quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Cultura para cafonas - Ruy Castro

Meu amigo Sérgio Rodrigues protestou outro dia ("Vandalizar livros é a última moda", 24/10) contra os decoradores de ambientes que destroem livros para usá-los como objetos de adorno em casas de novos-ricos. Capas, lombadas e contracapas, pela incômoda variedade de cores, são arrancadas para que pilhas de seu miolo, convenientemente monocromático, enfeitem paredes. É uma tendência, e das mais lucrativas.

O cliente que aceita isso de seu decorador passa um atestado de cafona para si próprio. Ninguém é obrigado a gostar de livros, mas quem vê neles objetos de decoração é porque desconfia que devam conferir algum prestígio. Mas, se os livros só servirem para enfeitar uma parede, e aos pedaços, vamos todos sentar no meio-fio e chorar.

O desprezo pelo objeto cultural não se limita aos livros. Há não muito, vi num sebo de São Paulo uma pilha de vinis sem capa, mais alta do que eu. Perguntei ao empregado como fazer para procurar neles alguma coisa interessante. Respondeu-me que não eram para isso, mas para serem comprados em lotes –para servir como decoração de festas, pendurados do teto, ou derretidos para se transformar em vasos. Ao ouvir aquilo, deu-me uma sensação de perda. Talvez não houvesse ali nenhuma Nona Sinfonia, mas qualquer disco contendo música foi gravado na esperança de ser ouvido.

E não apenas livros e discos surrados são tratados como lixo. Papéis velhos têm como habitual destino a caçamba do caminhão ou o incinerador, sem que alguém fique sabendo o que havia neles de escrito ou impresso. Sua única chance de sobrevivência é quando vão parar na feira de antiguidades numa praça de nossa cidade. É daqueles maços de papéis empoeirados e comidos por ratos que costumam ressurgir os originais inéditos dos escritores.

Há dias, em Pompeia, na Itália, descobriu-se na casa de um comerciante um quadro que estava lá, abandonado, havia 50 anos. A dona da casa o achava "horrível". Era um retrato cubista da poeta Dora Maar por seu amante —Picasso—, considerado perdido. No mercado, chegará a 12 milhões de euros. O desprezo pela cultura pode custar caro.

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Ruy Castro (Folha de São Paulo. 6 de novembro de 2024)

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Uma força estranha

Tive um amigo que tinha ódio de morte do cantor Roberto Carlos. Imperialismo norte-americano. Rede Globo. Alienação. Baixa cultura. Era daí pra baixo as críticas e apontamentos ao filho ilustre de Cachoeiro do Itapemirim. 

E assim foi por anos e anos. Até que sua mamãe querida completou mais uma primavera. A grande família se reuniu. Vizinhança também. Festa surpresa. E naquele tempo, uma das maneiras de surpreender alguém era contratar um carro de mensagem para o evento.

Pois bem. O veículo apontou na esquina com suas cores e luzes espalhafatosas. O locutor declamava versinhos de cartão de aniversário e outras frases de efeito. Até que tocaram os primeiros acordes de uma música.

"E essa canção é uma homenagem dos seus filhos e netos para você...". 

O Rei entrou rasgando o ar com sua voz doce, com sua força estranha, afirmando o óbvio, o ululante, o simples, o universal e o necessário:

Eu tenho tanto pra te falar / Mas com palavras não sei dizer / Como é grande o meu amor por você

Olhei de canto de olho para meu amigo, prevendo alguma desaprovação. E ele, de fato, estava um tanto desconfortável. Mas era totalmente compreensível, afinal, não deu pra segurar a enxurrada de lágrimas. 

São tantas emoções...

Nem tudo já foi escrito

Provavelmente, tudo já tinha sido escrito quando Sérgio Bittencourt compôs Naquela Mesa. Assim ocorreu quando Nelson Gonçalves cantou seus versos. E também foi dessa forma quando eu a ouvi pela primeira vez.

"Eu não sabia que doía tanto / Uma mesa num canto, uma casa, um jardim / Se eu soubesse o quanto dói a vida / Essa dor, tão doída / Não doía assim".

