segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Basta estar vivo


Para morrer, basta estar vivo. É um clichê. Mas é, também, uma verdade absoluta. Soube disso, porque tive uma parada respiratória faz um tempo. Levem o rapaz para o Clínicas! Fui. Ar entrava com dificuldade. Ar saía com mais dificuldade ainda. Algo me comprimia por dentro. Morrer assim, não deve ser fácil. Velho Zé, que vendia espetinho de gato no Parque São Sebastião, sempre dizia. Prefiro a morte a morrer afogado. Estava certíssimo. Acho que tinha se passado duas horas. Ou alguns minutos. Não aguentava mais esperar no saguão. Ninguém me acudia. Curvado. Em busca de ar. Tomei coragem. Me levantei e saí. Como uma tartaruga querendo fugir na areia. Onde tu vai? Alguém me perguntou – um médico, um enfermeiro ou um vigia. O que respondi não lembro. Se tu realmente for, tu vai ter que assinar um papel, porque tu vai morrer e a gente não vai se responsabilizar. Bastava estar vivo mesmo.  

Na maca. Cirurgiões falando banalidades. Me cravaram um tubo entre as costelas. Ouviam Continental FM. Tocava Baby come back. E o tubo raspando os ossos. Apaguei. Olhos abertos de novo. Dor. Morfina. Uma onda de paz. Dor. Morfina. Outra onda de paz. Cinco dias na emergência superlotada. Mais vinte e cinco dias em um quarto com outros pacientes. Outra cirurgia. Pronto. Nada tão grave. Parada respiratória em decorrência de um pneumotórax espontâneo. É a vida... Virei atração dos estudantes da UFRGS. Três turmas foram me encontrar. Perguntas idênticas. Algum acidente de moto ou trauma? Drogas? Fuma? Sentiu dores outras vezes? Quando? Onde? Diga trinta e três, por favor. Puxe o ar o mais forte que puder.  

Teve uma outra visita. Falam mal dos evangélicos. Eu mesmo falava. Porém, a única pessoa desconhecida que me apareceu foi uma senhora evangélica. Posso orar por ti? Sim, senhora. Meu Deus do ceú, ilumina esse rapaz! Olha pela cabeça dele, pelas vistas dele, pelo coraçãozinho dele, pelo estômago dele. Cuida desse rapaz, meu Deus do céu! Me mirou com uns olhos bondosos e se despediu. Faltou avisar Deus que era no pulmão o problema. Não tinha como ela saber, acho. 

Os dois colegas de quarto. O que ficava mais próximo da porta fedia demais. Algo no estômago? Quem sabe... Um homem do interior do estado. Nunca recebia visitas. Não se queixava. Se sofria, sofria calado. Na cama do meio, Seu Flávio. Eu, próximo à janela, porque precisava de ar. Seu Flávio estava cego pela diabetes. Sua esposa ia todos os dias lhe fazer companhia. E o xingava sem dó. Eu te falei, Flávio. Mas tu é teimoso. Agora, taí. Aiiii! Não adianta gemer, Flávio. Tu não quis se cuidar. Essa é a verdade. E tu sabe muito bem disso, Flávio. Se tu tá assim, a culpa é só tua!  

Não é fácil acompanhar doentes. Meu pai, um dia, perdeu a paciência. Eu tinha que soprar uns tubos com bolinhas. Conhecido como exercitador respiratório pulmonar. Fisioterapia. Meu velho junto. Observando. A bolinha só se movia no primeiro estágio. Bah, mas tu tá soprando isso de má vontade, não é possível! O médico na mesma toada. 6h. Chegava, dava seu recado, explicava os procedimentos para a enfermeira-chefe. Previsão de alta, doutor? Te acalma, só vamos ver isso quando passar essa tua pneumonia. Mas doutor... E ele já tinha ido.    

Um dia, durante a madrugada, chegou uma dupla de jaleco branco. Gelei. Não era comigo. Boa noite, Seu Flávio! Tudo bem com o senhor? Tudo bem, meu filho. Pois é... Não tá tudo bem, não. Hoje ainda, vamos ter que fazer um procedimento de emergência e amputar sua perna. Poxa, vida! Infelizmente, não tem outro jeito, Seu Flávio. Logo mais, a enfermeira vai lhe preparar. Sua família já foi avisada. Mas doutor... E eles já tinham ido.  

A esposa do Flávio surgiu. Sentou ao seu lado. Eles me disseram da tua perna, Flávio. Não adianta. Não tem o que fazer. Passou a mão nos cabelos ralos do marido. Como se orasse. Como se tentasse entender. Vai dar tudo certo, Flávio.   

E em poucos dias a pneumonia se foi. Fiz minha própria barba. Tomei banho sozinho. Pus uma roupa com dificuldade. A camisa parecia vestir um cabide. Fingi que não tinha dor alguma e era forte. Acabou. Me arrastei pelos corredores do hospital. Braço firme de meu pai e minha mãe me carregando. Me empurrando para frente. Até que a porta principal do Hospital de Clínicas se abriu. Um Sol vibrante se chocou contra minha cara. Daqueles tão lindos. Daqueles que basta estar vivo para sentir.


sábado, 24 de dezembro de 2022

Torcendo por Pelé - Ruy Castro


E se seu futebol tiver sido ainda maior do que pensávamos?

