Não tem plateia
Não tem circo
Só existe o palhaço
Um homem maquiado
Que se julga obstinado
E ri diante do espelho
Não tem plateia
Não tem circo
Só existe o palhaço
Um homem maquiado
Que se julga obstinado
E ri diante do espelho
Eu queria saber, todas as manhãs que passou naquele quarto, sentado, você teve algum momento de quietude? Porque você está certo. O mundo continua a girar e pode ser um lugar muito cruel. Mas para mim, esses momentos de quietude, esse lugar, esse é o Reino de Deus. E esse lugar nunca vai abandonar você.
O Som do Silêncio (2020).
Teve
uma vez que um cliente pagou o programa com tíquete alimentação. Era lá pelo
dia cinco do mês. O maço do cara, Ticket Alimentação, nem tava usado. Destacou
os papeizinhos. Aceita no Zaffari? Aceita. Tem certeza? Claro, bota em fé em
mim, mulher. E assim foi. Ela fez um ranchinho de cento e cinquenta conto. Chocolate
pro guri. Um ovo com brinquedo dentro. Ele ficou o dia todo em função daquilo. Veio
um macaquinho no brinde surpresa. Cacaco, mamãe! UU AA! É assim que faz o
macaco, filho? É. UU AA! E pulava igualzinho. A vó ria. A velha ganhou aquelas
bolachas que vêm numa lata. Produto importado. No fim, os tíquetes vieram a
calhar. Se fosse dinheiro, uma boa parte ia pro pó. A noite pede um pó. Todo
mundo na boate cheira. A grana que vem, vai rápido. Muito rápido. E tem outra: sempre
pintam uns clientes com uns pinos. E dê-lhe raio! Olho de sapo. Garganta seca. Daí,
dependendo, o programa sai de graça. Um dia, a gurizada tava pela maldade.
Vieram de turma. Coparam o inferninho. Farinhada. Aquele entra e sai do
banheiro. Pintou um apartamento de alguém. Proposta indecente. Não podia sair do
bordel. Ia se incomodar, mas valia a incomodação. Foi. Uísque. Vodca. Cerveja. Pizza.
Gaitada. Som alto. Quando viu, tinha uns quatro em cima. Aquele brilho na
cabeça. Deu vontade. Azar. Foi. A gurizada não se aguenta. Na real, se for
botar na ponta do lápis, não vale a putaria. Até é bom. Mas demora demais. Não
gozam nunca. Pagam de super-herói. Uns com a pílula azul no sangue. E assim
aconteceu. Ainda quatro em cima. Um tentou atrás. Desajeitado. Na força bruta. Sem
conversa. E a foda tava ruim. Sai fora, otário! Deixa... Aí, não! Que que tu
quer?! Já disse que aí, não! Vai te fazer? Vou! Deu pra vocês... Nessa ladaia,
ela pulou. Se desvencilhou e meteu uma roupa. Não achava a saia e a calcinha. No
pavor, se cobriu com o lençol. Dois vazaram. Tinha muita mulher. Ficar ali,
naquela pilha fraca, não era. O que tava no bem-bom, ficou de cara. Porra, mina!
Quero gozar! Olha aqui meu estado. A culpa é do teu amigo aí. Eu não tenho nada
a ver. Já era. O que queria atrás, de pau ainda duro, olhava o teatro com nojo.
