sábado, 8 de novembro de 2025

Além das manchetes: O caso Dâmaris Vitória Kremer


Por Lucas Barroso

Se você, no ano corrente de 2025, for pesquisar o caso Dâmaris Vitória Kremer em sites de busca ou redes sociais verá o seguinte. 

Presa injustamente por seis anos, jovem morre após absolvição. 

Há variações dessa chamada, como algumas citações a sua doença terminal, câncer do colo do útero. O tema, em quase sua totalidade, foi tratado assim pela opinião pública. O resumo aponta que uma jovem gaúcha foi presa, sofreu no cárcere com uma doença grave e, ao ganhar a liberdade, após ser inocentada, faleceu. E, de fato, não existem erros factuais nessas reduções jornalísticas.  

A cronologia dos acontecimentos aponta que, Dâmaris, com 19 anos à época, foi presa em 8 de agosto de 2019, pelo envolvimento no homicídio qualificado de Daniel Gomes Soveral (34 anos). O assassinato em questão foi cometido por Henrique Kauê Golmann (com 25 anos na ocasião), então, namorado de Dâmaris, na cidade de Salto do Jacuí.  

Conforme o noticiário de repercussão em todo o país, "a defesa de Damaris sustenta que ela apenas contou a Henrique que teria sido estuprada por Daniel. Em retaliação, ele teria assassinado o homem e ateado fogo no corpo e no veículo". 

Quem a defendeu foi a advogada Rebeca Canabarro, que ganhou notoriedade por, diante dos jurados, se emocionar com a história da sua cliente, ao ponto de não conter as lágrimas. Essa imagem, extraída da audiência, veio a público e contribuiu para a comoção nacional.  

Dâmaris seguiu no cárcere até 18 de março de 2025, quando teve sua pena convertida em prisão domiciliar, em razão do agravamento de seu câncer. "Fiz petições manifestando que ela estava tratando câncer e precisava transitar por hospitais. Ainda, havia a oscilação do peso. Pedi remoção da tornozeleira, mas nenhum desses pedidos foi atendido. Ela foi submetida a raio-x, exames, tudo com tornozeleira", relatou a advogada. 

Nesse contexto, o caso Dâmaris foi, enfim, a julgamento, no dia 13 de agosto de 2025, pela participação no assassinato de Daniel. O júri, composto por sete pessoas, absolveu-a de todas as imputações que lhe foram dirigidas na denúncia.  

No dia 26 de outubro de 2025, Dâmaris Vitória Kremer morreu. 

Entretanto, alguns pontos de sombra nessa trágica história passaram desapercebidos pela opinião pública. Fatos que vão além das manchetes, da morosidade do Judiciário e da precariedade do sistema penal gaúcho, onde Dâmaris padeceu. Cabe elencá-los, pois são relevantes e, em sua maioria, constam em documentos processuais do caso. 

O estupro 

O crime sexual, reforçado pela linha de defesa da réu, é citado no processo. 

"... há claros indicativos de que os representados planejaram e executaram a morte da vítima Daniel, inclusive com apoio material de pessoas desta cidade, e que a motivação do crime seria um suposto abuso praticado pela vítima em face da acusada Damaris Vitória. Sobre o ponto, é o que se pode inferir do conteúdo das conversas entre a mesma e o representado Henrique Kauê (...) extraída dos celulares apreendidos". 

Contudo, as treze testemunhas, muitas delas ligadas a Daniel, não citam essa hipótese. Afirmam que ele estava apaixonado por Dâmaris e era correspondido, abrindo mão de compromissos pessoais e familiares para estar com ela.  

Daniel e Dâmaris 

Conforme relatos colhidos pela polícia com as testemunhas, e corroborados pelas mesmas no âmbito da Justiça, eles se conheceram na casa noturna Class, no município de Bento Gonçalves, cidade onde residia Daniel. Dâmaris atuou como garota de programa no local. 

A morte de Daniel 

As informações divulgadas na ocasião do assassinato, via imprensa regional, foram as seguintes.  

