Teve
uma vez que um cliente pagou o programa com tíquete alimentação. Era lá pelo
dia cinco do mês. O maço do cara, Ticket Alimentação, nem tava usado. Destacou
os papeizinhos. Aceita no Zaffari? Aceita. Tem certeza? Claro, bota em fé em
mim, mulher. E assim foi. Ela fez um ranchinho de cento e cinquenta conto. Chocolate
pro guri. Um ovo com brinquedo dentro. Ele ficou o dia todo em função daquilo. Veio
um macaquinho no brinde surpresa. Cacaco, mamãe! UU AA! É assim que faz o
macaco, filho? É. UU AA! E pulava igualzinho. A vó ria. A velha ganhou aquelas
bolachas que vêm numa lata. Produto importado. No fim, os tíquetes vieram a
calhar. Se fosse dinheiro, uma boa parte ia pro pó. A noite pede um pó. Todo
mundo na boate cheira. A grana que vem, vai rápido. Muito rápido. E tem outra: sempre
pintam uns clientes com uns pinos. E dê-lhe raio! Olho de sapo. Garganta seca. Daí,
dependendo, o programa sai de graça. Um dia, a gurizada tava pela maldade.
Vieram de turma. Coparam o inferninho. Farinhada. Aquele entra e sai do
banheiro. Pintou um apartamento de alguém. Proposta indecente. Não podia sair do
bordel. Ia se incomodar, mas valia a incomodação. Foi. Uísque. Vodca. Cerveja. Pizza.
Gaitada. Som alto. Quando viu, tinha uns quatro em cima. Aquele brilho na
cabeça. Deu vontade. Azar. Foi. A gurizada não se aguenta. Na real, se for
botar na ponta do lápis, não vale a putaria. Até é bom. Mas demora demais. Não
gozam nunca. Pagam de super-herói. Uns com a pílula azul no sangue. E assim
aconteceu. Ainda quatro em cima. Um tentou atrás. Desajeitado. Na força bruta. Sem
conversa. E a foda tava ruim. Sai fora, otário! Deixa... Aí, não! Que que tu
quer?! Já disse que aí, não! Vai te fazer? Vou! Deu pra vocês... Nessa ladaia,
ela pulou. Se desvencilhou e meteu uma roupa. Não achava a saia e a calcinha. No
pavor, se cobriu com o lençol. Dois vazaram. Tinha muita mulher. Ficar ali,
naquela pilha fraca, não era. O que tava no bem-bom, ficou de cara. Porra, mina!
Quero gozar! Olha aqui meu estado. A culpa é do teu amigo aí. Eu não tenho nada
a ver. Já era. O que queria atrás, de pau ainda duro, olhava o teatro com nojo.
Que palhaçada! Palhaçada nada. Tá aqui, na putaria, e quer o quê? Falei que atrás
não! Ah, para! Baita puta e se fazendo... Só podia ser nego mesmo. Por isso,
não gosto de fuder com nego. E tu é branca por acaso? Nego que nem tu, eu não
sou. Terminou de falar e sentiu o tapa. Mão espalmada. Estalo. Com o solavanco,
caiu. O amigo segurou o preto. Senão, ia não ser bem pior. Lá, tu não pisa
mais, otário! Saiu esbravejando. Cara avermelhada. Choro preso. Fissura do pó. Eu
marquei a tua cara, otário! Vou te dedurar pro segurança. É... Aquela gurizada
ia se complicar. Leão-de-chacará. Polícia das antiga. Sabia fazer e fazia bem
feito. Sabia, se fosse necessário, ser bandido duas vezes. No caminho, dentro
do táxi, se acalmou. Não era a primeira, nem a última dessas. Foda-se. Não
podia voltar pro puteiro. Amigo, esquece. Toca agora pro São Sebastião, rua
