segunda-feira, 13 de julho de 2015

A Hora e a Vez dos Clássicos: Casal de Três - Nelson Rodrigues

Autor de A Vida Como Ela É, Engraçadinha, O Óbvio Ululante, entre outros
CASAL DE TRÊS
Nelson Rodrigues

O sogro era um santo e patusco cidadão. Assim que o viu arremessou-se, de
braços abertos:
— Como vai essa figura? Bem?
Filadelfo abraçou e deixou-se abraçar. E rosnou, lúgubre:
— Essa figura vai mal.
Espanto do sogro:
— Por que, carambolas? — E insistia: — Vai mal por quê?
Caminhando pela calçada, lado a lado com o velho bom e barrigudo, Filadelfo foi
enumerando as suas provações, só comparáveis às de Job:
— É o gênio de sua filha. Sou desacatado, a três por dois. Qualquer dia apanho
na cara!
Dr. Magarão assentiu, grave e consternado:
— Compreendo, compreendo. — Suspira, admitindo: — Puxou à mãe. Gênio
igualzinho. A mãe também é assim!
Súbito, Filadelfo estaca. Põe a mão no ombro do outro; interpela-o:
— Quero que o senhor me responda o seguinte: isso está certo? É direito?
O velho engasga:
— Bem. Direito, propriamente, não sei. — Medita e pergunta: — Você quer uma
opinião sincera? Batata? Quer?
— Quero.
E o sogro:
— Então, vamos tomar qualquer coisa ali adiante. Vou te dizer umas coisas que
todo homem casado devia saber.

TEORIA

Entram num pequeno bar, ocupam uma mesa discreta. Enquanto o garçon vai e
vem, com uma cerveja e dois copos, dr. Magarão comenta:
— Você sabe que eu sou casado, claro. Muito bem. E, além da minha experiência,
vejo a dos outros. Descobri que toda mulher honesta é assim mesmo.
Espanto de Filadelfo:
— Assim como?
O gordo continua:
— Como minha filha. Sem tirar, nem pôr. Você, meu caro, desconfie da esposa
amável, da esposa cordial, gentil. A virtude é triste, azeda e neurastênica.
Filadelfo recua na cadeira:
— Tem dó! Essa não! — E repetia, de olhos esbugalhados, lambendo a espuma
da cerveja: — Essa, não!
Mas o sogro insistiu. Pergunta:
— Sabe qual foi a esposa mais amável que eu já vi na minha vida? Sabe? Foi uma
que traía o marido com a metade do Rio de Janeiro, inclusive comigo! — Espalmou a
mão no próprio peito, numa feroz satisfação retrospectiva: — Também comigo! E
tratava o marido assim, na palma da mão!
Uma hora depois, saíam os dois do pequeno bar. Dr. Magarão, com sua barriga
de ópera-bufa e bêbado, trovejava:
— Você deve se dar por muito satisfeito! Deve lamber os dedos! Dar graças a
Deus!
O genro, com as pernas bambas, o olho injetado, resmunga:
— Vou tratar disso!

O DESGRAÇADO

Não mentira ao sogro. Sua vida conjugal era, de fato, de uma melancolia
tremenda. Descontado o período da lua-de-mel, que ele estimava em oito dias, nunca
mais fora bem tratado. Sofria as mais graves desconsiderações, inclusive na frente de
visitas. E, certa vez, durante um jantar com outras pessoas, ela o fulmina, com a
seguinte observação, em voz altíssima:
— Vê se pára de mastigar a dentadura, sim?
Houve um constrangimento universal. O pobre do marido, assim desfeiteado, só
faltou atirar-se pela janela mais próxima. Após três anos de experiência matrimonial, ele
já não esperava mais nada da mulher, senão outros desacatos. E só não compreendia
que Jupira, amabilíssima com todo mundo, fizesse uma exceção para ele, que era,
justamente, o marido. Depois de ter deixado o sogro, voltou para casa desesperado.
Chega, abre a porta, sobe a escada e quando entra no quarto recebe a intimação:
— Não acende a luz!
Obedeceu. Tirou a roupa no escuro e, depois, andou caçando o pijama, como um
cego. E quando, afinal, pôde deitar-se, fez uma reflexão melancólica: há dez meses ou
mesmo um ano que o beijo na boca fora suprimido entre os dois. O máximo que ele,
intimidado, se permitia, era roçar com os lábios a face da esposa. Se queria ser
carinhoso demais, ela o desiludia: “Na boca não! Não quero!”. Outra coisa que o
amargurava era o seguinte: a negligência da mulher no lar. Não se enfeitava, não se
perfumava. Deitado ao seu lado, ele pensava agora, lembrando-se da teoria do sogro: —
“Será que a esposa honesta também precisa cheirar mal?”.