No tempo de Pelé, as bolas e chuteiras eram de couro de verdade, e cada chute tentava fazer jus à força do triste animal de que descendiam. Eram grosseiras, pesadas e, com a grama molhada, ganhavam o dobro do peso inicial. As camisas eram de uma malha que acumulava suor e também pesava, como se cada jogador carregasse um companheiro nas costas. Imagine a diferença que isto fazia nas cabeçadas, na quantidade de esforço para a impulsão.

Antes de 1970, e Pelé começou em 1956, não existiam os cartões amarelo e vermelho. Como os juízes não tinham como contar o quanto cada um batia, os adversários nem precisavam se revezar para acertá-lo. Pelé apanhou tanto que teve de aprender a bater. Como seria se, desde o começo, houvesse essa emenda à regra, que tanto beneficiou os artilheiros e dribladores? Ou os adversários o enfrentavam na bola ou seriam expulsos, pelo número de faltas sobre ele.

No tempo de Pelé, não havia a internet como hoje. Todos entravam em campo contra adversários que nunca tinham visto jogar. Nenhum atacante sabia nada sobre o homem que iria marcá-lo —se era técnico, desleal, rápido ou lento. Teria que descobrir durante a partida. Hoje, os 22 do time X já sabem tudo sobre os 22 do time Y e vice-versa, mesmo que sejam o Asa de Arapiraca e o Real Madrid. Mas, em cinco minutos, Pelé já vira tudo que precisava saber.

Finalmente, pelo Santos ou pela seleção, Pelé jogou com ou contra Garrincha, Zizinho, Puskàs, Di Stéfano, Didi, Bobby Charlton, Kopa, Fontaine, Eusébio, Tostão, Gerson, Bobby Charlton , Jairzinho, Cruyff, Neeskens, Gerd Müller. Era maior do que todos eles. E os goleiros e beques que tinha de vencer eram Gilmar, Yashin, Banks, Mazurkiewicz, Carlos Alberto, Mauro, Nilton Santos, Breitner, Beckenbauer, Bobby Moore. Venceu-os a todos.

Só falei com Pelé uma vez. Mas ele falou comigo a cada toque na bola que o vi fazer.

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Ruy Castro (Folha de São Paulo, 22 de dezembro de 2022)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Para Graciliano Ramos é indiferente estar preso ou solto

Entrevista ping pong com Graciliano Ramos. Detalhe. O escritor disse que esperava morrer ao 57 anos. Errou por pouco. Morreu aos 60 anos. Câncer no pulmão, provavelmente por fumar os tais três maços de cigarros Selma por dia.


quarta-feira, 30 de novembro de 2022

O que importa pra nós


Acontece que fizemos coisas que significam muito pra gente, mas para os outros nem tanto. Por diversas razões. Foi assim quando Cazuza escreveu um poema para sua avó. A velha não deu tanta importância para os versos do então jovem Agenor – nome da certidão do cantor. Guardou a folha com os versos numa caixinha. Daí, como é sabido, o destino levou Cazuza cedo demais e ocorreu o maior dos pesadelos, que é uma mãe e uma vó enterrarem um filho/neto.  

O tempo obrigatoriamente passou. No final da década de 90, a mãe do artista, Lucinha Araújo, vasculhando as recordações da sogra, encontrou o tal poema. Na mesma caixinha. As palavras ganharam um novo significado. Estavam, agora, tomadas de sentido. Lucininha publicou em jornal. Virou uma canção. Frejat musicou e Ney Matogrosso foi o intérprete escolhido.  

Se chama simplesmente Poema e fala de afeto e outras tantas coisas... Inclusive, sobre o que aconteceu há minutos atrás e pode ser tão importante pra gente.

Assim como pode ser belo e não ter fim.

Poema (Cazuza / Frejat) 

Eu hoje tive um pesadelo e levantei atento, a tempo
Eu acordei com medo e procurei no escuro alguém com seu carinho
E lembrei de um tempo
Porque o passado me traz uma lembrança
Do tempo que eu era criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço ou um consolo 

Hoje eu acordei com medo, mas não chorei
Nem reclamei abrigo
Do escuro, eu via um infinito sem presente
Passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim
Que não tem fim... 

De repente, a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua
Que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito
Porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás


sábado, 19 de novembro de 2022

O sonho de um homem


Na década de 50, a Zona Norte de Porto Alegre era um retrato em preto e branco. E meu vô, Algenor, vivia nele. Veio de São Luiz Gonzaga para viver um sonho. A ilusão da cidade grande. Ficou pelo bairro Sarandi, com minha vó e seus três filhos - um deles, meu pai.

Foi frentista em um posto de combustíveis na avenida Assis Brasil com a rua Edmundo Bastian. O estabelecimento ainda existe. Meu avô, não mais. Morreu na década de 70. Trabalhou demais. Viveu de menos. Não conheceu nenhum neto. Mas sonhou. 

Ele também foi motorista da linha de ônibus Sarandi, na mesma década de 50 e ao longo de muitos anos. A linha ainda resiste e circula por algumas ruas que Algenor tanto passou. 

Será que alguém ainda se lembra do meu vô? Dizem que era meio ruivo. Pelo duro. Atarracado. Gostava de churrasco, dança, música gaúcha - Os Irmãos Bertussi era o seu grupo favorito - e fotografia. Fazia questão de registrar um ônibus recém comprado pela empresa, uma turma de amigos ou colegas de trabalho.

Já faz tanto tempo... Alguém ainda sente saudade dele? Imagino que sim. Seus filhos, já velhos, certamente sonham com seu pai. Contudo, logo eles irão embora. 