Só Deus sabe o quanto me tocou fundo cada palavra. Eu sei bem, que nada mais se cria. Tudo se copia. É o que dizem. E, portanto, a criação não faz mais tanto sentido hoje. Contudo, ainda consigo sentir uma certa surpresa diante de muita coisa por aí.

Talvez, seja um dos motivos de escrever. Porque o papel aceita tudo, óbvio. Mas porque há um tanto de ingenuidade e ignorância diante do mundo. Ainda vi muito pouco. 

A versão de Naquela Mesa, que me refiro, é de um disco de 1974. Dez anos antes do meu nascimento. E se apresentou como uma novidade em algum momento de minha vida. E me fez lembrar de amores e pessoas que não voltam mais.

Esse espanto, essa saudade e esse medo do futuro puxam uma frase de alguma gaveta da memória, que leva a outra frase. Uma cadeia de sentidos se forma e tudo se torna inevitável. 

É preciso contar. Como tantos outros já contaram, eu sei. Até o ponto final.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Quando quis morrer - David Coimbra

 

Eu quis morrer. Não se trata de figura de linguagem, estou falando sério: queria não existir mais. Refiro-me a esse tempo em que passei sofrendo. Alguém me acusará de estar sendo dramático a fim de justificar para o leitor a minha ausência. Em parte é verdade, porque sei que devo explicações. Muita gente, mas muita gente mesmo, mandou e-mail e mensagens perguntando por mim, e não respondi, porque me sentia fraco demais. 

Foi exatamente essa reunião da fraqueza com as dores e com o mal-estar, todos agindo de forma permanente, que me tirou a vontade de viver. 

Agora chegamos a uma parte importante: não deixei de amar a vida. Amo viver, amo a vida e sempre amarei. Mas não estava sendo recíproco. Então, de que adianta estar vivo se não posso fazer nada do que gosto? Uma vida repleta de dor, incômodos e humilhações? Era isso que havia para mim? Não, não, preferia uma morte rápida e suave. 

Só que eu não iria resolver esse problema com minhas próprias mãos. Não podia. Seria péssimo para a vida de pessoas que amo. Mesmo que esteja ausente, você tem responsabilidades, afinal. Assim, o que resta a fazer numa situação dessas? 

Resistir. 

Gemer, chorar, desesperar-se às vezes, mas resistir. 

Não vou aborrecer o leitor detalhando todos os males por que passei. Conto apenas que houve um momento em que fechei a porta do quarto, me encolhi na cama e de lá não saí por dois dias e duas noites. Não comia, não tomava banho, não olhava o celular, não fazia nada além de dormir em posição fetal. No final da tarde do terceiro dia é que me levantei e tentei comer algo. 

Mas agora estou melhor. Cheio de traumas de guerra, todo lanhado e escalavrado, com algumas dores ainda, mas melhor. 

Um dos traumas que carrego é o medo de que tudo se repita. Nós somos prisioneiros do nosso corpo, eis a verdade. Os grandes sofrimentos, bem como os grandes prazeres, constituem uma camada extra da nossa personalidade. Estão localizados no corpo, mas afetam a mente. Ao mesmo tempo, aquele feixe de dores não me pertence, é algo separado do meu ser. Eu, neste instante, sou quem pede a Deus, a Jesus, a Nossa Senhora, a todos os santos e médicos que me tirem a dor. 

E é então que surge a solidão. A nossa imensa, incontornável solidão. Porque ninguém pode ajudá-lo. O médico já receitou o remédio e é preciso esperar algumas semanas para que funcione. Sua mulher, sua irmã e seu filho o enchem de carinhos, os amigos querem estar junto, até pessoas desconhecidas rezam por você. E você? Você se lamenta porque não há como se livrar do Mal. Não há consolo. Você está sozinho, preso em um corpo que o tortura sem cessar. 