"De acordo com a Polícia Civil e o Instituto Geral de Perícias (IGP), o corpo de Soveral estava parcialmente queimado e ao lado de um veículo Fiat Siena, placas de Bento. O corpo foi localizado na noite de sexta-feira, 30 de novembro, por volta das 19h30min, em uma estrada de chão. De acordo com testemunhas, no dia do crime, um veículo passou em alta velocidade pela RST-481. Dentro do automóvel havia quatro pessoas. Na cidade, o veículo teria estacionado em um bar e logo após retornado para o local onde o corpo foi encontrado. Soveral foi alvejado com um tiro de arma de fogo na cabeça". 

O processo judicial, calcado na investigação da polícia, indiciou Henrique, Dâmaris e uma terceira pessoa, Wellington Pereira Viana, de alcunha Mamute, por homicídio qualificado. 

Delator 

Para que a Justiça chegasse a essa conclusão foi fundamental a delação de Kase Jhones, que era uma das quatro pessoas vistas, por testemunhas e câmeras de vídeo, no interior do veículo Siena. Além dele, estavam no carro Daniel (condutor), Dâmaris e Henrique. 

Segundo o policial civil que atuou na investigação do crime, informações anônimas chegaram ao seu conhecimento dando conta de que Dâmaris e Kase estariam em Salto do Jacuí, no bairro Cruzeiro, mais especificamente junto a bocas de fumo existentes no local.  

Dâmaris não quis prestar informações acerca do fato, sustentando informalmente aos policiais que, caso contasse sobre o ocorrido, sabia exatamente o que aconteceria consigo.  

Já Kase Jhones contou tudo, inclusive com detalhes, confirmando Henrique como o executor do homicídio de Daniel Gomes Soveral. 

Assim relatou Kase Jhones. 

"Todos estavam no veículo por determinação de Mamute e Peixotinho, os quais seriam integrantes da facção Os Manos. Mencionou também que o indivíduo de nome Kauê usava o seu telefone para manter contato com Mamute e Peixotinho, a fim de receber orientações de como proceder. Destacou ainda que Damaris possuía um relacionamento com Daniel e provavelmente era utilizada como isca para a prática delitiva. No mais, destacou, em resumo, que quem matou Daniel com um disparo de arma de fogo foi Kauê, sendo que, posteriormente, Damaris ateou fogo no veículo, e que tudo foi feito por determinação de Mamute e Peixotinho". 

Peixotinho (Alex Guedes dos Santos) não foi indiciado. Welligton, o Mamute, chegou a ser levado ao presídio de Santa Cruz do Sul, mas foi solto. Posteriormente, o júri que inocentou Dâmaris também o absolveu. 

Segunda vítima 

Kase Johnes foi morto dias após o depoimento, também na cidade de Salto do Jacuí. Seu corpo foi encontrado, no dia 17 de dezembro de 2018, boiando no Rio Jacuí. 

O noticiário divulgou dessa forma. 

"Segundo o delegado Rafael do Santos, responsável pela DP local, Kase havia sido detido no município de Salto do Jacuí pela Polícia Civil, suspeito de estar envolvido na morte de Daniel Gomes Soveral, morto no dia 30 de novembro na estrada que dá acesso ao Monumento dos Navegantes, onde teve o carro incendiado e o corpo parcialmente queimado. 

Ele e uma mulher foram detidos na Rua General Câmara, bairro Cruzeiro, no dia 3 de dezembro, três dia após a morte de Daniel, levados a delegacia. Kase teria indicado no seu depoimento o autor da morte de Daniel. 

Como o judiciário não homologou o pedido de prisão temporária, ele e a companheira tiveram que ser liberados pela Polícia Civil. O IML não confirmou até o momento a causa da morte. A Polícia investiga a morte e a possível ligação entre os crimes". 

Consta nos autos que, após a morte de Kase Jhones, Henrique e Dâmaris foram para Cruz Alta, onde o primeiro foi preso em flagrante por crime de roubo a estabelecimento comercial, retornando ao sistema carcerário, de onde encontrava-se foragido. 

Dâmaris e Henrique 

Não há informações nos documentos sobre como, onde e quando se conheceram e até que momento durou o relacionamento entre eles. 

