quarta-feira, 8 de julho de 2015

A Hora e a Vez dos Clásssicos: Um Artista da Fome - Franz Kafka

Autor de A Metamorfose, O Castelo, O Processo, entre outros

UM ARTISTA DA FOME
Franz Kafka

Nas últimas décadas o interesse pelos artistas da fome diminuiu bastante. Se
antes compensava promover, por conta própria, grandes apresentações desse
gênero, hoje isso é completamente impossível. Os tempos eram outros.
Antigamente toda a cidade se ocupava com os artistas da fome; a participação
aumentava a cada dia de jejum; todo mundo queria ver o jejuador no mínimo
uma vez por dia; nos últimos, havia espectadores que ficavam sentados dias
inteiros diante da pequena jaula; também à noite se faziam visitas cujo efeito
era intensificado pela luz de tochas; nos dias de bom tempo a jaula era levada
ao ar livre e o artista mostrado especialmente às crianças. Embora para os
adultos ele não passasse de um divertimento, no qual tomavam parte por causa
da moda, as crianças olhavam com assombro, de boca aberta, uma segurando
a mão da outra por insegurança, aquele homem pálido, de malha escura, as
costelas extremamente salientes, que desdenhava até uma cadeira para ficar
sentado sobre a palha espalhada no chão: ora ele acenava polidamente com a
cabeça, ora respondia com um sorriso forçado às perguntas, esticando o braço
pelas grades para que apalpassem sua magreza e mergulhando outra vez
dentro de si mesmo, sem se importar com ninguém, nem mesmo com a batida
do relógio - tão importante para ele e a única peça que decorava a jaula -, mas
fitando o vazio com os olhos semicerrados e bebericando de vez em quando
água de um copo minúsculo para umedecer os lábios.


Além dos espectadores que se revezavam, havia ali também vigilantes
escolhidos pelo público - em geral, curiosamente, açougueiros, sempre três ao
mesmo tempo, e que assumiam a tarefa de observar dia e noite o artista da
fome para que ele não se alimentasse por algum método oculto. Mas isso era
apenas uma formalidade introduzida para tranquilizar as massas, pois os
iniciados sabiam muito bem que o jejuador, durante o período de fome, nunca,
em circunstância alguma, mesmo sob coação, come-ria alguma coisa, por
mínima que fosse: a honra da sua arte o proibia. Sem dúvida nem todo
vigilante podia entender isso; havia muitas vezes grupos de vigia que à noite
exerciam com muita displicência o seu papel, reunindo-se de propósito num
canto distante, onde mergulhavam no jogo de cartas com a intenção manifesta
de conceder ao artista da fome um descanso durante o qual, no seu modo de
ver, ele podia lançar mão de provisões secretas. Nada atormentava tanto o
jejuador quanto esses vigilantes; eles turvavam seu estado de ânimo e
tornavam o jejum terrivelmente difícil; às vezes, superando a fraqueza, ele
cantava, enquanto tinha forças, no período de vigia, para mostrar às pessoas
como era injusto suspeitarem dele. Mas isso pouco ajudava, porque então eles
se admiravam da sua destreza para comer até cantando. Para ele eram muito
preferíveis os vigilantes que se sentavam bem junto às grades, não se
contentavam com a fosca iluminação noturna da sala e faziam incidir sobre o
jejuador os raios de lanternas elétricas de bolso que o empresário punha à sua
disposição. A luz crua não o incomodava de modo algum; embora não
pudesse dormir, sempre cochilava um pouco com qualquer luminosidade e a
qualquer hora, mesmo na sala superlotada e barulhenta. Com esses vigilantes
estava sempre pronto a passar a noite toda em claro, a trocar gracejos com
eles, contar-lhes histórias da sua vida errante e depois escutar as deles - tudo
para mantê-los despertos, para poder provar-lhes que não tinha nada
comestível na jaula e que jejuava como nenhum deles seria capaz. Mas era de
manhã que ficava mais feliz do que nunca, pois então, por sua conta, era
servido aos vigilantes um café da manhã suculento, ao qual eles se atiravam
com o apetite de homens sadios depois de uma noite de trabalhosa vigia. Na
realidade não faltavam pessoas que queriam ver nessa refeição uma influência
indevida sobre os vigilantes; mas isso era ir longe demais e quando
perguntavam a elas se porventura queriam assumir a vigilância noturna em
nome da causa e sem o café da manhã, elas torciam a cara e conservavam suas
suspeitas.

