quinta-feira, 31 de julho de 2025

Divagações sobre um poema

Eu lembrei desse poema. Mas não lembrei dos versos. Lembrei da feitura dele. E dele como algo bonito que fiz (mesmo sem recordar os versos). Me ficou na cabeça sua criação. Sua maquinação. Porque o escrevi em uma praça, num final de semana. Essa praça fica ao lado de um lar de idosos. Na frente do lar de idosos (ou seja, no outro lado da rua) tem uma creche. E eu me apercebi disso quando estava nessa pracinha. Com meu filho, que brincava na areia, que brincava no escorregador, que brincava no balanço... O lugar fica muito próximo a casa de Erico Verissimo, onde hoje mora seu filho também ilustre, Luiz Fernando Verissimo. O nome da praça é Mafalda Verissimo por essa razão. E eu escrevi o poema na cabeça primeiro. Com essa perplexidade me latejando. Como pode? Uma criança, quem sabe um dia, vai atravessar essa rua. Fui maquinando esse destino possível. Esse atravessar de rua que é uma vida inteira. Esse atravessar de rua inevitável, porque a velhice é o futuro. Quando cheguei na minha casa, as palavras escorriam pelos dedos. Uma a uma. Ágeis. E iam se enfileirando, aos trancos, sem pedir licença. Chegou um ponto que elas tomaram tento e se organizaram meio que sozinhas, como uma comunidade. Foi engraçado. Nessa hora, achei melhor deixá-las. Abandoná-las. E assim foi. Mesmo que elas acabem em um livro (como foi o caso), não há mais o que fazer com elas, pensei. Porque as palavras também atravessam a rua. E vão parar nesse mesmo asilo. Às vezes, alguém pode lembrar delas. E visitá-las. Mas nem sempre isso acontece.

A vida é assim mesmo.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Erico Verissimo sobre o ato de escrever


Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a idéia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, trazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.

------------------

Erico Verissimo, em Solo de Clarineta, Vol. 1.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Um relógio analógico pode mudar sua vida


Vivemos a era da ansiedade. As dores do mundo estão relacionadas ao excesso de informações e estímulos a que estamos submetidos. Tudo é smart e tudo está o tempo todo nos conectando. O interruptor não desliga. E isso tem ou terá um preço logo ali na frente.

É nesse contexto, que um acessório pode ajudar a tirar o peso dos dias. Um relógio analógico pode mudar sua vida. E pra melhor.

Ver as horas no celular ou smartwatch nunca é só ver as horas. É um convite a acessar outros aplicativos e funcionalidades, que nos levam a outros e outros e outros. 

O relógio pode acabar com esse ciclo de distrações e colocar o tempo, que é tão valioso para ser gasto à toa, no seu devido lugar. 

Sem contar que esse "adorno" no pulso é muito mais que uma mera jóia ou produto de moda. São peças carregadas de história, peculiaridades e curiosidades. 

Nos últimos anos, há um certo modismo em torno da relojoaria - ou horologia, como dizem os mais entendidos. Se será passageiro ou não, não se sabe. Mas tem muito mais gente falando e se interessando sobre o assunto.

Então, é um bom momento para ser um pouco mais analógico, mais offline, em um mundo cada vez mais online e digital. 

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Estrela Distante - Roberto Bolaño (trecho)

 


O menino se chamava Lorenzo, creio, não tenho certeza, e esqueci o sobrenome, mas outros o lembrarão, e gostava de brincar de subir em árvores e nos postes de alta-tensão. Um dia ele subiu num desses postes e recebeu um choque tão forte que perdeu os dois braços. Tiveram de amputá-los quase na altura dos ombros. Assim, Lorenzo cresceu no Chile e sem braços, o que por si só já o deixava numa situação bastante desvantajosa, mas ainda por cima ele cresceu no Chile de Pinochet, o que transformava qualquer situação desvantajosa em desesperadora. Mas isso ainda não era tudo, pois ele logo descobriu que era homossexual, o que transformava a situação desesperadora em inconcebível e inenarrável.  