Condenação por tráfico 

Dâmaris foi condenada, em 2024, em outro processo, por tráfico de drogas e associação criminosa. A sentença foi parcialmente mantida pelo Tribunal de Justiça do RS em 2025, resultando em pena de 1 ano e 8 meses de reclusão, substituída por penas restritivas de direitos. 

Trecho da sentença. 

"No dia 20 de julho de 2019, por volta das 00h15min, na Rua Andre Edite Eidelwein, s/n°, Bairro Imigrante, em Estrela/RS, os denunciados Itamar de Sena da Silva e Dâmaris Vitória Kremer, em comunhão de esforços e conjunção de vontades, guardavam, para fins de traficância, farelos de maconha, pesando 10g (dez gramas), 12 (doze) tijolinhos de maconha, pesando 25g (vinte e cinco gramas), e 05 (cinco) buchinhas de crack, pesando 0,8g (zero vírgula oito gramas), substâncias entorpecentes que determinam dependência física e psíquica, sem autorização e em desacordo com determinação legal e regulamentar, além de R$ 196,00 (cento e noventa e seis reais) em notas diversas, R$ 10,80 (dez reais e oitenta centavos) em moedas diversas e 01 (um) aparelho celular, marca Motorola, com a tela trincada, conforme positivam o Auto de Apreensão". 

Esse fato resultou na prisão de Dâmaris, que estava foragida após o assassinato de Daniel. 

Redes sociais 

Dâmaris e Daniel interagiram em seus perfis no Facebook. Entre os dias 8 e 27 de novembro de 2018, Dâmaris curtiu onze publicações de Daniel e comentou em uma delas (dia 8 de novembro), elogiando a foto de um prato elaborado por ele.  

A última publicação do perfil de Daniel ocorreu em 27 de novembro de 2018, dias antes de sua morte. Uma foto sua, em frente à Escola do Hospital Pompeia, em Caxias do Sul, com a mensagem.  

"Quanto maior o pensamento, maiores serão as possibilidades de sucesso. Nunca foi sorte, sempre foi Deus". 

Já Dâmaris tinha dois perfis no Facebook (Viktoria Kremer e Viktoria Kremer - Toia) e dois perfis no Instagram (kremer_uber_alles e kremer_2016). 

Outro que possui perfis no Facebook é Henrique Kauê Golmann. Foram localizados sete, ao todo. Com nomes de Rique Golmann ou Kaue Golmann. Um deles é nomeado Kaue Vitoria Golmann e tem como foto principal, publicada em 18 de janeiro de 2019, Henrique e Dâmaris abraçados em frente a uma casa. 

Em seu perfil com mais seguidores, 1,2 mil, Rique Golmann publicou a seguinte frase, no dia 25 de novembro de 2018. 

"Não mexa com quem eu amo. Deus perdoa, eu não". 

Dois dias depois, ele publicou uma foto da personagem Arlequina. Sem nenhum texto. Dâmaris tinha uma tatuagem sob o olho, assim como a Arlequina.  

No dia 19 de setembro de 2025, Dâmaris registrou em seu Instagram (kremer_2016), um vídeo extraindo a tatuagem citada.  

O assassino não fala 

Dos quatro presentes no fatídico dia 30 de novembro de 2018, o único que ainda está vivo é Henrique Kauê Golmann, que optou pelo silêncio durante todo o processo. Atualmente, ele cumpre pena no presídio de Venâncio Aires. 

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Fonte de pesquisa

https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2018/12/01/corpo-carbonizado-e-encontrado-ao-lado-de-carro-em-salto-do-jacui.ghtml

https://www.gaz.com.br/corpo-encontrado-em-rio-em-salto-do-jacui/

https://diariosm.com.br/noticias/policia-seguranca/homem_e_executado_e_tem_corpo_queimado_em_salto_do_jacui.449657

http://jornalsemanario.com.br/corpo-encontrado-em-salto-do-jacui-e-de-morador-de-bento-goncalves/?fbclid=IwdGRjcAN8OcFjbGNrA3wv1WV4dG4DYWVtAjExAHNydGMGYXBwX2lkDDM1MDY4NTUzMTcyOAABHm0o08c1TnAAphAzdjrow9_9ZVkJ2PFwhZeaIafttwQUNflxAZEQcOpzLfb0_aem_WOlRHxb0FvvutJ4JR2syNQ

https://jeacontece.com.br/salto-do-jacui-delegado-tenta-elucidar-crime-e-acredita-em-uma-nova-execucao/

https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-rs/759474618/inteiro-teor-759474626 

