Renascimento. Na Suíça, eles têm o amor fraternal e quinhentos anos de democracia e paz - e o que produziram? O relógio de cuco."

Graham Greene, escritor inglês 

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Algo Que Você Tem Que Ter


Eu e um senhor, no ponto de ônibus, na avenida Protásio Alves. Ele puxa conversa e lá pelas tantas estamos falando de milho. Não sei como chegamos a esse assunto.

- Bom mesmo é um milho cozido - eu disse.
- Assim, comendo direto no sabugo? - ele retrucou.
- Sim, lógico! E com manteiga e sal em cima.
- É, meu filho... Mas, daí, tem que ter boa dentição.

Os velhos são sábios. Boa dentição! Fica a dica para vocês.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

A Irmandade Da Uva - John Fante Em Estado Puro


John Fante é um caso raro de escritor que não publicou livros ruins. Sua produção não é vasta, é verdade - foram seis livros em vida e mais alguns póstumos, totalizando catorze -, mas, de qualquer forma, é um grande feito só escrever boas histórias.

Fante é amplamente reconhecido por Pergunte ao Pó - o clássico que inspirou Charles Bukowski -, entretanto, sua bibliografia tem outros achados como Sonhos de Bunker Hill - romance que ditou para sua esposa no final de sua vida, quando já estava cego devido à diabetes -, Espere a Primavera, Bandini, 1933 Foi um Ano Ruim e, o mais recente, A Irmandade da Uva.

Todas suas histórias são escritas em primeira pessoa, com personagens que nada mais são que alter-egos do autor - Arturo Bandini, Dominic ou Henry Molise -, relatando as dificuldades de um pobre imigrante italiano tentando se virar nos Estados Unidos.

Em A Irmandade da Uva o panorama não muda, mas o foco sai do alter-ego - ele ainda está lá - e é deslocado para o pai de Fante, ops, o pai de Henry, o rabugento e bêbado Nick Molise. Sem dúvida, é a história mais madura do autor - foi escrita um ano antes de sua morte e parece um ajuste de contas com o tempo. É ambientada na pacata cidade de San Elmo e retrata uma relação confusa e tardia entre um pai e um filho. Não há pieguice, há, sim, a habitual ironia e as belas descrições que Fante sabe construir. E pra não fugir da regra, há também há aquele ritmo característico do autor, que, segundo seu fã ilustre, Bukowski, vêm "das entranhas e do coração".