E caberá a mim sonhar. Depois, aos meus filhos. Um sonho que, aos poucos, também vai se apagar... Como as memórias vividas, as pessoas que passaram em nossas vidas e a Zona Norte da década de 50.




quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Bolsonarismo 2.0

Foto: Fred Magno/ O Tempo

As eleições acabaram. Por uma diferença de 2,1 milhões de votos, Lula foi o escolhido pela maioria dos brasileiros, no segundo turno. Jair Bolsonaro, que buscava a reeleição, saiu derrotado. Contudo, o Bolsonarismo seguirá vivo por um bom tempo. Mesmo o seu líder máximo não exercendo nenhum mandato. 

Esse período pós-eleições é uma prova disso. Os bolsonaristas mais fervorosos estão indignados. Alguns caminhoneiros bloquearam estradas, manifestantes de verde-amarelo bradaram palavras de ordem pelas ruas e influenciadores digitais e de imprensa cuspiram fogo. Afinal, ninguém gosta de perder. Ainda mais para seu algoz, o PT.  

É bem possível que essa fase seja reconhecida, no futuro, como Bolsonarismo 2.0. Movimento onde nem mesmo o presidente de 2019 a 2022 fez parte. Importante salientar que Bolsonaro – demorou, mas – já admitiu a derrota nas urnas, está promovendo a transição com o governo petista e pediu o fim de protestos violentos ou que bloqueiam rodovias.  

Porém, o Bolsonarismo 2.0 não está nem aí para os fatos. Sua horda, inclusive, superou Jair Messias. Esse neobolsonarismo decodificou, via grupos de Whats App, o discurso de seu mito e entendeu o contrário – como se ouvissem um disco de trás para frente em busca de uma mensagem subliminar.  

O bolsonarista 2.0 é complexo e merece ser estudado. Se diz democrata, mas foi para frente de quartéis do Exército pedir um golpe anti-democrático. Eles também juram que agem pela liberdade. Entretanto, vibraram com caminhões impedindo o direito de ir e vir das pessoas e prejudicando a economia do país. Logo a economia, que era o bem mais precioso – não a vida – durante a pandemia, segundo os próprios.  

A complexidade segue. Fomos criados com a máxima do "prevenção é o melhor remédio". O candidato a governador do Rio Grande do Sul, Onix Lorenzoni, um bolsonarista 2.0 que também perdeu nas urnas, atualizou o ditado. Para ele, “melhor vacina que existe é pegar a doença”, afirmou categoricamente em um debate, se referindo a covid-19 que ceifou quase 700 mil vidas no Brasil. Ou seja, ficar doente é o melhor remédio.  

Como foi dito, é tudo muito complexo, pois não há o que não haja.


terça-feira, 18 de outubro de 2022

Trovoa - Maurício Pereira

 



Minha cabeça trovoa

Sob meu peito te trovo e me ajoelho

Destino canções pros teus olhos vermelhos

Flores vermelhas, Vênus, bônus

Tudo o que me for possível ou menos

Mais ou menos

Me entrego, ofereço

Reverencio a tua beleza

Física também, mas não só

Não só

Graças a Deus você existe

Acho que eu teria um troço

Se você dissesse que não tem negócio

Te ergo com as mãos

Sorrio mal, mal sorrio

Meus olhos fechados te acossam

Fora de órbita

Descabelada

Diva, súbita, súbita

Seja meiga, seja objetiva

Seja faca na manteiga

Pressinto como você chega ligeira

Vasculhando a minha tralha

Bagunçando a minha cabeça

Metralhando na quinquilharia

Que carrego comigo

Clipes, grampos, tônicos

Toda a dureza incrível do meu coração

Feita em pedaços

Minha cabeça trovoa

Sob teu peito eu encontro

A calmaria e o silêncio

No portão da tua casa no bairro

Famílias assistem TV, eu não

Às 8:00 da noite

Eu fumo um Marlboro na rua como todo mundo

E como você, eu sei, quer dizer

Eu acho que sei, eu acho que sei

Vou sossegado e assobio

E é porque eu confio em teu carinho

Mesmo que ele venha num tapa

E caminho a pé pelas ruas da Lapa

Logo cedo, vapor, acredita?

A fuligem me ofusca

A friagem me cutuca

Nascer do sol visto da Vila Ipojuca

O aço fino da navalha me faz a barba

O aço frio do metrô

O halo fino da tua presença

Sozinha na padoca em Santa Cecília

No meio da tarde

Soluça, quer dizer, relembra

Batucando com as unhas coloridas

Na borda de um copo de cerveja

Resmunga quando vê

Que ganha chicletes de troco

Lebrando que um dia eu falei

Sabe, você tá tão chique

Meio freak, anos 70, fique, fica comigo

Se você for embora eu vou virar mendigo

Eu não sirvo pra nada

Num' vou ser teu amigo

Fique, fica comigo

Minha cabeça trovoa

Sob teu manto me entrego

Ao desafio de te dar um beijo

Entender o teu desejo

Me atirar pros teus peitos

Meu amor é imenso

Maior do que penso

É denso

Espessa nuvem de incenso de perfume intenso

E o simples ato de cheirar-te

Me cheira à arte, me leva à Marte

A qualquer parte, a parte que ativa a química

Química

Ignora a mímica

E a educação física

Só se abastece de mágica

Explode uma garrafa térmica

Por sobre as mesas de fórmica

De um salão de cerâmica

Onde soem os cânticos

Convicção monogâmica

Deslocamento atômico

Para um instante único

Em que o poema mais lírico

Se mostre a coisa mais lógica

E se abraçar com força descomunal

Até que os braços queiram arrebentar

Toda a defesa que hoje possa existir

E por acaso queira nos afastar

Esse momento tão pequeno e gentil

E a beleza que ele pode abrigar

Querida, nunca mais se deixe esquecer

Aonde nasce e mora todo o amor


terça-feira, 4 de outubro de 2022

Trechos de Piloto de Guerra - Antoine de Saint-Exupery

 