Que palhaçada! Palhaçada nada. Tá aqui, na putaria, e quer o quê? Falei que atrás
não! Ah, para! Baita puta e se fazendo... Só podia ser nego mesmo. Por isso,
não gosto de fuder com nego. E tu é branca por acaso? Nego que nem tu, eu não
sou. Terminou de falar e sentiu o tapa. Mão espalmada. Estalo. Com o solavanco,
caiu. O amigo segurou o preto. Senão, ia não ser bem pior. Lá, tu não pisa
mais, otário! Saiu esbravejando. Cara avermelhada. Choro preso. Fissura do pó. Eu
marquei a tua cara, otário! Vou te dedurar pro segurança. É... Aquela gurizada
ia se complicar. Leão-de-chacará. Polícia das antiga. Sabia fazer e fazia bem
feito. Sabia, se fosse necessário, ser bandido duas vezes. No caminho, dentro
do táxi, se acalmou. Não era a primeira, nem a última dessas. Foda-se. Não
podia voltar pro puteiro. Amigo, esquece. Toca agora pro São Sebastião, rua
Ministro de Oliveira Lima. Onde fica isso? Conhece o Lindoia. Sei. É do lado. Não
tinha sono. Não tinha raiva. Não tinha assunto. O pó ainda na mente. Só ruas
desertas. Só aquele pretume de sempre. Chofer calado. Homem velho. Curtido. Deu
quinze reais, moça. Não tenho dinheiro. Como não tem? Achei que tinha e não
tenho. Vai na tua casa, pega. Eu espero aqui. Não posso, moro com a minha mãe,
não posso acordar ela agora. E como vamos resolver? Eu não tenho a noite toda. Sabia
o que tinha que fazer. E fazia bem feito. Começou a função. O taxista não
conseguia finalizar. Se amoleceu. Pediu que botasse o dedo atrás. O velho se
ajeitou no banco. Deu espaço. Meteu um dedo. Meteu dois. E ele se acabou. Boca
cheia. Cuspiu nos paralelepípedos sujos. Se limpou melhor e entrou. Tentou não
fazer barulho. Primeiro, foi olhar o guri que dormia. Na luz fraca, uma brecha
da persiana, apenas o bico se mexia na boca. Subia e descia, junto da
respiração. Depois, abriu a geladeira. Uma sombra. A velha tava na cozinha. Tem
café passado na térmica. Eu sei. Por que veio mais cedo? Tem noite que não vale
a pena, mãe. E essa cara? Acontece. Vou pegar um gelo pra ti. Deixa, mãe. Eu
pego. Vai dormir. Vou, mas aproveita e vai dormir também. Vou ficar mais um tempo,
comer um pão, ver uma tv. Tá bem, filha. Boa noite! Boa noite, mãe! Bateção de
obra na vizinhança. Sempre tem uma porra de uma obra. Não sabia a hora. Não viu
o gurizinho ser levado pra creche. Não viu a mãe sair pro trabalho. Dia seco. Sem
o frescor da noite. O Sol, assim de supetão, chegava a doer na cabeça. Saiu.
Centro. Avenida Salgado Filho. Edifício comercial. De dia também tinha negócio.
No intervalo dos seus trabalhos, muitos homens iam ali. Programas rápidos. Sem
papo-furado. Hoje, tava ruim. Ruim sim, mas sempre tem um pó. Pouco. Buchinha. A
amiga deu. Deu nada. Ia cobrar depois. Vagabunda. Coisa ruim. Fura-olho do
caralho. Quem presta? Impaciente. Vazou. Partiu pro plano B. Cine Apollo. Fim
de linha. Mas azar. Às vezes, dava jogo. Não dessa vez. Só pederasta. Só putão.
Meia dúzia, na real. Encostou no Gerente. Tem um pó aí? Não tenho filha desse
tamanho. Bah, tá assim, é? Tu sabe como conseguir. Te vira. Aguentou o desaforo.
O filho da puta gerenciava uns dez inferninhos. Gerente... Um baita cu de
cachorro! Isso sim. Se foi pra Praça XV. Tá e aí? Estamos aí, né. Que tu quer?
Pastel, cachorro, sei lá... Traz alguma coisa. Trouxe e se sentou junto. Tá
foda, parceiro. Tá nada. Tu que faz drama. Faço nada. É a real. Tá bom, sete e
quinze sai o Pinheiro. Vamos lá pra casa? Riu. Que tá rindo? De graça, tu sabe
que não vou, benzinho. Se levantou. Fez beiço. Tu vai se morder comigo? Não
quero papo de amigo, pô. Então, tá. Deu um beijo nele e foi. Desistiu de pedir
um troco emprestado pra matar a fissura. Ficou sem jeito. Homem é tudo trouxa.
A fonte tava seca e o Sol começava a baixar. Dia ruim. Tem dia que é noite, diz
o ditado. Chegou cedo na boate. Botou meia-calça. Preparava a maquiagem. Caiu
da cama é? Aham. Tu viu que mataram um cara no Carrefour ontem? Qual Carrefour?
O do Viaduto Obirici. Por quê? Sei lá. Os seguranças espancaram o cara. Alguma
coisa ele deve ter feito. Pois é. E teu guri? Que que tem? Conseguiu comprar os
óculos? Ah, comprei, sim. Tadinho. Tão cedo e ter que usar óculos. Peguei um
bom. Dei o dinheiro pra minha mãe comprar. Ainda não vi se deu certo. Mas a mãe
disse que ficou certinho no rostinho dele. E ontem? Que que tem ontem? Tu saiu
e não voltou. Vai te incomodar. Azar. Se eles me encherem o saco, eu saio fora.