Demais documentos acessados

  • Íntegra do processo 161/2.19.0000325-8
  • Denúncia do Ministério Público
  • Sentença
  • Sentença do júri
  • Ata de audiência

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Tom Waits

Às vezes, um poema contém palavras que caíram da página, assim como pessoas que caíram na calçada.



sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Carlos Cachaça, pelas lentes de Rui Mendes

 

Foto: Rui Mendes

Carlos Cachaça, 1995.

Morador do morro desde os oito anos de idade, Carlos Cachaça cresceu participando de blocos e cordões, acompanhando o surgimento das Escolas de Samba. Sua obra musical traduz o seu tempo, uma narrativa poética do que viveu. Sem fantasias, seus versos e melodias contam um pouco do que viu e sentiu.

Este mangueirense, apaixonado por Carnaval reuniu várias virtudes. Ao contrário do que seu apelido sugere, Carlos zelava pela diversão e pelo trabalho. Quando jovem bebia, mas não sofria alteração, o que lhe permitia uma total disciplina. Trabalhou na Rede Ferroviária Federal, até se aposentar. Foram quarenta anos, (de 1925 a 1965), trabalhando diariamente sem faltar um dia.

Ao lado do grande Cartola, seu parceiro mais constante, e Saturnino Gonçalves; pai da D. Neuma, entre outros, fundou, em 1925, o Bloco dos Arengueiros, que mais tarde deu origem a Estação Primeira de Mangueira.

Carlos Cachaça, esteve em atividades até a morte, aos 97 anos. Foi o primeiro compositor a inserir elementos históricos nos sambas de enredo, o que é uma norma até hoje. Em 1923 compôs seu primeiro samba “Ingratidão” e em 1932 compõe a primeira parceria com Cartola.

Ganhou o apelido de Cachaça para diferenciar de outros "Carlos" da turma e por causa de sua bebida preferida. Sua última participação ativa na Mangueira foi em 1948, quando a escola foi a 1ª a colocar som no desfile, para o samba-enredo ”Vale de São Francisco”.

Em dezembro de 1980 lançou pela Ed. José Olympio, em co-autoria com Marília T. Barbosa da Silva e Arthur L. Oliveira Filho, o livro “Fala Mangueira”. Em 1997, ao completar 95 anos, foi homenageado, na quadra Mangueira por ser o único fundador vivo da Agremiação.

O único disco solo de Cachaça é de 1976 e inclui pérolas como "Quem Me Vê Sorrindo" (com Cartola) e "Juramento Falso".

Carlos Cachaça foi pouco interpretado pelos cantores da era do rádio. "Não Quero Mais Amar a Ninguém" (com Cartola e Zé da Zilda) é uma exceção. Foi gravado por Aracy de Almeida em 1937 e regravado por Paulinho da Viola em 1973, no LP “Nervos de Aço” (Odeon). Época em que vários dos seus sambas passam a ser "redescobertos"

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Outras fotos de Rui Mendes - aqui

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Sergio Faraco: vida x escrita

 "Sou autor de obras de ficção. Tudo o que um ficcionista vive ou vivem pessoas que ele conhece ou aquilo que ele testemunha, ou escuta, ou lê, acabam fazendo parte de sua ficção. Seu tabuleiro é um crisol de experiências plurais".


Sergio Faraco em entrevista a Daniel Scandolara, publicada na revista Parentese, em outubro de 2025.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Gay Talese e a arte de tornar incomum a vida de pessoas comuns

Contracapa do livro A Mulher do Próximo (editora Record, 1980)

Gratificação egoica, exibicionismo, vaidade. Há motivos menos cabotinos para levar palavras ao papel, mas a possibilidade de impressionar as pessoas está no topo da escala de gatilhos que motivam autores a contarem boas histórias ou darem gritos de alerta ao mundo.