Com todas essas condicionantes, não era de estranhar que Lorenzo virasse artista. (Que mais poderia ser?) Mas é difícil ser artista no Terceiro Mundo quando se é pobre, sem braços e ainda por cima veado. Por isso, Lorenzo se dedicou, durante algum tempo, a outras coisas. Estudava e aprendia. Cantava nas ruas. E se apaixonava, pois era um romântico incurável. Suas desilusões (para não falar nas humilhações, dos desprezos, das ofensas) foram terríveis, e um dia – dia riscado com pedra – decidiu se suicidar. Numa tarde de verão especialmente triste, quando o sol se escondia no oceano Pacífico, Lorenzo saltou para o mar de uma rocha usada exclusivamente por suicidas (coisa que existe em qualquer trecho do litoral chileno que se preze). Afundou como uma pedra, com os olhos abertos, e viu a água ficando cada vez mais escura e as borbulhas que saíam da sua boca e depois, com um movimento de pernas involuntário, voltou à tona. As ondas não permitiram que visse a praia, tão somente as rochas e à distância o mastro de algumas embarcações de passeio ou de pesca. Depois voltou a afundar. Nesse momento também não fechou os olhos: moveu a cabeça com calma (calma de um anestesiado) e buscou com os olhos alguma coisa, qualquer que fosse, mas que fosse bela, para retê-la no momento final. Mas o negror vendava qualquer objeto que pudesse descer junto com seu corpo até as profundezas, e ele nada viu. Então, sua vida, como se costuma dizer, desfilou diante de seus olhos como num filme. Alguns trechos eram em preto e branco e outros em cores. O amor de sua pobre mãe, o orgulho de sua pobre mãe, a exaustão de sua pobre mãe ao abraçá-lo à noite, quando tudo nos vilarejos pobres do Chile parecia estar por um fio (em branco e preto), os tremores, as noites que urinava na cama, os hospitais, os olhares, o zoológico de olhares (em cores), os amigos que compartilham o pouco que têm, a música que nos consola, a maconha, a beleza revelada em locais inverossímeis (em branco e preto), o amor perfeito e breve como um soneto de Góngora, a certeza fatal (mas cheia de raiva dentro da fatalidade) de que só se vive uma vez. Tomado de uma súbita coragem, decidiu que não ia morrer. Conta-se que disse é agora ou nunca, e voltou à superfície. A subida lhe parecia interminável, manter-se à tona, quase insuportável, mas conseguiu. Naquela tarde, ele aprendeu a nadar sem braços, como uma enguia ou uma serpente. Matar-se, disse, nessa conjuntura sociopolítica, é absurdo e redundante. Melhor se tornar um poeta secreto.   

-----------------------

Trecho de Estrela Distante, romance de Roberto Bolaño (Folha de São Paulo, 2012).

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Quando a menina dorme



Mostro para minha filha a Lua desperta

Balbucio uma canção de ninar

Construo cada versinho

Como quem ergue um prédio alto

Para protegê-la da próxima inundação

Ela não dorme

Ela sorri e me mira os olhos

Que são seus

Aos poucos, ela desiste

E a Lua vai embora

Mas ainda está lá

Como uma música que foi feita para durar

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Extinção


Antes de existir algo

Existia a Natureza

Que assistiu aos dinossauros

E sua derrocada

A Natureza viu o primeiro homem

Presenciou suas descobertas

E todas as guerras que ele criou

Os meninos orfãos

Que caminharam por Sua terra arrasada

Hoje estão reunidos

Para construir muralhas

E sistemas de proteção

____Contra as águas

____Contra o Sol

____Contra o vento

____Contra o fogo

Eles não sabem

Mas também estão sendo observados pela Natureza

Com indiferença


quinta-feira, 10 de julho de 2025

A morte em proparoxítonas - Ruy Castro

"Ouve meu cântico, quase sem ritmo/ Que a voz de um tísico, magro, esquelético/ Poesia ética em forma esdrúxula/ Feita sem métrica com rima rápida.// Amei Angélica, mulher anêmica/ De cores pálidas e gestos tímidos/ Era maligna e tinha ímpetos/ De fazer cócegas no meu esôfago.// Em noite frigida, fomos ao Lírico/ Ouvir o músico, pianista célebre/ Soprava o zéfiro, ventinho úmido/ Então Angélica ficou asmática.// Fomos ao médico de muita clínica/ Com muita prática e preço módico/ Depois do inquérito descobre o clínico/ O mal atávico, mal sifilítico.