Eu penso... Eu penso muitas coisas. Espararei a noite, se estiver vivo, para refletir. Vivo... Quando uma missão está fácil, retorna uma a cada três. Quando é um pouco “chata”, fica mais difícil, evidentemente, voltar. E aqui, no gabinete do comandante, a morte não me parece nem augusta nem majestosa, nem heroica nem dilacerante. Ela é apenas um sinal de desordem. Um efeito da desordem. O Grupo vai nos perder, como se perdem bagagens numa confusão de conexões de estradas de ferro.

E não é que não pense sobre a guerra, sobre a morte, sobre o sacrifício, sobre a França, qualquer outra coisa, mas me falta conceito diretor, uma linguagem clara. Penso por contradições. Minha verdade está em pedaços e só posso considerá-los um após o outro. Se estiver vivo, espararei a noite para refletir. A noite bem-amada. À noite, a razão dorme, e simplesmente as coisas são como são. As que importam verdadeiramente retomam sua forma, sobrevivem às destruições das análises do dia. O homem reata seus pedaços e se torna árvore calma. 

O dia é das cenas de briga, mas à noite, aquele que brigou reencontra o Amor. Pois o amor é maior do que o sopro das palavras. E o homem se debruça em sua janela, sob as estrelas, de novo responsável pelos filhos que dormem, pelo pão vindouro, pelo sono da esposa que repousa ali, tão frágil, delicada e passageira. O amor não se discute. Ele é. Que venha a noite e se mostre a mim alguma evidência que mereça o amor. Para que eu pense a civilização, o destino do homem, o gosto da amizade no meu país. Para que eu deseje servir a alguma verdade imperiosa, mesmo que, talvez, ainda inexprimível...

Por enquanto, pareço-me inteiramente com o cristão abandonado pela graça. 

(...)

Esperarei a noite, se puder ainda viver, para andar um pouco a pé na grande estrada que atravessa nossa vila, envolvido em minha solidão bem-amada, a fim de nela reconhecer por que eu devo morrer. 

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Aprendi aos quinze anos a minha primeira lição: um irmão, mais novo que eu, estava desenganado havia alguns dias. Numa manhã, por volta das quatro horas, sua enfermeira me acorda:

- Seu irmão mandou chamá-lo.
- Está se sentindo mal?

Ela nada responde. Eu me visto depressa e vou ver meu irmão.
Ele diz com uma voz habitual:

- Queria falar contigo antes de morrer. Eu vou morrer.

Uma crise nervosa o crispa e o faz calar-se.
Durante a crise, ele faz "não" com a mão. E não compreendo o gesto. Imagino que a criança recuse a morte. Mas, retomada a calmaria, ele me explica:

- Não te assustes... Não estou sofrendo. Não sinto dor. Não consigo evitar, é meu corpo.

Seu corpo, território estrangeiro, já é outro. 
Mas esse irmão caçula que sucumbiria em vinte minutos, desejava ser sério. Ele sente a necessidade premente de delegar sua herança. E me diz: "Eu queria fazer meu testamento...". Enrubesce, está orgulhoso, é claro, de agir como um homem. Se fosse construtor de torres, ele me confiaria sua torre a construir. Se fosse pai, ele me confiaria seus filhos a instruir. Se fosse piloto de avião de guerra, ele me confiaria seus documentos de bordo. Mas ele é só uma criança. Só me confia um motor a vapor, uma bicicleta e uma carabina. A gente não morre. A gente imaginava temer a morte: tememos o inesperado, a explosão, tememos a nós mesmos. A morte? Não. Não há mais morte quando a encontramos. Meu irmão me disse: "Não te esqueças de escrever tudo isso...". Quando o corpo se desfaz, o essencial se mostra. O homem não passa de um nó de relações. Só as relações valem para o homem.

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Trechos extraídos do romance Piloto de Guerra, de Antoine de Saint-Exupery (tradução de Mônica Cristina Corrêa, editora Companhia das Letras). 

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Três Histórias - Um Conto de John Cheever

 III

Instalou-se no assento do corredor — 32 — no 707 com destino a Roma. O avião não chegava a estar lotado e havia um assento vago entre ele e a ocupante do assento da janela. Viu com satisfação que se tratava de uma mulher extremamente bonita — ela não era jovem, mas ele também não. Estava usando perfume, um vestido escuro e joias, e parecia pertencer àquela parte do mundo onde ele se movia com mais naturalidade. “Boa noite”, ele disse, acomodando-se. Ela não respondeu. Soltou um grunhido desencorajador e abriu um livro de bolso diante do rosto. Ele tentou conferir o título, mas ela o cobriu com a mão. Não era a primeira vez que ele encontrava uma mulher tímida num avião — não era comum, mas já acontecera.

Imaginava que elas tinham aprendido a cultivar uma cautela compreensível contra bêbados, conquistadores e chatos. Sacou seu exemplar do The Manchester Guardian. Havia notado que os jornais conservadores às vezes inspiravam um pouco de segurança às tímidas. Quando lia os editoriais, a página de esportes e, principalmente, a seção de economia, às vezes uma tímida desconhecida se mostrava disposta a uma conversa. O avião decolou, o aviso de proibido fumar foi desligado e ele pegou uma cigarreira dourada e um isqueiro dourado. Não eram chamativos, mas eram dourados.