Só que, no fim das contas, aquele movimento gigantesco das pessoas que o amam faz efeito. Meu amigo Glauco cozinha seus pratos deliciosos e eu começo a voltar a gostar de comida, e ganho força. O médico, André Fay, luta até nos finais de semana para achar o tratamento ideal. Minha mulher, a Marcinha, e minha irmã, a Silvia, cuidam tanto de mim que me sinto seguro. A Marta Gleich, diretora da RBS, e o Nelson Sirotsky contêm minha ansiedade em voltar a trabalhar e me garantem respaldo. O Rafael, do Espeto de Ouro, manda um churrasco para alegrar meu domingo, enquanto a Grace e o Edward enviam uma cesta repleta de guloseimas. O Potter leva meu filho ao show do Maroon 5, e leva com gosto, não por dever. A Kelly deixa aqui acepipes para o café da manhã e o Admar traz um vinho delicado como ele. E mais outros tantos, tantos, que seria impossível citá-los em uma página só. Então, talvez eu não estivesse tão sozinho... Fora da prisão do meu corpo, havia um exército a ajudar. 

Isso fez bem. Estou de pé, enfim. Meio esfarrapado, mas de pé. Vamos em frente de cabeça erguida. Com um leve tremor ao pensar no futuro. Mas o futuro não é coisa para se pensar. O que existe é o presente e, se o presente pode ser sorvido integralmente, a vida passa a ser boa. E ela é. A vida é boa. 

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Todo Aquele Jazz: Chet Baker

 


As canções se vingavam: ele as abandonava repetidamente, mas sempre voltava, sempre retornava a elas. Se antes tratava cada canção como lhe apetecia, só precisando sussurrar algumas frases para fazê-la chorar, agora elas nada sentiam, não eram atingidas por seu toque. Pegar o trompete o deixava sem fôlego para tocá-lo, e cada vez mais ele cantava a letra das canções, com uma voz frágil e suave como o cabelinho de um bebê. Às vezes, acariciava suas velhas canções com tamanha delicadeza que elas se lembravam do que um dia tinham sentido, da facilidade com que haviam sido enobrecidas pelos seus dedos e seu sopro – mas, sobretudo, apiedavam-se dele, ofereciam-lhe uma guarida que ele mal tinha forças para aceitar.

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Trecho do livro Todo Aquele Jazz (Companhia das Letras)

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Todo Aquele Jazz: Ben Webster


Ele carregava sua solidão consigo como se fosse o estojo do instrumento. Ela nunca o abandonava. Após apresentações, depois de conversar com fãs e, às vezes, com alguns amigos de passagem pelo lugar, depois de se refugiar num bar e ali se deixar ficar até não haver ninguém para ir embora, depois de se arrastar de volta a seu quarto, depois de tatear em busca das chaves e ouvi-las arranhar ao girar o interior da fechadura silenciosa, depois de abrir a porta e entrar no apartamento, sempre exatamente como o deixara, depois de jogar o estojo do sax no sofá  depois de tudo isso, por tardíssimo que fosse, sempre chegava o momento em que ele queria continuar a conversar, ouvir o tinido e as borbulhas de alguém passando um café ou preparando uma bebida. Voltando para o apartamento assim, ele destapava uma garrafa, tomava uns tragos e ficava de cueca e camiseta, tocando o saxofone o mais baixo que podia. Quando morava em Amsterdam, telefonava para os amigos nos Estados Unidos a qualquer hora da noite, mas agora só havia o sax, e ele o usava para tentar falar com Duke, com Bean ou outra pessoa, revezando durante uma hora ou mais entre a garrafa e o instrumento.  

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Trecho do livro Todo Aquele Jazz, de Geoff Dyer.

domingo, 25 de agosto de 2024

Eu só sei que a saudade ainda me queima o coração

Era início de namoro. Uma das primeiras vezes que visitava a casa dela e de sua mãe. Então, prontamente me ofereci para lavar a louça.  Enquanto tirava o sabão de uma caçarola, cantarolei um trecho de "Ainda queima a esperança". Uma canção lindamente brega.

Cantei porque estava feliz. Cantei porque de fato amava. E quem ama de verdade, não tem amarra alguma. Faz dessas sem pensar nas consequências. Minha namorada chegou na cozinha e disse assim. 