Na balança de Gay Talese, os três citados na abertura podem até pesar mais que outros, mas nunca vêm sozinhos. Talese entrega o pacote completo. Ou seja, além de estupidamente bem escritos, seus textos são assentados em pilares inegociáveis do bom jornalismo. Concisão, clareza, tom coloquial e um conjunto de informações novas e precisas distribuídas num ritmo que mantenha o leitor vidrado. Tudo isso a bom preço e fruto de trabalho investigativo que distingue as grandes reportagens de relatórios burocráticos e mal-escritos. A cereja desse bolo, claro, é a criatividade.

Com essas valências, visíveis como insígnias na lapela, em Fama & Anonimato, Honra teu pai, Vida de escritor e outros, seria mesmo impossível imaginar esse velhinho de 93 anos passando despercebido por aí, escondido dentro de ternos de três peças, chapéu Fedora e sapatos Oxford, que ele têm sujado desde a década de 1950, quando decidiu ir às ruas para tornar incomum a vida de pessoas comuns e invisíveis aos olhos da multidão. 

Nota à margem

Embora mantenha discrição e humildade de um bedel na profissão, sozinho em seu escritório, no silêncio do seu laboratório de criação,  Talese parece ser daqueles que sempre esperaram aplausos da máquina de escrever ao final de cada capítulo. 

E tem livro novo do veio na praça. Bartleby e eu.

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Texto do jornalista Eduardo Rodrigues (publicado originalmente em seu perfil do Facebook, 10 de outubro de 2025)

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Daqui eu não preciso nada

 


Eu deixaria aqui tudo, os vales, as colinas, as trilhas e as pegas do jardim, eu aqui deixaria o vinho e a fé, o céu e a terra, a primavera e o outono, aqui deixaria os caminhos que partem, as noites na cozinha, o derradeiro olhar de amor e todos os imperativos terríveis que conduzem às cidades, aqui deixaria o crepúsculo denso que se assenta sobre a paisagem, o peso, a esperança, o encantamento e a serenidade, aqui deixaria o que é amado e o que é próximo, tudo que me emocionou, tudo que me abalou, que me fascinou e me ergueu, aqui deixaria o nobre, o bem-intencionado, o agradável, o diabolicamente belo, aqui deixaria os brotos fenecentes, todo nascimento e existência, aqui deixaria a magia, o mistério, a distância, o inextinguível e a narcose das verdades eternas: porque aqui deixaria essa Terra e essas estrelas, porque não levaria nada daqui comigo, porque espreitei o que virá, e daqui não preciso de nada.

László Krasznahorkai, “Daqui, eu não preciso de nada”,  Anuário Todavia 2018/2019. Tradução de Paulo Schiller

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Taline e Flávio (conto)


- Lucas, a Aline veio falar comigo. Disse que teve gente que veio questionar ela sobre o conto que tu publicou recentemente. Comentou que circulou na empresa... É foda... Ela disse que seria melhor tu tirar das redes sociais. 

- É sério? 

- Sim. 

- Vou deletar por qual razão? Se trata de um conto.  

- É que os nomes são os mesmos e a minha situação é muito detalhada, todos sabem que sou eu. E ela disse que o pessoal tá insinuando que tivemos um caso. Ela achou o conto muito bonito, ficou lisonjeada... Ela pediu de boa. Não exigiu. 

- Que decepção com vocês! Vocês são meus amigos... 

- Eu não te pedi para tirar. Pedi porque ela me pediu e porque somos amigos. Te dei as razões dela. Por mim, estou cagando... Não me importo mais que me julguem por isso. Estou no ostracismo. Longe daí. E ninguém me confrontou. Não confunde as coisas. Foi ela que pediu. 

Lucas não tinha argumento para contrapor, nem queria mais qualquer tipo de conversa sobre. Ter que explicar sua obra de ficção, que era insignificante, não faria o menor sentido sob nenhum aspecto. Limitou-se a excluir o texto e deixar os dois pra lá. 

Contudo, Lucas não tinha amarras – assim como a Literatura, assim como alguém que escreve sem ter leitores à espera. Lucas tinha um compromisso intransigente e patético com a Arte. Era seu único compromisso – pois não lhe era imposto. Lucas não tinha uma carteira assinada com a Literatura. Por essa razão, se via no direito de não fraquejar, não ceder a caprichos.  