“Se importa se eu fumar?”, perguntou. “Por que me importaria?”, ela respondeu. Ela não olhou na sua direção. “Algumas pessoas se importam”, ele disse, acendendo o cigarro. Ela era quase tão bonita quanto hostil, mas por que precisava ser tão fria? Ficariam lado a lado durante nove horas e era mais que sensato dispor-se a um mínimo de conversa. Será que ele a fazia lembrar de alguém desagradável, alguém que a magoara? Estava de banho tomado, barbeado, corretamente vestido e acostumado a fazer amizades. Ela podia ser uma mulher infeliz que não aturava o mundo, mas, quando a aeromoça veio oferecer uma bebida, o sorriso que abriu para a jovem desconhecida foi ofuscante e generoso. Isso o animou a tal ponto que ele próprio sorriu, mas, quando ela percebeu que ele tinha se intrometido numa comunicação direcionada a outrem, voltou-se para ele, fez uma cara feia e retornou ao seu livro. A aeromoça trouxe um martíni duplo para ele e um xerez para a sua vizinha. Ocorreu-lhe que a bebida forte poderia agravar ainda mais o desconforto dela, mas era um risco a correr. Ela continuou lendo. Se ao menos pudesse descobrir qual era o título do livro, pensou, conseguiria dar o primeiro passo. Harold Robbins, Dostoiévski, Philip Roth, Emily Dickinson — qualquer coisa ajudaria. “Posso perguntar o que está lendo?”, perguntou educadamente. “Não”, ela disse.

Quando a aeromoça trouxe os jantares, ele passou a bandeja dela por cima do assento vazio. Ela não agradeceu. Ele se acomodou para comer, para se alimentar, para desfrutar esse hábito simples. A comida estava atipicamente ruim e ele enunciou essa opinião. “Não se pode exigir demais nessas circunstâncias”, ela disse. Ele pensou ter ouvido um traço de cordialidade na sua voz. “Talvez o sal ajude”, ela disse, “mas não me deram sal nenhum. Se incomoda de me dar o seu?” “Oh, com certeza”, ele disse. As coisas estavam definitivamente melhorando. Ele abriu o pacotinho de sal e, ao estendê-lo na direção dela, deixou cair um pouco no carpete. “Sinto dizer que a má sorte será toda sua”, ela disse. Não havia humor nenhum no tom da frase. Ela salgou o pedaço de carne e comeu tudo que veio na bandeja. Depois continuou lendo o livro com o título escondido. Ele sabia que cedo ou tarde ela precisaria ir ao banheiro, e então ele teria a oportunidade de checar o título do livro, mas, quando chegou a hora, ela levou o livro junto ao toalete.

A tela do filme foi baixada. A não ser quando o filme era excepcionalmente interessante, ele nunca alugava o equipamento de áudio. Descobrira que a leitura labial e o jogo de adivinhação acrescentavam uma dimensão ao filme, e de qualquer modo os diálogos costumavam ser ofensivamente banais. Sua vizinha alugou o equipamento e deu sinais de estar se divertindo para valer. Tinha uma risada melodiosa e encantadora e interagia com os atores na tela da mesma maneira que havia interagido com a aeromoça e da mesma maneira que se recusava a interagir com seu companheiro de assento. O sol nasceu quando estavam se aproximando dos Alpes, embora o filme ainda não tivesse acabado. Aqui e ali, o brilho da manhã alpina podia ser visto por entre as fendas da cortina fechada, mas, enquanto eles navegavam no ar sobre o Mont Blanc e o Matterhorn, os personagens na tela continuavam seguindo o roteiro. Houve um desfile, uma perseguição, uma reconciliação e um final. Sua companheira, de novo carregando o livro misterioso, retirou-se mais uma vez para o toalete e voltou com uma espécie de touca de dormir na cabeça e o rosto coberto por uma grossa camada de unguento branco. Arrumou o travesseiro e o cobertor e se preparou para dormir. “Bons sonhos”, ele ousou dizer. Ela suspirou.

Nunca dormia em aviões. Foi à cozinha e pediu um uísque. A aeromoça era bonita e conversadora e falou sobre suas origens, sua escala de trabalho, seu noivo e seus problemas com passageiros que tinham medo de voar. Passando dos Alpes, começaram a descer e ele espiou o Mediterrâneo pela janelinha e pediu outro uísque. Avistou Elba, Giglio e os iates na enseada de Porto Ercole, onde era possível enxergar as villas de seus amigos. Lembrava-se da sua chegada a Nantucket, tantos anos antes. As pessoas costumavam se alinhar na amurada e gritar: “Oh, os Perry estão aqui, e os Salton e os Greenough”. Era parte verdadeiro, parte exibição. Quando ele voltou ao seu assento, a companheira tinha removido a touca e o unguento. Na luz matinal, sua beleza era intensa. Ele não conseguia diagnosticar o que tanto o cativava — uma nostalgia, talvez —, mas os traços dela, a alvura da pele, a posição dos olhos, tudo correspondia ao seu ideal de beleza. “Bom dia”, ele disse, “dormiu bem?” Ela fechou a cara, parecendo achar a pergunta impertinente. “E alguém dorme?”, perguntou elevando o tom. Colocou o livro misterioso dentro de uma bolsa com zíper e juntou suas coisas. Quando pousaram em Fiumicino, ele cedeu a passagem e a seguiu pelo corredor. Passou logo atrás dela no guichê de passaporte, na imigração e no posto sanitário e depois a encontrou no lugar onde se pega a bagagem.