"Mandou-me célere comprar noz vômica/ E ácido cítrico para o seu fígado/ O farmacêutico, mocinho estúpido/ Errou na fórmula, fez despropósito.// Não tendo escrúpulo, deu-me sem rótulo/ Ácido fênico e ácido prússico./ Corri mui lépido mais de um quilômetro/ Num bonde elétrico de força múltipla.// O dia cálido deixou-me tépido/ Achei Angélica já toda trêmula/ A terapêutica dose alopática/ Lhe dei em xícara de ferro ágate.// Tomou num fôlego, triste e bucólica/ Essa estrambótica droga fatídica/ Caiu no esôfago, deixou-a lívida/ Dando-lhe cólica e morte trágica.

"O pai de Angélica, chefe do tráfego/ Homem carnívoro, ficou perplexo./ Por ser estrábico, usava óculos/ Um vidro côncavo, e o outro convexo.// Morreu Angélica, de um modo lúgubre/ Moléstia crônica levou-a ao túmulo/ Foi feita a autópsia, todos os médicos/ Foram unânimes no diagnóstico.// Fiz-lhe um sarcófago assaz artístico/ Todo de mármore da cor do ébano/ E sobre o túmulo uma estatística/ Coisa metódica como "Os Lusíadas".// E, numa lápide paralelepípedo/ Pus esse dístico, terno e simbólico:/ ‘Cá jaz Angélica, moça hiperbólica/ Beleza helênica, morreu de cólica.’"

O que é isso? Uma modinha, "O drama da Angélica", de certos Barreto e Lubiti, gravada em 1942 pela famosa dupla sertaneja Alvarenga e Ranchinho. A letra, toda em proparoxítonas, é uma obra-prima. O vídeo está no YouTube —não perca.

Sim, a sofrência das duplas sertanejas brasileiras já foi assim.

------------------

Crônica de Ruy Castro, publicada na Folha de São Paulo, em 5/5/2025

------------------

Drama de Angélica (Alvarenga/M.G.Barreto)


terça-feira, 1 de julho de 2025

Anti ajuda

Não acredite em você

Não curta a vida

Porque a vida não é curta

Tudo é por acaso

E o Sol não brilha para todos


Você não é mais forte 

Do que imagina

Nenhum lugar-comum

Te ensina


Se você pode sonhar

Não pode realizar

Não seja feliz

Nem seja foda


Saia da frente

Não dê o primeiro passo

Tudo pode te deter

E o sucesso não quer te reconhecer


Sempre é tarde

Sempre é tarde

Sempre é tarde


quarta-feira, 25 de junho de 2025

O feitiço que desgraçou Julio Reny


 "Eu sou um pobre diabo e um pobre desgraçado. Perdi a chance da minha vida. Eu não quero mais falar desse maldito show e dessa maldita noite, que eu vou levar pro túmulo. Como dor no coração. E espero que a vida eterna me cure dessa dor e desse meu fracasso nacionalmente. Por causa dessa maldita noite, do show do Unificado, no Gigantinho. O cara que fez o feitiço morreu já. E Deus que me perdoe, desse eu não tenho piedade: que arda no fogo do inferno! O cara quis me matar por uma coisa que eu não fiz contra ele. Desgraçou a minha vida e minha carreira. Tanto que eu sou um maldito até hoje. Às vezes, levo meia dúzia só em um bar. E toco por cem reais, sabe? Ou menos até, quando estou desesperado. Eu sou um pobre diabo e um desgraçado por causa daquela noite no Unificado. Daquele maldito que desgraçou minha existência e minha carreira. É isso. E ponto final".

-------------------

Trecho extraído do documentário Amor e Morte em Julio Reny (2025), com direção de Fabrício Cantanhede.

-------------------

A referência é ao show Rock Unificado, que foi o motivador da coletânea Rock Grande do Sul (1985, gravadora BMG). O disco revelou ao resto do país bandas como Engenheiros do Hawaii, TNT, Replicantes, Garotos da Rua e De Falla. Julio Reny ficou fora do álbum.  

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Tragédia humana

Desde que o mundo é mundo, o ser humano tem a pretensão de domar a Natureza. Veja o trágico caso do Rio Grande do Sul. Uma enchente histórica destruiu uma boa parte do seu território, em maio de 2024, ocasionando dezenas de mortes e desaparecimentos. Empreendimentos, moradias e sonhos destruídos. Mais de 470 municípios afetados direta ou indiretamente pela força das águas. Não há consolo possível para a população.  