Sei... Queria um pó. Tem aí? Não. Mas vai chegar. Sabe o Décio? Aquele altão
moreno? Isso. Se apegou de um jeito... Risos. Diz que vem me ver hoje e vai me
trazer. Risos. Homem é tudo trouxa mesmo. Tic tac nervoso. Foi pro
salão. Puxou a fila. Vontade enorme de dar um teco. Movimento fraco. Queria o
quê? Horário de novela. Uma mulher entra. Garçom atende. Conversa comprida.
Garçom faz sinal. A situação era a seguinte: queria um programa para o filho.
Não faço com menor. Ele não é menor. É que é assim ó... E contou a mesma
história que relatou pro garçom. E completou dizendo que pagaria um extra de
cem conto se desse tudo certo. Ok. Topou. A própria mãe subiu junto. Deixou o
filho na porta do quarto. Tchau, mamãe! Tchau! Fica aí com a moça que a mãe já
volta. Antes de fechar a porta, pediu confiança. Por favor, se der algo errado,
me liga. Certo, pode deixar. Ele tinha 25 anos, segundo a mãe. Gordinho. Barba
rala. Cabelo ensebado. Estava sentado na cama redonda. Tinha síndrome de down e
olhava admirado o globo no teto. Que legal isso! Tu gostou? Aham, muito. Ela, então,
ligou. As luzes coloridas em profusão. Aquele movimento todo. Nossa! Parece uma
festa. Sabia que eu já fui numa festa? Se levantou e tentou tocar. Se
desequilibrou. Rápido, ela o segurou. Eu quase caí. Tu que me salvou, moça. Aham,
eu te salvei. Eu ia bater com a cabeça no chão. Sabia que já bati com a cabeça
no chão? Doeu muito, moça. E onde foi que tu bateu? Aqui atrás, ó. Ela passou a
mão na nuca e seguiu pelas costas. Ai, ai, coceguinha, moça. Tu tem namorada? Eu
não! O pai disse que mulher não vale nada. Nunca teve? Tive só a Marília. E
como foi? Ela não gostava de mim e tinha outro namorado. Seguiu a conversa
infrutífera até perguntar se ele já tinha visto uma mulher sem roupa. Eu já vi
a minha mãe e a Taís. Quem é a Taís? Taís é minha prima por parte de pai. Tirou
a roupa. A Taís era assim? Ele enrubesceu. O programa continuou com pega-pega e
muita brincadeira de cócegas. Na metade do tempo previsto, ligou para a mãe do
rapaz e informou que tinha dado tudo certo. Graças a Deus! E o que eu faço
agora? Espera que tô indo aí pra buscar ele. Se despediu e agradeceu bastante.
Voltou pro salão. Não aconteceria mais nada naquela noite. A fissura milagrosamente
havia passado. Inventou uma dor de cabeça. Avisou o pessoal. Já é a segunda
noite seguida que tu sai assim. Eu sei. Tu vai te incomodar. Cagou pra advertência.
Juntou as coisas. Vazou. Pegou um taxi e foi pra casa. Dessa vez, seu filho estaria
acordado e eles iriam se ver.
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Agradeço ao amigo Caco Belmonte (escritor, ghost writer, jornalista) pelas sugestões valiosas na edição do texto.
O Tempo Já Não Importa na edição de outubro da revista Quatro Cinco Um. Uma das boas publicações brasileiras com foco na Literatura.
Fui criado pela TV. Essa é a real. Família pequena. Pessoal tinha que correr atrás. Escola de manhã. Primeiro grau, Ana Neri. Segundo grau, José Cândido de Godói. Requenta um rango no almoço. Tinha até pizza de 1.99. Vinha numa bandeja de isopor. Troço ruim. Depois, rua e TV. Liberdade impensável hoje.
Mas como disse. Fui criado pela TV. Cine Privé, lógico. Emanuelle, que Deus a tenha. Sempre viva aqui. E MTV. Uma Semp Toshiba branca 10 polegadas. Um inferno pra fazer pegar o UHF. Canal 24. Vira antena pra janela. Arrodeia o miolo do botão. Chuvisco. Tenta bombril. Tapa de leve em cima pra estabilizar a imagem. Também tinha aquela tv + rádio. Imagem preto e branca. UHF acoplado facilitava. Era foda de ver. Mas via.
Era música direto. Video clipe. O mundo tava ali. Que loucura! Lado B. Fúria Metal. Clássicos. Yo Rap. Etc etc. Outro tempo. Thunder fala disso aí. 30 anos de MTV. Nunca mais. Quem viu, viu. O relato dele começa eufórico. Vai ficando triste. Deprê. E termina assim.
Porque já era. O mundo adulto é esse monte de saudade reunida. De vez em quando, a gente lembra. Puta que pariu.