Mas olha só, olha só. Por que ele aponta a mala dela ao carregador e por que, quando já estão ambos de posse de suas bagagens, ele a segue até o ponto de táxi e pechincha com o motorista o preço da corrida até Roma? Por que ele entra com ela no táxi? Ele é o conquistador obstinado que ela tanto abomina? Não, não. Ele é o marido dela, ela é a sua esposa, a mãe de seus filhos, uma mulher que ele venera com paixão há quase trinta anos.

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O texto faz parte do livro 28 Contos de John Cheever (Companhia das Letras) e tem a tradução de Daniel Galera.

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Cigarro Eletrônico


A moda agora é o cigarro eletrônico. Modelos, cores, tipos, aromas, mais fumaça, menos fumaça. Já tem gente entendida no assunto dizendo que faz mais mal que o de verdade – aquele de nicotina, proibido para menores de 18 anos. Formou-se, como na política atual, um acalorado debate para verificar quem é o menos pior.

Contudo, o cigarro eletrônico de verdade é o celular. Popularizado há mais de 30 anos no Brasil. A intensa e duradoura relação iniciou com o tijolão indiscreto. Agora, estamos na fase do smartphone fino. O fino que satisfaz – lembram do comercial do cigarro Chanceller? 

Segundo levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV), temos 242 milhões aparelhos no país. Número maior que de habitantes É inegável que estamos presos a eles, como estávamos nas décadas passadas ao cigarro. O celular é possivelmente o nosso maior vício atual. Sofremos abstinência se ficarmos muito tempo sem acessá-lo, inclusive. 

Muita gente diz que para quando quiser. Será? A impressão é de que vamos passar o resto da vida vidrados em sua tela. Para matar o tempo, para não ter que ficar sem fazer nada, para não ter que pensar no resto do dia... 

É informação em excesso. É desinformação em excesso. É distração que não acaba mais. Por que essa devoção ao virtual? A conversa é comprida. Porém, o fato é que não há como acumular tudo que consumimos nessa maldita e viciante telinha. Nossa cabeça simplesmente não comporta. 

Nossa vista está embaçada, confusa, mas se desgrudarmos os olhos do virtual, sempre existirá o real. E tem tanta coisa bonita e nova por aí. Vale a pena ser mais analógico. Afinal, só se vive, de verdade, uma vez.

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Texto publicado no jornal Diário de Canoas, dia 10 de agosto de 2022.


quinta-feira, 23 de junho de 2022

Em Quem Não Votar

A pandemia não foi pouca coisa. Uma tragédia histórica. Mais de 666 mil mortes no Brasil. Tinham dias, antes de surgir a vacina, que eram contabilizados mais de 4 mil mortos oficialmente – conforme dados do Ministério e Secretarias Estaduais de Saúde. Os corpos eram jogados em valetas a céu aberto. Uma cena tétrica que nós, vivos, levaremos para sempre. Porque esses corpos eram de pais, mães, filhos, parentes, amigos.

Contudo, a fé na ciência fez surgir a vacina. Ela se disseminou em massa país afora e as vítimas fatais da Covid-19 foram reduzindo drasticamente. 

A lamentar – e, infelizmente, lembrar sempre para que não se repita – convivemos com a sanha insistente do negacionismo. Uma onda de maldade e desinformação que despejava mentiras em larga escala nas redes sociais, colocando em dúvida a eficácia dos imunizantes. 

Por causa disso, milhares não se vacinaram e, como consequência, morreram por acreditar em fake news. No período onde as vacinas já eram uma realidade, muita gente seguia internada e lutando pela vida porque se negou a se vacinar.

Segundo um estudo brasileiro, com publicação no exterior, os não vacinados representaram 75% das mortes por Covid-19, nos primeiros dez meses de 2021.

Esse povo todo acreditou em quem? Qual a pessoa que mais representou o negacionismo nacional? Que figura pública acreditou que contribuiu positivamente com a sociedade colocando sigilo no ato de ter se vacinado ou não? Qual presidente mundial não tem uma única imagem se vacinando para servir de incentivo à população? 

A resposta é Jair Bolsonaro. 

Não há como descolá-lo desse desastre de má-fé pelo qual passamos. Por esse motivo – que é gravíssimo – dar a ele um voto de confiança para ser reeleito presidente seria um absurdo. 

Há quem enxergue algumas qualidades em sua gestão em outras áreas. Entretanto, não levar em conta sua desastrosa atuação durante a pandemia na hora de decidir o voto é um grande equívoco.

Foram dois ministros da Saúde, médicos de formação e ambos pró-vacina, constrangidos a aderirem a um suposto tratamento precoce. Houve demora na compra dos imunizantes. Ampla divulgação institucional de falsos tratamentos e medicações durante toda a pandemia. Entre outros tantos exemplos ruins que fizeram o Brasil virar manchete negativa no mundo.

Não se trata de ódio. Não se trata de ser anti alguém. É sobre ter consciência que a pandemia não foi somente uma gripezinha que enfrentamos e, sim, um dos maiores traumas do nosso tempo. 