Conforme o estudo "As enchentes no Rio Grande do Sul: lições, desafios e caminhos para um futuro resiliente", publicado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), o desastre foi causado pela maior chuva já observada no país.   

O recado da Natureza não pode ter sido mais claro. Aquele espaço é seu, das suas águas. Pouco importa o debate dos pequenos homens, que buscam culpados pela catástrofe. A Natureza segue seu fluxo.  

A enchente escancarou essa tragédia humana, que é em tentar domesticar o que não pode ser domesticado. Como o caso da ponte que foi levada pela correnteza no limite das cidades de Marques de Souza e Travesseiro, em 2024. Bastou um breve período de calmaria e os homens foram lá e ergueram uma nova, no mesmo lugar. Por necessidade e até de forma instintiva. O que fez a Natureza? Voltou a derrubá-la no ano seguinte.  

No RS, governantes e sociedade civil lutam para ludibriar a Natureza, reconstruindo infraestruturas mais resilientes, projetando sistemas para conter quem de fato é a dona das terras gaúchas. Desenham grandes obras de engenharia: muralhas, diques, casas de bombas. Planejam uma revolução. Essa cruzada tem só um objetivo: não ceder ou se dobrar aos caprichos da Natureza.  

A fé dos homens é comovente. Porém, é digna de um Sísifo, que na mitologia grega foi condenado pelos deuses a empurrar eternamente uma pedra até o topo de uma colina, apenas para vê-la rolar de volta. Falando em devoção. Um padre de Porto Alegre – que deveria ser um homem dedicado à Natureza – afirmou, em entrevista a uma rádio, que jamais sairá da Ilha da Pintada, bairro aguadiço de Porto Alegre. Para ele é indiferente o número de alagamentos ou desastres que aconteceram – como a enchente de 1941 – e ainda possam vir a ocorrer. No microfone da imprensa, o pároco não clamou aos céus por um milagre e, sim, bradou e rogou por uma solução terrena, sendo que ela está já posta.  

Respeitar a Natureza, simplesmente.

terça-feira, 27 de maio de 2025

E dale pós-punk em meu coração

 


Transmission - Joy Division

Winning - The Sound

Eighties - Killing Joke

Swamp Thing - The Chameleons

Natural's Not in It - Gang of Four

Rise - PIL

Mannequin - Wire

Totally Wire - The Fall

Ghost Rider - Suicide

Carry Home - The Gun Club

Smither-Jones - The Jam

Mr. Alphabet Says - The Glove 

Bring on the Dancing Horses - Echo and the Bunnymen

Lights Go Out - New Model Army

Trophy - Siouxsie and the Banshees

I'm in Love With a German Film Star - The Passions

Dark Entries - Bauhaus

That's When I Rech for my Revolver - Mission of Burma

Nightshift - The Names

Shot By Both Sides - Magazine

Promise - Violent Femmes

Talk About The Passion - REM

Well I Wonder - The Smiths

Things We Never Did - Sad Lovers and Giants

Sister Europe - The Psychedelic Furs

terça-feira, 13 de maio de 2025

Tanto Amor - Luiz Tatit

 


Tanto Amor

Composição: Ricardo Breim / Luiz Tatit


Foi tanto amor

E começou pulsando em mim

Um dia não, um dia sim

E em pouco tempo, toda hora era hora

E os segundos, um por um

Eram pra nós

A nossa vez

Eternidade que jamais satisfez


Foi tanto amor

Foi tanto amor que transbordou

Deixou a casa e se espalhou

Tomou as ruas e atraiu todos olhares

E os ouvidos, um por um

Mostrando assim

A hora e a vez

Intensidade sem qualquer sensatez


Quem nunca viu amor ao vivo veio ver

Quem tinha visto não sabia o que dizer

Quanto mais via mais queria renascer

Só por amor nada mais só por amor

Quem não amava há muito tempo se empolgou

Quem tinha muito o que fazer não trabalhou

Toda São Paulo que não pára então parou

Só por amor nada mais só por amor


Foi tanto amor

E no entanto nem parecia

Em poucos dias, para nós

Da paz ao caos

Era um segundo só

Era apostar

Na nossa vez

No risco, no cio, na embriaguês


Foi tanto amor

E foi tanto que nem cabia

E noite e dia, para nós

Do lar ao bar

Era um segundo só

Mas mesmo assim

Quanta avidez!