Com dois anos e meio, a pessoa começa a ter vontade própria. Hoje, meu filho escolheu a roupa, uma camiseta do Homem-Aranha, e pediu para ir pra praia. Mas praia não há em Porto Alegre.
- Pode ser ir pra rua? – perguntei.
- Rua!
E saímos. Já na primeira quadra, o mesmo mendigo de sempre. Sentado. Sentado não, escorado. Completamente bêbado. O guri breca e dá oi. O mendigo retribui e comenta que o tempo está bom para um passeio. Ambos dão risada e falam coisas meio incompreensíveis. Eu dou um leve empurrãozinho em meu filho, que entende o sinal e acena com um tchau para o mendigo.
- Tchau pra ti também, amiguinho! Pô, tu foi a primeira pessoa que me cumprimentou hoje.
São 13h30. O sol a pino. Duas quadras pra frente, meu filho pede colo. Quer voltar pra casa. Tem fome e quer um chocolate, porque com dois anos e meio a pessoa começa a ter vontade própria.
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*O título faz menção ao clássico Bola de meia, bola de gude
Flannery O’Connor nasceu em Savannah, cidade do estado americano da Geórgia, em 25 de março de 1925. Criada no seio de uma família católica, não saiu de sua cidade natal até sua adolescência, quando perdeu o pai para o lúpus, mesma enfermidade que, em 3 de agosto de 1964, tiraria sua própria vida.
Tendo se formado em Ciências Sociais pelo Georgia State College for Women, onde atuou como editora de dois periódicos – uma revista dedicada à literatura e outra, às artes –, Flannery conseguiu, em 1946, vaga na célebre Oficina de Escrita Criativa da Universidade de Iowa. Neste mesmo ano, teve publicado seu primeiro trabalho: o conto “O gerânio”. No entanto, embora Flannery viesse a ser reconhecida como uma das principais contistas da literatura americana, seu primeiro livro foi um romance: Sangue sábio, de 1952. A ele seguiram-se o célebre Um homem bom é difícil de encontrar, coletânea de contos de 1955, e o romance O céu é dos violentos, de 1960. Em 1965, publicou-se ainda um volume póstumo de contos inéditos: Tudo o que sobe deve convergir. Também vieram a público, após o falecimento da autora, suas cartas, algumas de suas críticas literárias, outros texto em prosa e seu diário de orações.
Um dos expoentes do chamado “gótico sulista”, Flannery retrata em suas obras a decadência do Sul americano, as complexidades da relação entre homem e Deus e a aridez dos tempos modernos, bem como a tendência do homem à brutalidade e à perversidade num mundo necessitado da graça divina. No entanto, mescla a tudo isso certos traços grotescos e excêntricos, mas também dotados de um humor peculiar. Curiosamente, a mistura de elementos tão incomuns fez com que fosse conhecida por seu... realismo. Um realismo todo seu, é bem verdade.
Quando confinada a um leito de hospital, poucos dias antes de morrer de lúpus, Flannery ainda se dedicava a revisar e modificar seus originais. A cena serve como ótimo exemplo do quanto Flannery dava de si à literatura, e isso o leitor não deixará de percebê-lo nas páginas de suas obras.
Flordelis tem quatro filhos biológicos e outros três adotados da "primeira geração" que faziam parte da "elite dos filhos". Estes tinham acesso a uma geladeira com tudo do melhor, enquanto os demais 40 e tantos dormiam em quartos coletivos e comiam pão seco, massa e salsicha. Anderson, o marido morto, era um dos primeiros adotados. Durante um tempo ele namorou uma filha biológica da Flordelis, então, ele era filho e genro ao mesmo tempo e, depois, se tornou marido, enquanto ela foi mãe, sogra e esposa da mesma pessoa. E da filha, ele foi irmão, namorado e, depois, padrasto. Fora isso, Flordelis costumava frequentar uma casa de swing, onde teria um quarto exclusivo para participar de surubas com a filha, ex do marido, o marido e o marido da filha. Tá confuso? Mas tem mais, segundo um dos filhos, quando adotado foi trancado em um quarto para se purificar, enquanto a mãe adotiva o visitava para domá-lo sexualmente, dias e dias de sexo. Depois de aceito, em um ritual secreto, o pastor Anderson, o assassinado, se apresentava pelado e fazia com que os iniciados cortassem a mão e, com sangue, escrevessem trechos dos Salmos. Mas não acabou ainda, não. Anderson pedia permissão para também fazer sexo com os recém adotados. Quando de visitas de pastores de outros países, o casal oferecia uma das filhas para o prazer sexual como bons anfitriões. Flordelis teria tentado matar o Anderson oito vezes, envenenando sua comida (ele é ruim de morrer, teria dito um a das filhas), por conta do controle financeiro da igreja que fundaram, que tem o sugestivo nome de Cidade do Fogo. Anderson estaria cortando regalias da elite dos filhos e, estes, em associação com Flordelis, arquitetaram seu assassinato com mais de trinta tiros, a maioria parte na região pélvica da vítima. Agora sim temos um roteiro para uma série de fanatismo, horror e violência, proibida para menores. Nem Pasolini conseguiria filmar isso daí.