- Meu Deus, que coisa brega! Da onde tu tirou isso?!

- Diana. Conhece?

- Claro que não! 

Aí, a mãe dela entrou em cena. E seguiu da onde eu havia parado de cantar. Rimos um bocado. Cantamos juntos os versos que restavam. E depois emendamos outras tantas camções consideradas bregas. Cada um escolhia a sua. E assim o dia foi transcorrendo. Com três pessoas felizes, cantando.

Lembrei disso, porque Diana morreu. E é bem provável que não tenha tido reconhecimento, sucesso ou outras conquistas que os artistas, às vezes, buscam. 

Contudo, isso é uma bobagem. Não existe missão para um artista. Mas, se por acaso existisse, Diana certamente cumpriu a sua naquele dia que já não volta mais.


terça-feira, 11 de junho de 2024

Balsâmico



No restaurante que trabalhava como garçom, os funcionários não comiam a mesma comida dos clientes. Era assim. A cozinheira, que também era faxineira, fazia a comida só pra nós. Só que ela preparava esse rango de dia. E eu trabalhava no turno da noite. Comia o que sobrava dos colegas diurnos. No intervalo, subia até um mezanino e pegava a forma com carne assada, com aquela camada fria, espessa e esbranquecida de gordura. Colocava num prato. Requentava. E pronto. Sentava em qualquer cantinho e comia. Não me recordo o que pensava, com o que sonhava ou o que pretendia da vida naquele tempo. "Se tu te puxar, Pedro, logo tu vem pra chapa". Falou o chapista para o colega da louça e limpeza em geral. Foi o que ouvi, enquanto jantava. Mesmo sendo garçom, não era o que queria. Contudo, precisava do dinheiro. E outra. Não aguentava mais meus velhos. Quando se tem quase vinte, e se mora num lugar apertado, é quase impossível tolerar os pais. Sujeitos ultrapassados. Com seus insuportáveis recatos e lições frequentes. Ali, em 50 metros quadrados, vivendo com pouco e sabendo de tudo. É pra acabar com qualquer um! O jeito é sair e, se possível, só voltar para dar um oi muitos anos depois. Devia estar pensando em tudo isso quando vi um recipiente escrito BALSÂMICO. Aquilo não era colocado na mesa para os clientes. O que era? Cheirei. Parecia vinagre. Molhei o dedo. O gosto era forte, encorpado e meio doce. Despejei na salada de repolho. Se parece vinagre... Um novo mundo surgiu. Uma maravilha gastronômica! Tive vergonha de perguntar pra alguém mais coisas sobre o balsâmico. E não havia celular com internet naquele tempo.

– Ô Lucas! O balsâmico não é pros funcionários – disse o gerente.
– Mas não tô comendo – blefei.
 – Tá sim. Tua salada tá escura. Se tu comer isso mais uma vez, vou te dar uma advertência.

Óbvio que comi mais uma vez. E óbvio que tomei a advertência. Eu era petulante e completamente abusado, como todo jovem tem de ser. Mais adiante, me empanturrei com nuggets de um filho de um cliente que não raspou seu prato e também saboreei um sorvete com brownie e amêndoas que uma velha não conseguiu terminar. Tudo devidamente advertido pelo gerente. 

Hoje, já envelhecido, comi uma salada de repolho. Com bastante balsâmico (em casa sempre tem o tal vinagre). Sobrou um tanto de líquido escuro no prato. Então, entornei tudo de uma só vez. Cheguei a me arrepiar com a acidez. Mas era um brinde. Um brinde à juventude. Um brinde à teimosia. E um brinde às coisas boas da vida.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Carta de Steve Albini para o Nirvana

 

Steve Albini. 22 de julho de 1962 – 7 de maio de 2024

Kurt, Dave e Chris:

Primeiro, deixe-me pedir desculpas por levar alguns dias para mandar essa proposta. Quando falei com Kurt, estava no meio da gravação de um disco do Fugazi, mas achei que teria um ou dois dias entre os discos para resolver tudo. Minha agenda mudou inesperadamente e este é o primeiro momento que tive depois de passar por tudo isso. Desculpe.