Nos gestos, nas cenas que a gente fez


E era um tal de ver pra crer

De olhar pra nós e emudecer

De achar que isso é que é viver

E de sentir enfim o que é o prazer

Até pra quem tudo é pornô

Naquele instante se encontrou

Toda cidade se integrou

E aplaudiu o amor que transbordou


-------------------------------------

Faixa 11 do disco O Meio, lançado em novembro de 2000

-------------------------------------

vozes: Luiz Tati / Ná Ozzetti

violão: Swami Junior

piano: Ricardo Breim 

violinos: Anderson Rocha / Alex Braga 

viola: Fábio Tagliaferri 

cello: Marisa Silveira

baixo acústico: Mário Andreotti

arranjo de cordas: Fábio Tagliaferri 

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Aconteceu no Parque São Sebastião

Foi uma briga e tanto. Tem vezes que só a violência resolve e acalma as coisas. Meu pai não era flor. O outro homem envolvido também não. Só que meu pai era meu pai. Eu não tinha o que fazer senão defendê-lo. Meu velho estava sentado. Apreensivo. Ouvindo as ofensas. O outro atravessando a rua com uma faca em punho. Me viu. Ameaçou. Negaceou. Blefou. Entendeu que poderia ser dois contra um. Avaliou. Deu meia volta. Eu calado. Olhos fixos. Por uma fração de segundo, refleti. Estou de Havaianas, é ruim brigar assim. Tinha vinte e tantos anos. Nessa idade não se pensa muito. Seis passadas largas e estava perto dele. Foi muito rápido. Ele perdeu a faca. Desceu a rua Ministro de Oliveira Lima aos trancos e barrancos. Entrou na rua Guará em fuga. Cambaleava. Acessou o Mercado Guará derrubando tudo e todos. Eu logo atrás, com um cavalete de propaganda, aqueles de madeira e chapa de metal, do próprio mercadinho. Costela em promoção: R$ 16,90 o quilo. Batia. Sobrou pra quem estava perto. E pra mim também. Meu pai tentando brigar, me ajudar. Muita gente em volta. Cuidado, tem criança! Meu Deus, alguém segura ele! Em minutos, homens formaram um cordão humanitário que continha a todos. Eu com as mãos lavadas de sangue. Me desvencilhei. Ele tomou uma facada! O outro atirado perto do açougue. Era acudido.  Tossia. Não tinha mais o que fazer ali. Subi a Ministro de Oliveira Lima sozinho. Meu avô era vivo ainda e me esperava na entrada do prédio. Tá tudo bem? Sim, vô, tá tudo bem. Morávamos todos juntos. Baixou ou subiu a pressão dele. Minha mãe cuidando dos dois. Um era a pressão arterial. O outro era simplesmente seu filho. Quis saber o que houve. Vizinhos nas janelas e nos apartamentos próximos também queriam. Auscultavam. De onde esse sangue? Ele foi me defender, explicou meu pai esbaforido. Já disse que tá tudo bem. Cortei a mão com aquele cavalete. Que cavalete? Disseram que foi uma facada. Não foi. Mas tá um corte feio. Minha namorada surge na cena. Cara de nojo. Muita raiva. Explode. Eu não acredito que tu tava brigando na rua?! É que ele foi... Deixa pai. E a guria deu às costas. Foi embora me xingando e dizendo que aquele bairro era uma vila e que essa gentinha da vizinhança era uma chinelagem e outras tantas coisas. Alguém leva ele no hospital. Não precisa. Precisa, sim! E tem que ir na delegacia dar queixa. Ih... a polícia tá aí. Viatura na frente do prédio. Giroflex. Vizinhos na rua. Crianças me cumprimentando. Crianças brincando de luta livre. Amigos perguntando se estava tudo bem. Amigos prometendo que assim não ia ficar. Dois brigadianos. Atentos. O outro já estava dentro da viatura. Banco de trás. Algemado. Curvado. Tossia. Ele admitiu que ameaçou o senhor e deu uma facada no seu filho. Eu já não tinha saco pra desmentir. Vocês têm que ir na delegacia agora, ali na DP do Sarandi, registrar o B.O. Não temos como levar vocês agora. Só tem uma viatura disponível. Vocês têm carro? Fomos. Meu pai, guiando o Uno Mille. Ainda tenso. Quis conversa. Essa DP é ali perto do Big, conheço o delegado. Estudei com ele. Se é que é o mesmo delegado ainda... Não dei assunto. Registrada a ocorrência. Uma segunda viatura apareceu e me levou ao Hospital Cristo Redentor. O médico olhou a ficha com enfado. Hum... briga com faca. Uns pontos nessa mão e vai ficar tudo bem. Não falei nada. Só virei o rosto para não ver. Tem medo de agulha? Não respondi, porém, ficou claro que sim. Mas de faca tu não tem né? O doutor fez o que tinha que fazer. Logo, a enfermeira vem aí e faz o curativo e tu tá liberado. Fui pra casa. Tinha um casamento para ir com minha namorada – se é que ainda era minha namorada - e estava muito atrasado. Minha mãe já tinha preparado o terno. Ela já foi, meu filho. Eu imaginei. Tu vai ir mesmo assim? Vou. Nossa, ainda cabe em ti esse terno! Tu não mudou nada... Faz o nó da gravata pra mim? Com a mão enfaixada tá difícil. Faço, filho. Dei um beijo na testa da velha. Tomei um táxi e fui. Perdi a cerimônia na igreja. Cheguei a tempo da festa. Minha namorada não teve reação alguma quando me viu. Fazia questão de olhar para o nada. Falava pouco e só com sua mãe e seu padrasto. Era como se eu não estivesse ali. Assim seguiu, até que os noivos, um casal de amigos de infância dela, se aproximaram de nossa mesa. Minha namorada mostrou os dentes. Abraços e muitos votos de felicidade. A cerimônia foi emocionante, disseram. Concordei. Após as frivolidades do momento, o noivo perguntou. E essa mão aí? Que que houve? Não titubeei. Acredita que cortei a mão fazendo um churrasco? Ele ficou surpreso, mas pareceu acreditar.  