Isso no entanto já fazia parte das suspeitas inerentes à profissão do artista da
fome. Ninguém estava em condições de passar todos os dias e noites
ininterruptamente a seu lado como vigilante, portanto ninguém era capaz de
saber, por observação pessoal, se o jejum fora realmente mantido sem falha e
interrupção; só o artista podia saber isso e ser o espectador totalmente
satisfeito do próprio jejum. Entretanto ele nunca estava satisfeito por outro
motivo: talvez não fosse em virtude do jejum que estivesse tão magro - a tal
ponto que muitos, lamentando-se por causa disso, tinham que se afastar das
apresentações porque não conseguiam suportar aquela visão - mas sim em
virtude da insatisfação consigo mesmo. É que só ele sabia - só ele e nenhum
outro iniciado - como era fácil jejuar. Era a coisa mais fácil do mundo. Ele não
o ocultava, mas não acreditavam nele; no melhor dos casos consideravam-no
modesto, no geral porém um faroleiro ou simples farsante, para quem o jejum
era fácil porque ele conhecia a maneira de torná-lo fácil e ainda por cima tinha
o topete de o admitir só pela metade. Ele era obrigado a admitir tudo isso, mas
no correr dos anos se acostumou; no entanto a insatisfação o roía por dentro e
nem uma única vez, depois de qualquer período de fome - tinham de
conceder-lhe esse crédito - deixara espontaneamente a jaula. O empresário
havia fixado em quarenta dias o prazo máximo de jejum, acima disso ele
nunca deixava jejuar nem nas grandes cidades do mundo - e isso por um bom
motivo. A experiência mostrava que durante quarenta dias era possível
espicaçar o interesse de uma cidade através de uma propaganda ativada
gradativamente, mas depois disso o público falhava e se podia verificar uma
redução substancial da assistência; naturalmente existiam neste ponto
pequenas diferenças segundo as cidades e os países, mas como regra quarenta
dias eram o período máximo. Sendo assim, no quadragésimo dia eram abertas
as portas da jaula coroada de flores, uma platéia entusiasmada enchia o
anfiteatro, uma banda militar tocava, dois médicos entravam na jaula para
proceder às medições necessárias no artista da fome, os resultados eram
anunciados à sala por um megafone e finalmente duas moças, felizes por
terem sido as sorteadas, ajudavam o jejuador a sair da jaula, descendo com ele
alguns degraus de escada até uma mesinha onde estava servida uma refeição
de doente cuidadosamente selecionada. E neste momento o artista da fome
sempre resistia. Na verdade colocava voluntariamente os braços ossudos nas
mãos das jovens que se curvavam sobre ele, mas não queria se levantar. Por
que parar justamente agora, depois de quarenta dias? Ele poderia aguentar
ainda muito tempo, um tempo ilimitado; por que suspender agora, quando
estava no melhor, isto é, ainda não estava no melhor do jejum? Por que
queriam privá-lo da glória de continuar sem comer, de se tornar não só o
maior jejuador de todos os tempos - coisa que provavelmente já era - mas
também de superar a si mesmo até o inconcebível, uma vez que não sentia
limites para a sua capacidade de passar fome? Por que essa multidão, que
fingia admirá-lo tanto, tinha tão pouca paciência com ele? Se ele aguentava
continuar jejuando, por que ela não suportava isso? Além do mais ele estava
cansado, bem assentado sobre a palha e devia endireitar o corpo todo e
caminhar até a comida: só de pensar nela sentia náuseas, cuja exteriorização
porém ele reprimia a custo só em consideração às damas. E erguia a vista para
os olhos das moças na aparência tão amáveis, mas na verdade tão cruéis, e
balançava a cabeça excessivamente pesada sobre o pescoço fraco. Mas então
acontecia o mesmo de sempre. O empresário chegava e sem dizer uma palavra
- a música tornava qualquer discurso impossível - levantava os braços sobre o
artista da fome, como se convidasse o céu a contemplar sua obra sobre a
palha, este mártir digno de compaixão - que o artista da fome de fato era, mas
num sentido muito diferente; agarrava-o pela cintura delgada. com um
cuidado exagerado, como se quisesse fazer acreditar que tinha de lidar aqui
com uma coisa muito quebradiça e - não sem sacudi-lo um pouco às
escondidas, de tal forma que o artista da fome balançava descontrolado de um
lado para outro com as pernas e o tronco - entregava-o às jovens que nesse
ínterim tinham ficado mortal-mente pálidas. Aí então o jejuador tolerava tudo:
a cabeça caía sobre o peito, como se tivesse rolado para lá e ficasse ali sem
explicação; o corpo estava esvaziado; as pernas, para se sustentarem,
apertavam-se uma contra a outra na altura dos joelhos, raspando o chão como
se ele não fosse o verdadeiro - este elas ainda procuravam; e o peso inteiro do
corpo, embora bem pequeno, recaia sobre uma das damas que, buscando
ajuda, com o fôlego entrecortado não tinha imaginado desse jeito a missão
honorífica - esticava o mais que podia o pescoço para livrar pelo menos o
rosto do contato com o artista da fome. Mas depois, como não o conseguisse e
a companheira, mais feliz que ela, não ia em seu socorro - contentando-se em
transportar, trêmula, a mão do jejuador, esse pequeno feixe de ossos, sob o
riso deliciado da sala - rompia no choro e precisava ser substituída por um
criado há muito tempo preparado para isso. Em seguida vinha a refeição, na
qual o empresário fazia o artista da fome engolir alguma coisa durante um
semi-sono de desmaio em meio a uma conversa divertida que devia desviar a
atenção do estado do artista; depois era erguido um brinde ao público,
supostamente soprado pelo jejuador ao empresário; a orquestra reforçava tudo
com uma grande fanfarra, as pessoas se dispersavam e ninguém tinha o direito
de ficar insatisfeito com o acontecimento - ninguém a não ser o artista da
fome, só ele, sempre.