Acho que a melhor coisa que vocês poderiam fazer neste momento é exatamente o que estão falando: martelar um disco em poucos dias, com alta qualidade e “produção” mínima e sem interferência dos manés do escritório. Se isso que vocês realmente querem fazer, adoraria estar envolvido.

Se, em vez disso, vocês se encontrarem em uma posição de ser temporariamente favorecido pela gravadora, só para vê-la puxar a corrente em algum momento (incomodando você para retrabalhar músicas/sequências/produção, chamando pessoas contratadas para “adoçar” seu disco, entregar tudo para algum frila de remix, tanto faz…) então isso será uma chatice e não quero participar disso.

Só estou interessado em trabalhar em discos que reflitam legitimamente a própria percepção da banda sobre sua música e existência. Se vocês se comprometerem com isso como um princípio da metodologia de gravação, então eu vou me esforçar por vocês. Vou trabalhar em círculos ao seu redor. Vou bater na sua cabeça com uma catraca…

Trabalhei em centenas de discos (alguns ótimos, alguns bons, alguns horríveis, muitos na média) e vejo uma correlação direta entre a qualidade do resultado final e o humor da banda durante o processo. Se o disco leva muito tempo e todos ficam chateados e examinam cada passo, então as gravações têm pouca semelhança com a banda ao vivo, e o resultado final raramente é lisonjeiro. Fazer discos punk é definitivamente um caso em que mais “trabalho” não implica um melhor resultado final. É evidente que vocês mesmos aprenderam isso e apreciam a lógica.

Sobre minha metodologia e filosofia:

1) A maioria dos engenheiros e produtores contemporâneos vêem um disco como um “projeto”, e a banda como apenas um elemento deste projeto. Além disso, eles consideram as gravações como o controle de camadas de sons específicos, cada um dos quais está sob controle completo desde o momento em que a nota é concebida até a mix final. Se a banda for pressionada no processo de gravação de um disco, que assim seja; desde que o “projeto” tenha a aprovação do sujeito no controle.

Minha abordagem é exatamente o oposto.

Considero a banda o mais importante, a entidade criativa que gerou sua personalidade e estilo e como uma entidade social que existe 24 horas por dia. Não considero que seja minha função dizer-lhe o que fazer ou como tocar. Estou bastante disposto a deixar minhas opiniões serem ouvidas (se eu acho que a banda está fazendo um belo progresso ou um grande erro, considero parte do meu trabalho contar a eles), mas se a banda decidir explorar algo, farei com que isso seja feito.

Gosto de deixar espaço para acidentes ou caos. Fazer um disco perfeito, em que cada nota e sílaba esteja no lugar e cada bumbo seja idêntico, não é nenhum truque. Qualquer idiota com paciência e orçamento para permitir tal tolice pode fazê-lo. Prefiro trabalhar em discos que aspirem a coisas maiores, como originalidade, personalidade e entusiasmo. Se cada elemento da música e da dinâmica de uma banda for controlado por clicktracks, computadores, mixagens automatizadas, gates, samplers e sequenciadores, então o disco pode não ser incompetente, mas certamente não será excepcional. Também terá muito pouca relação com a banda ao vivo, que é o motivo de tudo isso.

2) Não considero gravação e mixagem tarefas não relacionadas que podem ser realizadas por especialistas sem envolvimento contínuo. 99% do som de um disco deve ser estabelecido enquanto o take básico é gravado. Suas experiências são específicas de seus discos, mas para mim remixar nunca resolveu nenhum problema que realmente existisse, apenas problemas imaginários. Não gosto de remixar gravações de outros engenheiros e não gosto de gravar coisas para outra pessoa remixar. Nunca fiquei satisfeito com nenhuma das versões dessa metodologia. Remixar é para covardes sem talento que não sabem afinar uma bateria ou posicionar um microfone.