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Depois de tudo ainda ser feliz

Não existe acerto de contas com a vida. O que está feito, está feito. Nosso passado é uma parte nossa que morreu. Por isso, tanta gente tem saudade. Por isso, há tanto rancor. Por isso, esse arrependimento que sufoca. 

Eu pensava nisso, enquanto ela falava de como tudo poderia ter sido diferente. Falava dela, falava de mim, no passado. Sempre no passado. "Tu lembra aquela vez, na parada, esperando o Sans Succi? Tava um frio de rachar. Hoje, não tem mais um frio como aquele". Era como se falasse de dois mortos. "Claro que lembro. Só que tua vida seria bem diferente. Não sei se pra melhor". "Minha vida seria mais feliz, Lucas".

E a dor era só dela. De mais ninguém. Minha dor tinha ficado pra trás, morta. Ela deixou sua caminhonete Audi num estacionamento da João Pessoa com a República e entrou no meu Uno Mille. Parecia contente, mesmo triste. A alegria é tão fugaz... Por algumas horas fomos o que poderíamos ter sido.

Quando já não havia mais o que lembrar, nem o que dizer, nos despedimos. Ela fez menção em falar algo. Parou sua caminhonete e abriu o vidro. Me aproximei. Mas ela desistiu e foi embora pela segunda vez.

"O senhor é um homem de sorte", comentou, com um sorriso, o manobrista do estacionamento.