Ministro de Oliveira Lima. Onde fica isso? Conhece o Lindoia. Sei. É do lado. Não
tinha sono. Não tinha raiva. Não tinha assunto. O pó ainda na mente. Só ruas
desertas. Só aquele pretume de sempre. Chofer calado. Homem velho. Curtido. Deu
quinze reais, moça. Não tenho dinheiro. Como não tem? Achei que tinha e não
tenho. Vai na tua casa, pega. Eu espero aqui. Não posso, moro com a minha mãe,
não posso acordar ela agora. E como vamos resolver? Eu não tenho a noite toda. Sabia
o que tinha que fazer. E fazia bem feito. Começou a função. O taxista não
conseguia finalizar. Se amoleceu. Pediu que botasse o dedo atrás. O velho se
ajeitou no banco. Deu espaço. Meteu um dedo. Meteu dois. E ele se acabou. Boca
cheia. Cuspiu nos paralelepípedos sujos. Se limpou melhor e entrou. Tentou não
fazer barulho. Primeiro, foi olhar o guri que dormia. Na luz fraca, uma brecha
da persiana, apenas o bico se mexia na boca. Subia e descia, junto da
respiração. Depois, abriu a geladeira. Uma sombra. A velha tava na cozinha. Tem
café passado na térmica. Eu sei. Por que veio mais cedo? Tem noite que não vale
a pena, mãe. E essa cara? Acontece. Vou pegar um gelo pra ti. Deixa, mãe. Eu
pego. Vai dormir. Vou, mas aproveita e vai dormir também. Vou ficar mais um tempo,
comer um pão, ver uma tv. Tá bem, filha. Boa noite! Boa noite, mãe! Bateção de
obra na vizinhança. Sempre tem uma porra de uma obra. Não sabia a hora. Não viu
o gurizinho ser levado pra creche. Não viu a mãe sair pro trabalho. Dia seco. Sem
o frescor da noite. O Sol, assim de supetão, chegava a doer na cabeça. Saiu.
Centro. Avenida Salgado Filho. Edifício comercial. De dia também tinha negócio.
No intervalo dos seus trabalhos, muitos homens iam ali. Programas rápidos. Sem
papo-furado. Hoje, tava ruim. Ruim sim, mas sempre tem um pó. Pouco. Buchinha. A
amiga deu. Deu nada. Ia cobrar depois. Vagabunda. Coisa ruim. Fura-olho do
caralho. Quem presta? Impaciente. Vazou. Partiu pro plano B. Cine Apollo. Fim
de linha. Mas azar. Às vezes, dava jogo. Não dessa vez. Só pederasta. Só putão.
Meia dúzia, na real. Encostou no Gerente. Tem um pó aí? Não tenho filha desse
tamanho. Bah, tá assim, é? Tu sabe como conseguir. Te vira. Aguentou o desaforo.
O filho da puta gerenciava uns dez inferninhos. Gerente... Um baita cu de
cachorro! Isso sim. Se foi pra Praça XV. Tá e aí? Estamos aí, né. Que tu quer?
Pastel, cachorro, sei lá... Traz alguma coisa. Trouxe e se sentou junto. Tá
foda, parceiro. Tá nada. Tu que faz drama. Faço nada. É a real. Tá bom, sete e
quinze sai o Pinheiro. Vamos lá pra casa? Riu. Que tá rindo? De graça, tu sabe
que não vou, benzinho. Se levantou. Fez beiço. Tu vai se morder comigo? Não
quero papo de amigo, pô. Então, tá. Deu um beijo nele e foi. Desistiu de pedir
um troco emprestado pra matar a fissura. Ficou sem jeito. Homem é tudo trouxa.
A fonte tava seca e o Sol começava a baixar. Dia ruim. Tem dia que é noite, diz
o ditado. Chegou cedo na boate. Botou meia-calça. Preparava a maquiagem. Caiu
da cama é? Aham. Tu viu que mataram um cara no Carrefour ontem? Qual Carrefour?