Aliás, uma dor que devemos superar para seguir vivendo. Assim como devemos superar o período que tivemos Bolsonaro em Brasília.


domingo, 29 de maio de 2022

Seguir Firme


Em um mundo repleto de possibilidades ser quem se é tem um preço. Nossa fé é constantemente abalada, testada e posta à prova. Temos que ser assim ou assado, porque o momento pede ou porque dizem que não existe outra maneira. Há sempre uma força contrária. Há tantas bengalas morais e falsos moralismos por aí, de gente que finge e desiste. Porque brigar faz a briga durar mais tempo. Contudo, quem acredita em algo, é fundamental seguir firme e convicto de que se está no caminho.

Caso contrário, a amizade, o amor, a palavra empenhada e até mesmo nossos sonhos podem se esvair. E daí como é que faz? Vale a pena deixar esses valores e sentimentos para trás?

O dinheiro, o ódio, o rancor, o desconhecido, a falta de coragem… Há muito para nos provocar e alterar nossas rotas. Por isso, é tão difícil e complexo se manter íntegro e fiel a princípios. Ainda mais em um período de esgaçamento moral como o que vivemos. Em nossa volta, tem pessoas que cedem um pouco, relativizam, negaceiam. Tudo para desistir do que se acredita e deixar o fracasso mais cômodo.

E como, afinal, se ensina alguém a crer em algo ou a manter a crença viva? Não é uma resposta fácil. Cabe dar o exemplo, viver o que se prega e confrontar o que não se crê, pois é essa postura inabalável que faz a árdua estrada se tornar menos penosa.

É dessa fé que me refiro. Essa que contamina quem está por perto e faz os bons fincarem o pé no que é certo. Essa que nos move e nos dá um propósito para viver. Essa que está incrustada em certas pessoas e ultrapassa gerações. A atitude que orgulha um pai e uma mãe ao ver o filho replicá-la. Falo daquela postura que garante, ao fim de tudo, um bem maior, como a paz para tocar os dias em frente. É disso que todo mundo precisa.

Até mesmo os descrentes e covardes.

 

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Coisas que Jamais Irão se Desgastar

 

MacLeish (1892 - 1982)

Perguntou o que eu havia sacrificado para ir no encalço de meus sonhos. Disse que o valor das coisas não pode ser medido pelo que elas custam, mas pelo que custa a você obtê-las, que, se alguma coisa custa a sua fé ou sua família, então o preço é alto demais e que existem algumas coisas que jamais irão se desgastar.

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Archibald MacLeish para Bob Dylan (trecho de em Crônicas: Volume Um, livro do cantor americano, publicado em 2004).


terça-feira, 10 de maio de 2022

Crônicas - Bob Dylan


O mito dominante da época parecia ser o de que qualquer um podia fazer qualquer coisa, até mesmo ir para a Lua. Você podia fazer o que desejasse – era o que diziam as propagandas e reportagens, você deveria ignorar suas limitações, desafiá-las. Se fosse uma pessoa indecisa, poderia virar um líder e usar calças de couro. Se fosse uma dona de casa, poderia tornar-se uma garota glamourosa com óculos de sol incrustados com pedrarias. Você é obtuso? Nada de pânico – você pode ser um gênio. Se for velho, pode ser jovem. Qualquer coisa era possível. Era quase como uma guerra contra o eu.

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Trecho de Crônicas: Volume 1, de Bob Dylan, publicado em 2004. O texto se refere aos EUA do início dos anos 60.

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Nostálgico e Assustado

 

É óbvio que naquele tempo não havia computadores, nem quaisquer outras distrações virtuais. As pessoas tinham que beber e fumar para matar o tempo. Colocar um disco ou uma fita cassete para tocar e esperar. Pirão de Peixe com Pimenta, do Sá & Guarabyra. Era outra vida. Não era qualquer um que tinha telefone. E mesmo quem tinha, não era certo que atenderia do outro lado da linha. As pessoas, naquele tempo, faziam outras coisas. Não ficavam só coladas e vidradas em aparelhos. Era um período que não dava para dividir as frustrações em tempo real, por meio de redes sociais. Os homens eram mais homens, dizia meu avô – que sequer conheci. Porém, ele se referia aos anos 40… Estamos nos 80, agora. E meu pai está nitidamente alterado, falando coisas como essas que escrevo. Nostálgico e assustado. Bebeu demais. A música está alta. “Te amo espanhola…”. Sua mãozona preenche meu rosto e cabeça. Afagos, afagos. E ele, então, toma coragem para ficar quieto e chorar um pouco. Quase quarenta anos depois, tomo fôlego para admirar meu menino. O pequeno assiste a um desenho no celular. Comenta e analisa os poderes de um super herói. Ele me fala que o tal herói pode levantar e quebrar casas, se quiser. Eu dou um sorriso e afago seu rosto, sua cabeça. Minhas mãos são gigantes. Muito maiores que a de meu pai. Estou nostálgico e assustado. Porque tem tanta coisa acontecendo tão perto da gente… Mas o guri parece tão bem, tão sereno. Tadinho, ele não entende. Não. Ele entende. E vai entender. Certo que sim. 

“Pra que chorar? Te amo”. Era o que dizia o resto da canção. Eu lembro bem.

sexta-feira, 29 de abril de 2022

O Ódio Como Tática Eleitoral


Na guerra fria da comunicação e do marketing político o ódio ao adversário sempre foi um fator preponderante. São estratégias de ataque pessoal que vão muito além de propagar os defeitos do outro para o eleitorado. 

A máquina de grande parte dos candidatos das eleições majoritárias opera e cria fake news, calúnias, injúrias e difamações em larga escala. Que se danem os fatos! O que importa mesmo, como em toda guerra de narrativas, é destruir o oponente.