quinta-feira, 20 de março de 2025

Quando a sorte muda

O gerente do restaurante tava sempre de cara amarrada. Se dirigiu poucas vezes a mim de forma amistosa. Sempre profissional. Sempre no limite da polidez. Uma dia, logo na chegada ao cartão-ponto, me abordou na frente de todo mundo e mandou fazer a barba. "Garçom tem que ter a cara limpa". "Mas não tenho gilete...". "Pega uma na Panvel". Noutro, também na chegada ao ponto, mandou cortar o cabelo. "Esse teu cabelo tá começando a crescer. Corta hoje mesmo". E lá fui eu no barbeiro. Teve uma vez que o pessoal estava indeciso sobre quem deveria cobrir a ausência inesperada de um colega. Era uma decisão dura. Afinal, 14 horas de trabalho em pé não é bolinho. Aleguei que tinha aula e não seria possível. "Que tu quer com estudo? Vai ganhar dinheiro e ajudar tua família, rapaz". Era dureza. Tranquei a Unisinos. E segui no restaurante. O dinheiro vai prendendo a gente. Funcionários comentavam que faltava era uma mulher pro gerente. Ele era apaixonado pela garçonete Rita, que era casada e gostava mim. A gente, lógico, aprontava. Então, na dúvida, quem trabalhava dobrado era eu. Foi assim no domingo do dia dos pais (não dei a mínima) e no domingo do dia das mães. Aí me doeu. Minha mãe e vó eram quase tudo que tinha. Questionei o motivo. "Foi sorteio". "Mas como? Se dobrei no dia dos pais?". "Sorteios são assim. Tu deu azar. Pensa no lado bom, tu vai ganhar dobrado". Inferno! A coisa só mudou quando Rita resolveu que seguiria casada. "Chega dessa vidinha". Alegou que tinha que valorizar quem tava do lado dela de verdade. O gerente desistiu, então. Depois dessa, volta e meia, ele puxava assunto comigo. Perguntava dos meus estudos. Quando eu voltaria pra faculdade, falava do Inter e de outros assuntos. Ele, que nunca faltava, que nunca fazia nada além de trabalhar, até resolveu ir num show. "Amanhã, vou no Simply Red com uma mulher que conheci na internet". "Ah, é?! E quem vai ficar no teu lugar?". "Não quero nem saber, Lucas. Eles que se fodam e deem um jeito". As pessoas mudam. Assim como a sorte muda. Eu, enquanto segui no restaurante, nunca mais fui sorteado para dobrar.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Cinco ótimos livros desagradáveis de ler


A ilha de Sacalina - Tchekhov

Um livro-reportagem antes de existirem livros-reportagem. Escrito em 1890 de forma seca. Como alguém que "apenas" observa a rotina da ilha-presídio russa. 

Ensaio sobre a cegueira - José Saramago

Saramago conseguiu imaginar uma história distópica com a premissa da cegueira como um vírus que se espalha por todo uma cidade. Um livro apavorante do início ao fim. 

Você vai voltar pra mim - B. Kucinski

Todos os contos tem em comum personagens da ditadura militar. Kucinski passa longe da pieguice ou moralismos. Suas histórias breves são narradas com crueza.

É isto um homem? - Primo Levi

Possivelmente, o livro mais triste e dolorido da história. Levi conta seus dias (e de outros judeus que conhece) como prisioneiro de Auschwitz. 

Pssica - Edyr Augusto

Romance curto e escrito de forma frenética. Uma trama violentíssima e muito bem amarrada, onde nada que acontece é gratuito.


domingo, 9 de fevereiro de 2025

Ensaio sobre a cegueira - José Saramago (trecho)

Olhando a situação a frio, sem preconceitos nem ressentimentos que sempre obscurecem o raciocínio, havia que reconhecer que as autoridades tiveram visão quando decidiram juntar cegos com cegos, cada qual com seu igual, que é a boa regra da vizinhança, como os leprosos, não há dúvida, aquele médico lá ao fundo está no certo quando diz que nos temos de organizar, a questão, de facto, é de organização, primeiro a comida, depois a organização, ambas são indispensáveis à vida, escolher umas quantas pessoas disciplinadoras para dirigirem isto, estabelecer regras consensuadas de convivência, coisas simples, varrer, arrumar e lavar, disso nos não podemos queixar, até nos mandaram sabão, detergentes, manter a cama feita, o fundamental é não perdermos o respeito por nós próprios, evitar conflitos com os militares que cumprem com o seu dever vigiando-nos, para mortos, já temos que baste, perguntar quem é que conhece aqui histórias que queira contar ao serão, histórias, fábulas, anedotas, tanto faz, imagine-se a sorte que seria saber alguém a Bíblia de cor, repetíamos tudo desde a criação do mundo, o importante é que ouçamos uns aos outros, pena não haver um rádio, a música sempre foi uma grande distracção, e íamos acompanhando as notícias, por exemplo, se se descobrisse a cura da nossa doença, a alegria que não seria aqui.  

--------------------------

Trecho de Ensaio sobre a cegueira (2ª edição, Companhia das Letras, 2017)