Texto de Marcelo Benvenutti
O bebê de um ano e onze meses morto a pauladas pelo pai,
As dez crianças mortas pelo vigia que ateou fogo na creche,
O menino assassinado pela polícia dentro casa com setenta e um tiros disparados a esmo,
O garoto estrangulado pela mãe,
O garoto empalado pelo homem desconhecido,
A menina alvejada pela facção rival do pai,
A recém-nascida morta pela mãe, guardada em uma sacola plástica e descartada no container de lixo orgânico,
O garoto que vendia rapadura na rua, morto com a promessa de que teria todos doces comprados se fosse a casa do assassino,
O menino que recebeu a injeção letal a mando do pai,
O menino arrastado por sete quilômetros do lado de fora de um carro por assaltantes,
A menina atirada da janela do sexto andar pelo pai e a madrasta,
O bebê de duas semanas que foi esquartejado e teve partes do corpo comida por cães,
O menino assassinado com dois tiros no rosto antes do pedido de resgate,
O menino com síndrome de down morto com água fervente pela mãe,
A menina estuprada e que teve o corpo sem vida jogado no telhado pelo vizinho,
As duas crianças mortas em um ritual e que até hoje não foram identificadas,
O menino assassinado com uma facada no pescoço pelo pai que tinha ciúmes da mãe,
O pequeno sírio que morreu afogado fugindo guerra e foi encontrado de bruços na beira da praia,
O bebê de noves meses morto de fome e desidratação pela mãe que o deixou por sete dias em um carrinho e saiu de casa,
E o feto de cinco meses abortado de uma menina de 10 anos que era estuprada pelo tio
Não se tornaram pessoas más,
Porque a sociedade
Não os corrompeu.
Os períodos de eleições são particularmente propícios à caça aos idiotas. Não que o número deles aumente nessas épocas, eles simplesmente saem mais da toca. Basta conversar um pouco, e não vão conseguir deixar de dizer algo que os denuncie. Por exemplo: “É preciso optar pelo voto útil”. Ou: “Desta vez, vou votar útil”. Não resta dúvida: você tem pela frente um grandessíssimo idiota. Será que o individuo não percebe a imbecilidade que acaba de dizer? É pouco provável, devido à sua condição de idiota. O conceito de “voto útil” é totalmente antidemocrático e, em geral, o idiota é democrata. É o que os pesquisadores de idiotices chamam de “paradoxo do idiota”. Quando se supõe que existe um voto útil, se supõe, ao mesmo tempo, que existem votos inúteis. O idiota, então, está cagando para o pluralismo democrático, mesmo que se diga um grande democrata. O idiota que vota útil deseja que todos da sua família política votem pelo futuro vencedor. Na verdade, o idiota sabe antes de todo mundo quem será eleito, sendo então inútil votar pelos outros, os perdedores. O idiota é uma espécie de eugenista que gostaria de ver pessoas diferentes desaparecerem. Pessoas diferentes, quer dizer, a seu ver, pessoas inúteis à construção da sociedade com a qual ele sonha. Resumindo, o voto útil é uma fórmula nazista, totalitária, perigosa. Se nem todas as expressões democráticas são úteis em democracia, por que não suprimir algumas? Ao ficar repetindo que é preciso votar útil, o idiota está condenando a democracia à podridão. Quantos jovens e inexperiente eleitores não se deixaram enganar por essa espécie de slogan aparentemente sensato: “É preciso optar pelo voto útil”? Quantos cidadãos não votaram contra as próprias ideias, condicionado pela propaganda dos idiotas?
Você há de concordar, é preciso trancafiar o idiota que vota útil numa urna eleitoral e lançá-la de paraquedas num gulag norte-coreano. Amén.
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Charb (Stéphane Charbonier) foi diretor do semanário satírico Charlie Hebdo de 2009 a 2015. Ele foi uma das vítimas do atentado terrorista à sede da publicação. A crônica acima faz parte do livro Pequeno Tratado da Intolerância, publicado no Brasil em 2015 (editora Planeta).
1948 - 2011 |