Entende-se por oponente o político que está mais próximo, conforme as pesquisas e recortes do momento. Exemplos em nossa história não faltam. Só que esse tipo de estratégia pode abrir flancos para outros políticos crescerem, pois não é possível prender fogo a muitos inimigos ao mesmo tempo. 

Com isso, o eleitor pode migrar para outros candidatos. Em 2014, tivemos dois exemplos desse comportamento. Em nível federal, Marina Silva, uma das favoritas em pesquisas iniciais, ficou no caminho. Aécio Neves tomou seu lugar e perdeu para Dilma Rousseff por pouco. Já no RS, ocorreu o mesmo com Ana Amélia Lemos. Seu nome ficou desgastado e viu surgir a figura de José Ivo Satori, que venceu Tarso Genro.

Indiferente dos nomes e partidos envolvidos. O que fica claro é que as táticas seguem as mesmas. Com a popularização das redes sociais, elas estão mais agressivas nesse ano. Uma das tantas reflexões que se fazem necessárias está na máxima de que ódio só gera ódio. 

As pessoas não querem apenas não gostar de alguém. Quem vota, mesmo com número de votantes em queda, também quer se engajar, crer em propósitos e, principalmente, ter expectativas de mudanças para melhor. 

Então, que tenhamos uma eleição propositiva. Porque o país e o estado precisam de menos ódio e mais soluções reais para seus problemas. 

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Artigo publicado no jornal Diário de Canoas, dia 27 de abril de 2022.

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Ninguém é Santo

 

Uma mulher resolve ter uma noite de prazer com um morador de rua. O marido dela descobre a traição e espanca o mendigo. O caso chama atenção da mídia.

A sociedade, então, usa a imagem do morador de rua a exaustão. Sua vida tem uma guinada. Dinheiro. Mais mulheres. Drogas. Ele, nada santo, suga tudo que pode e o que não pode. Afinal, é o seu momento.

Até que algo inesperado (e triste) acontece. Uma reviravolta! Um soco no estômago. Não dá nem tempo de pensar sobre, porque a trilha sonora aumenta e sobem os créditos. Fim do filme.

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Resumo de Ninguém É Santo, filme brasileiro de 2022. 


quarta-feira, 9 de março de 2022

segunda-feira, 7 de março de 2022

E a vida vai...


Depois que morri
Nunca mais precisei
Fazer a barba

Muita coisa mudou
Depois que morri

Outras não mudaram
Por exemplo
Ainda tenho uma certa rotina

Ainda julgo relevante escrever 
De vez em quando

Mas depois que morri
Sei que minha opinião

É só mais uma
Entre tantas outras opiniões

Sei que meus sonhos
São só mais uns 

E muita gente não se importa
E muita gente não tem tempo
Ou interesse

É isso

Tem coisas que a gente só aprende
Depois que morre

(Porto Alegre, verão de 2022)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Conversa Com o Relojoeiro

Texto publicado no jornal Diário de Canoas, no dia 15 de fevereiro 

Se eu não tivesse me aposentado da escrita – cedo para uns, em tempo para maioria – escreveria que, dia desses, fui no relojoeiro. Porque eles ainda existem. Porque eles ainda resistem, na verdade. Estão perdidos em subsolos e em edifícios comerciais no Centro Histórico de Porto Alegre. Vasculhando bem, é possível encontrá-los. 

Sei fazer pequenos ajustes e arrumações em meus relógios. Contudo, vez por outra, tenho que ir no relojoeiro. Porque eles são interessantes. Porque eles são pessoas antigas, que conversam e interagem com seres de carne e osso – e aço, borracha, couro, vidro... afinal, relógios também são seres fascinantes. 

Obviamente, como bons entusiastas das máquinas do passado, o profissional das horas e eu criticávamos o mundo moderno. Enfileirávamos ranzinzices contra o novo. Foi então que o relojoeiro puxou uma gaveta. Ela estava abarrotada de modelos smartwatch. Deviam ter mais de trinta deles esparramados. 

- Olha só! Tudo quinquilharia moderna. Eles estragam rápido. São uma porcaria! E o pior: não tem conserto. Os fabricantes já os produzem com esse objetivo. As pessoas trazem aqui. Eu olho, digo que não tem jeito e devolvo. Elas me dizem “fica pra ti ou pode botar fora”. Agora, é assim.

E é mesmo. 

Enquanto isso, vários modelos em pleno funcionamento descansavam ali. Um Orient três estrelas fundo verde, um Seiko, um Casio G-Shock antigo... Nada de possíveis compradores. Porque as coisas que duram demais vão perdendo a graça. 

Foi o que aconteceu com nossa conversa. Fomos nos entristecendo com as conclusões que chegávamos sobre o mundo de hoje. Até que nos despedimos com um desolador “até mais”. 

No caminho, pensei que tenho que vasculhar a casa atrás de um relógio velho – nem que seja um de parede –, levar para o conserto e ter uma conversa um pouco mais esperançosa com meu amigo relojoeiro.


quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Vá e Veja

 

Ou fragmento sobre a guerra cultural

Eles só querem sua atenção. Se aliste. Ame-o. Ou. Mas saiba. Os estampidos são de armas de festim. Tampe os ouvidos. E veja. Vá e veja. As minas terrestres são só palavras. Pode pisar. O estouro faz cócegas. Uma guerra é uma guerra. Mesmo que sejam só meninos brincando. Eu tenho certeza que você pode ver. Se não pode. Veja melhor. São só meninos brincando. São só meninos.