Assim viveu muitos anos, com pequenas pausas regulares de descanso, num
esplendor aparente, respeitado pelo mundo mas, apesar disso, a maior parte do
tempo num estado de humor melancólico, que se tornava cada vez mais
sombrio porque ninguém conseguia levá-lo a sério. Aliás, com o que poderia
ser consolado? O que lhe restava desejar? E se alguma vez uma pessoa bem intencionada
se compadecia dele e queria lhe explicar que sua tristeza
provavelmente vinha da fome, podia acontecer - em especial no estágio
avançado do jejum - que respondesse com um acesso de fúria e começasse a
sacudir as grades como um animal, para susto de todos Mas para esses estados
o empresário dispunha de um castigo que gostava de aplicar. Desculpava o
artista perante o público reunido, admitia que só a irritabilidade provocada
pelo jejum - facilmente compreensível por pessoas bem alimentadas - tornava
perdoável o comportamento do jejuador; nesse contexto acabava se referindo
também à afirmação do artista da fome - igualmente merecedora de um
esclarecimento - de que poderia jejuar muito mais ainda do que jejuava;
elogiava a elevada ambição, a boa vontade, a grande negação de si mesmo que
sem dúvida estavam contidas nessa afirmação; mas depois procurava refutá-la,
pura e simplesmente, mostrando fotografias - que eram vendidas naquela hora
- pois nas imagens se via o artista da fome, no quadragésimo dia de jejum,
quase extinto de inanição. Essa distorção da verdade, de resto bem conhecida,
mas sempre enervante, era demais para o jejuador. O que era conseqüência do
encerramento prematuro do jejum se apresentava aqui como sua causa! Era
impossível lutar contra essa incompreensão, contra esse mundo de insensatez.
Embora sempre tivesse ouvido de boa fé o empresário, quando as fotografias
apareciam ele largava das grades da jaula, às quais estivera ansiosamente
grudado, e afundava outra vez na palha, soluçando; e então o público,
acalmado, podia aproximar-se e examiná-lo.

Quando as testemunhas se recordavam dessas cenas, alguns anos mais tarde,
muitas vezes não compreendiam a si mesmas. Pois nesse meio tempo interveio
a virada já referida; isso aconteceu quase de repente; devia haver motivos mais
profundos, mas quem iria se preocupar em descobri-los? Seja como for o
mimado artista da fome se viu um dia abandonado pela multidão ávida de
diversão que preferia afluir a outros espetáculos. O empresário percorreu
novamente com ele meia Europa para ver se aqui e ali não se reencontrava o
antigo interesse; tudo inútil; como se fosse por um acordo secreto, em toda
parte havia se estabelecido uma repulsa contra o espetáculo da fome. É
evidente que na realidade isso não poderia ter sucedido de repente e
recordava-se agora, com atraso, de muitos presságios que na época da
embriaguez do triunfo não tinham sido suficientemente respeitados nem
suficientemente reprimidos; mas agora já era tarde demais para fazer alguma
coisa. Certamente os bons tempos do jejum um dia também voltariam mas
para os que viviam aquela época isso não era um consolo. O que o artista da
fome podia então fazer? Quem tinha sido amado por milhares de pessoas não
podia exibir-se em barracas nas pequenas feiras, e para adotar outra profissão
o artista estava não só muito velho, mas sobretudo entregue com demasiado
fanatismo ao jejum. Sendo assim, demitiu o empresário, companheiro de uma
carreira incomparável, e se empregou num grande circo; para poupar a própria
suscetibilidade nem olhou as condições do contrato.