3) Eu não tenho um evangelho fixo de sons e técnicas de gravação que eu aplico cegamente a todas as bandas em todas as situações. Vocês são uma banda diferente de qualquer outra banda e merecem pelo menos o respeito de ter seus próprios gostos e preocupações abordados. Por exemplo, adoro o som forte de uma bateria (digamos, uma Gretach ou Camco) aberta em uma sala grande, especialmente com um bumbo Bonhammy de duas cabeças e uma caixa realmente doída. Eu também adoro os graves indutores de vômito que saem de um antigo amplificador de guitarra Fender Bassman ou Ampeg e o som totalmente estourado de um SVT com válvulas quebradas. Também sei que esses sons são inapropriados para algumas músicas e tentar forçá-los é uma perda de tempo. Basear as gravações no meu gosto é tão estúpido quanto projetar um carro em torno do estofado. Vocês precisam decidir e depois articular para mim como querem soar, para que não cheguemos ao disco de direções diferentes.

4) Onde gravamos o disco não é tão importante quanto como ele é gravado. Se você tem um estúdio que gostaria de usar, sem crise. Caso contrário, posso fazer sugestões. Eu tenho um ótimo estúdio de 24 canais em minha casa (Fugazi esteve lá, você pode perguntar o que acharam), e estou familiarizado com a maioria dos estúdios no Centro-Oeste, na Costa Leste e uma dúzia ou mais em o Reino Unido.

Eu ficaria um pouco preocupado em ter vocês em minha casa durante todo o processo de gravação e mixagem, mesmo porque vocês são celebridades, e eu não gostaria que a notícia se espalhasse pela vizinhança e vocês tivessem que aturar isso. muita besteira de fãs; seria um ótimo lugar para mixar o disco, e a comida é ótima.

Se vocês quiserem deixar os detalhes da seleção do estúdio, hospedagem, etc. comigo, ficarei muito feliz em resolver tudo. Se vocês quiserem resolver isso, é só dizer.

Minha primeira escolha para um estúdio de gravação externo seria um lugar chamado Pachyderm em Cannon Falls, Minnesota. É uma ótima instalação com excelente acústica e uma mansão dos sonhos que qualquer arquiteto acharia confortável, onde a banda pode morar durante as gravações. Isso torna tudo mais eficiente. Como todos estão lá, as coisas são feitas e as decisões são tomadas muito mais rapidamente do que se as pessoas estivessem em algum lugar da cidade. Há também todas as coisas finas como sauna e piscina e lareiras e riacho de trutas e duzentos mil metros quadrados e por aí vai. Já gravei vários discos lá e sempre gostei do lugar. Também é bem barato, ainda pelo seu tamanho.

A única desvantagem do Pachyderm é que os proprietários e o gerente não são técnicos e não têm um técnico de plantão. Já trabalhei lá o suficiente para poder consertar praticamente qualquer coisa que possa dar errado, exceto um sério colapso eletrônico, mas tenho um cara com quem trabalho muito (Bob Weston) que é muito bom em eletrônica (design de circuitos, resolver problemas e construir as coisas na hora), então se decidirmos fazer isso lá, ele provavelmente estará na minha folha de pagamento, já que seria um seguro barato se uma fonte de alimentação explodir ou ocorrer uma falha grave no no auge do inverno, a 80 quilômetros da loja de eletrônicos mais próxima. Ele também é engenheiro de gravação, então pode fazer algumas das coisas mais mundanas (catalogar fitas, empacotar coisas, buscar suprimentos) enquanto fazemos o disco propriamente dito.

Algum dia vou convencer o Jesus Lizard a ir até lá e nos divertiremos de verdade. Ah, sim, e é o mesmo console Neve em que o álbum Back in Black do AC/DC foi gravado e mixado, então você sabe que tem o rock.

5) Grana. Expliquei isso a Kurt, mas achei melhor reiterar aqui. Eu não quero e não aceitarei royalties sobre nenhum disco que eu gravar. Sem conversa. Ponto final. Acho que pagar royalties a um produtor ou engenheiro é eticamente indefensável. A banda escreve as músicas. A banda toca a música. São os fãs da banda que compram os discos. A banda é responsável por ser um ótimo disco ou um disco horrível. Os royalties pertencem à banda.