MUDANÇA

Um mês depois, ele chega em casa, do trabalho, e acontece uma coisa sem
precedentes: a mulher, pintada, perfumada, se atira nos seus braços. Foi uma surpresa
tão violenta que Filadelfo perde o equilíbrio e quase cai. Em seguida, ela aperta entre as
mãos o seu rosto e o beija na boca, num arrebatamento de namorada, de noiva ou de
esposa em lua-de-mel. Ele apanha o jornal, que deixara cair. Maravilhado, pergunta:
— Mas que é isso? Que foi que houve?
Jupira responde com outra pergunta:
— Não gostou?
Ele senta, confuso:
— Gostar, gostei, mas... — Ri: — Você não é assim, você não me beija nunca.
Jupira tem um gesto de uma petulância que o delicia: vem sentar-se no seu colo,
encosta o rosto no dele. Filadelfo é acariciado. Acaba perguntando:
— Explica este mistério. Aconteceu alguma coisa. Aconteceu?
Ela suspira:
— Mudei, ora!

SOFRIMENTO

A princípio, Filadelfo conjeturou: “É hoje só”. No dia seguinte, porém, houve a
mesma coisa. Ele coçava a cabeça: “Aqui há dente de coelho!”. Coincidiu que, por essa
ocasião, os seus sogros aparecessem para jantar. Dr. Magarão, enquanto a mulher
conversava com a filha, levou o genro para a janela: “Como é? Como vai o negócio
aqui?”.
Filadelfo exclama:
— Estou besta! Estou com a minha cara no chão!
O velho empina a barriga de ópera-bufa:
— Por quê?
E o genro:
— Tivemos aquela conversa. Pois bem. Jupira mudou. Está uma seda; e me trata
que só o senhor vendo!
Ao lado, mascando o charuto apagado, o velho balança a cabeça:
— Ótimo!
— O negócio está tão bom, tão gostoso, que eu já começo a desconfiar!
O sogro põe-lhe as duas mãos nos ombros:
— Queres um conselho? De mãe pra filho? Não desconfia de nada, rapaz. Te
custa ser cego? Olha! O marido não deve ser o último a saber, compreendeu? O marido
não deve saber nunca!

LUA-DE-MEL

Seguindo a sugestão do sogro, ele não quis investigar as causas da mudança da
esposa. Tratou de extrair o máximo possível da situação, tanto mais que passara a viver
num regime de lua-de-mel. Dias depois, porém, recebe uma minuciosíssima carta
anônima, com dados, nomes, endereços, duma imensa verossimilhança. O missivista
desconhecido começava assim: “Tua mulher e o Cunha...”. O Cunha era, talvez, o seu
maior amigo e jantava três vezes por semana ou, no mínimo, duas, com o casal. A carta
anônima dava até o número do edifício e o andar do apartamento em Copacabana onde
os amantes se encontravam. Filadelfo lê aquilo, relê e rasga, em mil pedacinhos, o papel
indecoroso. Pensa no Cunha, que é solteiro, simpático, quase bonito e tem bons dentes.
Uma conclusão se impõe: sua felicidade conjugal, na última fase, é feita à base do
Cunha. Filadelfo continuou sua vida, sem se dar por achado, tanto mais que Jupira
revivia, agora, os momentos áureos da lua-de-mel. Certa vez jantavam os três, quando
cai o guardanapo de Filadelfo. Este abaixa-se para apanhar e vê, insofismavelmente,
debaixo da mesa, os pés da mulher e do Cunha, numa fusão nupcial, uns por cima dos
outros. Passa-se o tempo e Filadelfo recebe a notícia: o Cunha ficara noivo! Vai para
casa, preocupadíssimo. E, lá, encontra a mulher de braços, na cama, aos soluços. Num
desespero obtuso, ela diz e repete:
— Eu quero morrer! Eu quero morrer!
Filadelfo olhou só: não fez nenhum comentário. Vai numa gaveta, apanha o
revólver e saí à procura do outro. Quando o encontra, cria o dilema:
— Ou você desmancha esse noivado ou dou-lhe um tiro na boca, seu cachorro!
No dia seguinte, o apavorado Cunha escreve uma carta ao futuro sogro, dando o
dito por não dito. À noite, comparecia, escabreado, para jantar com o casal. E, então, à
mesa, Filadelfo vira-se para o amigo e decide:
— Você, agora, vem jantar aqui todas as noites!
Quando o Cunha saiu, passada a meia-noite, Jupira atira-se nos braços do marido:
— Você é um amor!

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A Rede Globo produziu a série A Vida como Ela É, em 1996. Casal de Três foi um dos episódios. 


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