Um grande circo, com seus inúmeros homens, animais e aparelhos que sem
cessar se recompõem e se completam, pode utilizar qualquer um a qualquer
hora, mesmo um artista da fome - naturalmente se as pretensões dele forem
modestas; além disso, neste caso particular não era apenas o próprio jejuador a
ser engajado, mas também o seu nome antigo e famoso; de fato não se podia
dizer, dada a peculiaridade da sua arte - que com o avanço da idade não
diminuía -, que o veterano artista, passado o auge da sua capacidade, queria se
refugiar num posto tranqüilo do circo; pelo contrário, o artista da fome
garantia que jejuava tão bem quanto antes, o que era perfeitamente digno de
fé; afirmava até que, se o deixassem fazer sua vontade - e isso lhe prometeram
logo -, desta vez ia encher o mundo de justificado espanto; uma declaração,
contudo, que só provocou um sorriso nos especialistas, cientes do espírito da
época que, no seu zelo, o artista da fome facilmente esquecia.

Mas no fundo o jejuador também não deixou de perceber as condições reais e
considerou natural que ele não fosse colocado com sua jaula, como número de
destaque, no centro do picadeiro, mas sim fora, num lugar aliás bastante
acessível, situado perto dos estábulos. Cartazes grandes e coloridos
emolduravam a jaula e anunciavam o que podia ser visto nela. Quando o
público, nos intervalos do espetáculo, se comprimia junto às estrebarias para
visitar os animais, era quase inevitável que passassem diante do artista da
fome e parassem um pouco; talvez permanecessem ali por mais tempo se a
multidão que vinha atrás, sem entender aquela parada no meio do caminho aos
estábulos, não tornasse impossível uma observação mais prolongada e
tranquila. Esse também era o motivo pelo qual o jejuador tremia ao pensar
naquelas horas de visita, que ele naturalmente desejava como meta da sua
vida. Nos primeiros tempos mal podia esperar os intervalos entre as
apresentações; encantado, dirigia o olhar para a multidão que se aproximava,
até que logo - nem mesmo o auto-engano mais pertinaz e quase consciente
resistia às experiências - se convenceu de que o objetivo daquelas pessoas era
sempre, sem exceção, visitar os estábulos. O mais belo continuava sendo essa
visão à distância. Pois assim que os visitantes se aproximavam dele,
ensurdeciam-no os gritos e xingamentos dos dois partidos que sem cessar se
formavam - o daqueles que queriam vê-lo confortavelmente (tornou-se em
breve o mais penoso para o artista da fome), não por compreensão, mas por
capricho e teimosia; e o daqueles que queriam ir diretamente às estrebarias.
Passada a grande turba, chegavam os retardatários, mas mesmo estes, a quem
nada mais impedia de ficar ali quanto tempo quisessem, apertavam o passo e
iam direto, quase sem olhar para o lado, a fim de chegar em tempo de ver os
animais. E não era um acaso muito freqüente que um pai de família viesse
com seus filhos, apontasse o dedo para o jejuador, explicasse em detalhe do
que se tratava, contasse coisas de anos passados, quando presenciara
apresentações semelhantes, mas incomparavelmente mais grandiosas e as
crianças, em vista do seu preparo insuficiente na escola e na vida,
continuavam sem entender - o que significava para elas passar fome? - mas
traíam no brilho dos seus olhos perscrutadores algo dos novos tempos
vindouros e mais dementes. Talvez - dizia às vezes o jejuador a si mesmo -
tudo melhorasse um pouco, se o local da sua exibição não estivesse tão perto
dos estábulos. Então a escolha seria mais fácil para as pessoas, sem falar que
as exalações das estrebarias, a inquietação dos animais à noite, o transporte
dos pedaços de carne crua para as feras, os rugidos durante a alimentação, o
feriam e deprimiam constantemente. Mas ele não ousava comunicar aquilo à
direção; pois ainda assim agradecia aos animais a multidão de visitantes, entre
os quais se podia encontrar aqui e ali algum destinado a ele. Como saber em
que lugar o esconderiam se ele quisesse lembrar aos outros sua existência e
com isso - pensando bem - que era apenas um obstáculo no caminho aos
estábulos?