Gostaria de ser pago como um encanador: eu faço o trabalho e você me paga o que vale. A gravadora espera que eu peça um ponto percentual ou um ponto e meio. Se falarmos em três milhões de vendas, isso equivale a cerca de 400.000 dólares. De jeito nenhum eu aceitaria tanto dinheiro. Eu não conseguiria dormir.

Tenho que me sentir confortável com a quantidade de dinheiro que você me paga, mas o dinheiro é seu, e insisto que você também se sinta confortável com ele. Kurt sugeriu que me pagasse uma parte que eu consideraria pagamento integral, e então, se você realmente achasse que eu merecia mais, me pagasse outra parte depois de ter tido a chance de conviver com o álbum por um tempo. Isso seria bom, mas provavelmente teriam mais problemas organizacionais do que valem a pena.

Tanto faz. Confio que vocês serão justos comigo e sei que devem estar familiarizados com o que um capanga normal da indústria cobraria. Vou deixar você tomar a decisão final sobre quanto receberei. O quanto você decidir me pagar não afetará meu entusiasmo pelo disco.

Algumas pessoas na minha posição esperariam um aumento nos negócios depois de se associarem à sua banda. Eu, no entanto, já tenho mais trabalho do que posso dar conta e, francamente, o tipo de pessoas que essas superficialidades atrairão não são pessoas com quem eu queira trabalhar. Por favor, não considere isso um problema.

É isso.

Por favor, ligue-me para discutir isso se não estiver claro.

(Assinado)

Se um disco leva mais de uma semana para ser feito, alguém está estragando tudo. Ei!”

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Carta traduzida pelo jornalista Alexandre Matias, no Vida Fodona. 

sábado, 11 de maio de 2024

Como funciona o amor na prática

Foto: Maurício Tonetto


Era 6 de maio de 2024. Eu sei da data porque, há 20 anos, nos conhecemos. Dias antes, escrevi na minha agenda: comprar flores para Marília. A ideia era fazer algo bem piegas e banal. Mandar um buquê para seu trabalho. Escrever algo. Dizer que a amava.
 
Porém, não comprei flores, nem mandei ninguém entregar nada, tampouco escrevi carta ou bilhete. Porque estávamos em casa, com nossos filhos e a cidade sofria a pior catástrofe de sua história. Foi questão de dias. Porto Alegre estava inundada. E onde não estava debaixo d’água, faltava luz ou água. E esse era o nosso caso.  

Os abrigos lotados. As estradas lotadas. O país inteiro preocupado. Pegamos as crianças, já impacientes, fizemos as malas às pressas e fomos para outro estado.   

Era madrugada, não era mais dia 6 de maio. Os pequenos dormiam no banco de trás. Não entendiam o que se passava. O carro percorria uma estrada simples, de sentido único. Quase desértica. Era tudo muito triste.   

Não tínhamos muito o que conversar. Entretanto, perguntei se ela lembrou que até bem pouco tinha sido 6 de maio. Ela disse que sim.  

Esperei que ela complementasse. Mas ela não falou mais nada. Talvez, também pensou que eu teria algo a mencionar. Mas o fato é que não tínhamos o que dizer. Não naquela hora.

terça-feira, 2 de abril de 2024

Uma carta de Tchekhov


O pintor Levitan está passando uns dias no meu sítio. Ontem, ao entardecer, eu e ele fomos à zona da caça às galinholas. Levitan disparou e uma ave, ferida na asa, caiu num charco. Eu a levantei. Tinha um bico comprido, olhos grandes e pretos e uma plumagem bonita. Olhava para nós, espantada. O que podíamos fazer? Levitan franziu a testa, fechou os olhos e me suplicou, com voz trêmula: "Por favor, esmague a cabeça dela com a coronha da espingarda". Respondi que não era capaz. Os ombros dele não paravam de sacudir, estava nervoso, contraía o rosto e suplicava. A galinhola olhava para mim, espantada. Tive de obedecer a Levitan e matá-la. E, enquanto dois imbecis voltavam para casa e sentavam-se para jantar, havia uma criatura fascinante a menos no mundo.