O do Viaduto Obirici. Por quê? Sei lá. Os seguranças espancaram o cara. Alguma
coisa ele deve ter feito. Pois é. E teu guri? Que que tem? Conseguiu comprar os
óculos? Ah, comprei, sim. Tadinho. Tão cedo e ter que usar óculos. Peguei um
bom. Dei o dinheiro pra minha mãe comprar. Ainda não vi se deu certo. Mas a mãe
disse que ficou certinho no rostinho dele. E ontem? Que que tem ontem? Tu saiu
e não voltou. Vai te incomodar. Azar. Se eles me encherem o saco, eu saio fora.
Sei... Queria um pó. Tem aí? Não. Mas vai chegar. Sabe o Décio? Aquele altão
moreno? Isso. Se apegou de um jeito... Risos. Diz que vem me ver hoje e vai me
trazer. Risos. Homem é tudo trouxa mesmo. Tic tac nervoso. Foi pro
salão. Puxou a fila. Vontade enorme de dar um teco. Movimento fraco. Queria o
quê? Horário de novela. Uma mulher entra. Garçom atende. Conversa comprida.
Garçom faz sinal. A situação era a seguinte: queria um programa para o filho.
Não faço com menor. Ele não é menor. É que é assim ó... E contou a mesma
história que relatou pro garçom. E completou dizendo que pagaria um extra de
cem conto se desse tudo certo. Ok. Topou. A própria mãe subiu junto. Deixou o
filho na porta do quarto. Tchau, mamãe! Tchau! Fica aí com a moça que a mãe já
volta. Antes de fechar a porta, pediu confiança. Por favor, se der algo errado,
me liga. Certo, pode deixar. Ele tinha 25 anos, segundo a mãe. Gordinho. Barba
rala. Cabelo ensebado. Estava sentado na cama redonda. Tinha síndrome de down e
olhava admirado o globo no teto. Que legal isso! Tu gostou? Aham, muito. Ela, então,
ligou. As luzes coloridas em profusão. Aquele movimento todo. Nossa! Parece uma
festa. Sabia que eu já fui numa festa? Se levantou e tentou tocar. Se
desequilibrou. Rápido, ela o segurou. Eu quase caí. Tu que me salvou, moça. Aham,
eu te salvei. Eu ia bater com a cabeça no chão. Sabia que já bati com a cabeça
no chão? Doeu muito, moça. E onde foi que tu bateu? Aqui atrás, ó. Ela passou a
mão na nuca e seguiu pelas costas. Ai, ai, coceguinha, moça. Tu tem namorada? Eu
não! O pai disse que mulher não vale nada. Nunca teve? Tive só a Marília. E
como foi? Ela não gostava de mim e tinha outro namorado. Seguiu a conversa
infrutífera até perguntar se ele já tinha visto uma mulher sem roupa. Eu já vi
a minha mãe e a Taís. Quem é a Taís? Taís é minha prima por parte de pai. Tirou
a roupa. A Taís era assim? Ele enrubesceu. O programa continuou com pega-pega e
muita brincadeira de cócegas. Na metade do tempo previsto, ligou para a mãe do
rapaz e informou que tinha dado tudo certo. Graças a Deus! E o que eu faço
agora? Espera que tô indo aí pra buscar ele. Se despediu e agradeceu bastante.
Voltou pro salão. Não aconteceria mais nada naquela noite. A fissura milagrosamente
havia passado. Inventou uma dor de cabeça. Avisou o pessoal. Já é a segunda
noite seguida que tu sai assim. Eu sei. Tu vai te incomodar. Cagou pra advertência.
Juntou as coisas. Vazou. Pegou um taxi e foi pra casa. Dessa vez, seu filho estaria
acordado e eles iriam se ver.
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Agradeço ao amigo Caco Belmonte (escritor, ghost writer, jornalista) pelas sugestões valiosas na edição do texto.
Obrigado pela citação. Penso que todo autor deveria ter outros autores para dividir seus escritos e trabalhar os textos de forma solidária, uma "oficina de criação" onde os alunos não competem entre si ....
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