De qualquer forma um pequeno obstáculo, um estorvo que se tornava cada vez
menor. As pessoas acostumavam-se à estranheza de se querer chamar a
atenção para um artista da fome nos tempos atuais e esse hábito lavrava a
sentença contra ele. O jejuador podia jejuar tão bem quanto quisesse - e ele o
fazia - mas nada mais podia salvá-lo: passavam reto por ele. Tente explicar a
alguém a arte do jejum! Não se pode explicá-la para quem não a sente. Os
belos cartazes ficaram sujos e ilegíveis, foram arrancados, não ocorreu a
ninguém substitui-los; a pequena tabela com o número dos dias de jejum, que
nos primeiros tempos era cuidadosamente renovada, continuava a mesma há
muito tempo, pois após as primeiras semanas os próprios funcionários não
quiseram mais se dar nem a este pequeno trabalho; assim o artista da fome
continuou jejuando como um dia sonhara, e isso não representava nenhum
grande esforço para ele, tal como havia previsto. Mas ninguém contava os
dias, ninguém, nem mesmo o jejuador conhecia a extensão do seu
desempenho, e seu coração ficou pesado. E quando certa vez, nesse tempo, um
ocioso se deteve diante da jaula, escarneceu da velha cifra na tabela e falou de
embuste, essa foi, à sua maneira, a mais estúpida mentira que a indiferença e a
maldade inata puderam inventar, já que não era o artista da fome quem
cometia a fraude - ele trabalhava honestamente - mas sim o mundo que o
fraudava dos seus méritos.

Passaram-se ainda muitos dias e até isso chegou ao fim. Certa vez um inspetor
notou a jaula e perguntou aos serventes por que deixavam sem uso aquela
peça perfeitamente aproveitável com palha apodrecida dentro; ninguém sabia,
até que um deles, com a ajuda da tabuleta, se lembrou do artista da fome.
Levantaram a palha com ancinhos e encontraram nela o jejuador.

- Você continua jejuando? - perguntou o inspetor. - Afinal quando vai parar?
- Peço desculpas a todos - sussurrou o artista da fome; só o inspetor, que
estava com o ouvido co-lado às grades, o entendia.
- Sem dúvida - disse o inspetor, colocando o dedo na testa, para indicar aos
funcionários, com isso, o estado mental do jejuador. - Nós o perdoamos.
- Eu sempre quis que vocês admirassem meu jejum - disse o artista da fome.
- Nós admiramos - retrucou o inspetor. -Por que não haveríamos de admirar?
- Mas não deviam admirar - disse o jejuador.
- Bem, então não admiramos - disse o inspetor. - Por que é que não devemos
admirar?
- Porque eu preciso jejuar, não posso evitá-lo - disse o artista da fome.
- Bem se vê - disse o inspetor. - E por que não pode evitá-lo?
- Porque eu - disse o jejuador, levantando um pouco a cabecinha e falando
dentro da orelha do inspetor com os lábios em ponta, como se fosse um beijo,
para que nada se perdesse. - Porque eu não pude encontrar o alimento que me
agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum
alarde e me empanturrado como você e todo mundo.
Estas foram suas últimas palavras, mas nos seus olhos embaciados persistia a
convicção firme, embora não mais orgulhosa, de que continuava jejuando.
- Limpem isso aqui! - disse o inspetor, e enterraram o artista da fome junto
com a palha.

Mas na jaula puseram uma jovem pantera. Era um alívio sensível até para o
sentido mais embotado ver aquela fera dando voltas na jaula tanto tempo
vazia. Nada lhe faltava. O alimento de que gostava, os vigilantes traziam sem
pensar muito; nem da liberdade ela parecia sentir falta: aquele corpo nobre,
provido até estourar de tudo o que era necessário, dava a impressão de
carregar consigo a própria liberdade; ela parecia estar escondida em algum
lugar das suas mandíbulas. E a alegria de viver brotava da sua garganta com
tamanha intensidade que para os espectadores não era fácil suportá-la. Mas
eles se dominavam, apinhavam-se em torno da jaula e não queriam de modo
algum sair dali.

Nenhum comentário:

Postar um comentário