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Trecho de uma carta de Tchekhov, escrita em 1892. A situação vivida serviu de inspiração para a peça A Gaivota.


quarta-feira, 13 de março de 2024

Ninguém escreve ao coronel - Trecho


 

Ela engolia a canjica. Momentos depois notou, porém, que o marido permanecia ausente. 


- Agora, o que você deve fazer é aproveitar a canjica. 

- Está realmente boa - falou o Coronel. - De onde saiu?

- Do galo - respondeu ela. - Os rapazes trouxeram tanto milho que ele emprestou um pouquinho pra gente. A vida é assim.

- Se é - suspirou o marido. - A vida é a melhor coisa que já se inventou.

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Trecho de Ninguém Escreve ao Coronel, romance de Gabriel Garcia Márquez.


sexta-feira, 8 de março de 2024

A velha máquina de lavar


A máquina de lavar aqui de casa resiste há quase quarenta anos. Não desiste de trabalhar. Lavou roupas de quatro gerações. Avós, pais, filhos e, agora, os netos. Os avós não existem mais e se existissem seriam bisavós. Todas as modas e costumes do vestuário nacional – que vem e vão –passaram por essa Brastemp branca. Um sem número de consertos foram realizados nela. E pelo mesmo técnico: o senhor Baltazar. Um velho seco, bronzeado, rígido, de fala mansa e sorriso tímido.  

- E agora, vale a pena consertar essa geringonça, seu Baltazar?

- Vale, sim. Isso é coisa que não se faz mais. Muito melhor que as máquinas de lavar atuais.

E assim vamos indo. Dessa vez, a máquina não se entregou por muito pouco. O problema foi no cesto. E outro cesto para repor seria muito difícil de achar. A cada lavagem pequenos pedaços de plásticos se esfarelavam junto as roupas. Porém, como sempre, teve conserto. 

- Eu acho que essa máquina ainda vai lavar as roupas de meus netos, seu Baltazar – comentei com ele, enquanto o velho reinstalava tudo pela enésima vez. 

- É bem possível. 

- E acho que vai ser o senhor que vai consertá-la.  

Ele sorriu.  

- Acho que já vou ter ido me embora. Pra tudo tem conserto, né? Menos pra morte.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Pensar Duas Vezes


Diz a máxima que um diplomata é um sujeito que pensa duas vezes antes de dizer nada. Foi exatamente o que não fez Lula quando, durante um compromisso na Etiópia, resolveu dar um sermão em Israel, alegando que as ações israelenses na Faixa de Gaza são comparadas ao holocausto perpetrado por Hitler contra o povo judeu. Lula disse assim. “O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existe nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus”. 

Até então nenhum líder mundial tinha tido a ideia de usar o holocausto como sinônimo de nada relativo à guerra entre Israel e Hamas. Ainda mais contra os próprios judeus – estima-se que foram mais de seis milhões de mortos por Hitler. Uma comparação agressiva e desnecessária, ainda mais para quem preside o G20 – grupo que reúne as maiores economias do mundo – e lidera um país que está há milhares de quilômetros do conflito.  

Outro ponto que deixa o cenário mais absurdo é que Lula, ao vencer a última eleição presidencial, jurou que mudaria a imagem do Brasil no exterior, após o desastre que foi Bolsonaro nesse quesito. Inclusive, o slogan do atual governo é união e reconstrução. Indicativos que, no caso de Israel x Hamas, reforçar a importância de um cessar fogo, sem acusações a nenhum lado, seria um bom caminho retórico. 

Mas Lula sabe, sim, usar a diplomacia. No mesmo compromisso citado, o presidente brasileiro foi questionado sobre mais dois casos internacionais relevantes. Um deles foi a expulsão de agentes do escritório de Direitos Humanos da ONU na Venezuela, país vizinho. Outro tema foi a morte misteriosa de mais um opositor ao governo russo, de Vladimir Putin. Para ambos, Lula não tinha informações, sinônimos, adjetivos ou comparações.  

Ou seja, pensou duas vezes.