A figura era a seguinte. A Literatura era um mendigo e Lucas era seu cão sarnento. Um animal tonto que persegue um homem decrépito sem perceber que não há perspectiva alguma, além de receber pouca comida e uma promessa convincente de liberdade.  

Esse – que fique bem claro – é o modo como Lucas vê as coisas. As outras pessoas que estão próximas a ele – não os leitores em geral, porque ele não tem leitores – veem tudo isso como uma infantilidade. Uma tremenda bobagem. Os mais benevolentes acreditam ser apenas um hobby. "Ele escreve nas horas vagas", dizem.  

Então, Lucas seguiu a Literatura mais uma vez. Sua nova escrita, após ter deletado o conto Aline e Fábio, descreverá uma mulher de quarenta e poucos anos, que se julga progressista – um termo da moda para quem se afirma de esquerda ideologicamente –, confusa diante da repercussão da narrativa breve que leva seu nome e desenha uma personagem que poderia muito bem ser ela. Essa mulher entende que se trata de ficção. Tem educação e cultura suficiente para isso. Porém, sabe, talvez pela idade, que é necessário zelar por sua imagem. Esse traquejo, esse pragmatismo social – que ela achava não ter ou via como irrelevante – vão fazê-la questionar a necessidade do texto ser publicado e levar seu nome no título.  

Entretanto, a vergonha de alguém que se julga progressista sugerir o cancelamento da publicação mexe com ela. Afinal, o falso moralismo é uma afronta e uma das tantas chagas do mundo moderno. Titubeia. Mas solicitará o sumiço da tal prosa. Alcançará seu objetivo e, no fundo, ficará satisfeita que o autor acatará seu pedido. A essa mulher, Lucas dará o nome de Taline. 

Já o personagem masculino será retratado como alguém que é quase um ermitão. Um homem niilista, que tem como meta construir um casebre na montanha. Adepto do seus livros, seus discos e nada mais. Seu ponto de contradição será a preocupação com a própria reputação. Algo nonsense que trará um certo traço de humor a peça literária. O ápice será o momento que ele pede – a mando de Taline – o apagamento da história, onde pretensamente é também um dos personagens. Lucas transcreverá essa solicitação ipsis litteris para dar um toque realista. 

Ficará claro que, mesmo sendo um amante das artes, mesmo sendo um bom leitor e mesmo sendo amigo do autor, ele não encontrará outra maneira. Desejará que o conto seja deletado. O nome desse personagem será Flávio.

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Francisco Bosco disse

 

"O campo progressista está com um problema sério com a demagogia. Tem muito intelectual que está viciado em identificar o que o campo deseja ouvir. E falar apenas o que o campo deseja ouvir. Há muito intelectual progressista que pensa uma coisa no privado e outra publicamente, porque tem medo de apanhar. E isso tem sido um comportamento geral".

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A fala foi extraída desse vídeo - link  

sábado, 27 de setembro de 2025

Aline e Fábio (conto)



Pra mim, a história deles começou naquela cafeteria. Espaço gourmetizado, ornamentado demais, com um ar cafona e objetos vintage. Era outubro, véspera das eleições municipais e Aline discursava com vigor. Sua candidata, de esquerda, era um azarão frente ao candidato da direita. Assim diziam as pesquisas. Ela elencava os riscos da possível vitória do candidato da direita. Encarreirou lugares-comuns que esquerdistas carimbam em seus opositores. Neoliberal. Fascista. Reacionário. Entreguista. Xenófobo. Elitista. Culpou a mídia. Culpou os grupos empresariais. Culpou até mesmo o povo, chamando as pessoas de gado. Tinha muito medo do futuro. Fábio parecia e estava impaciente. Aguardou Aline encerrar seu falatório e sentenciou. Quem discorda de ti é sempre um extremista, já percebeu isto? Impressionante! E o que era um monólogo da Aline, virou um debate. Fábio insistia na tese de que a única saída possível era anular o voto. E se eximir? Escolhe teu lado, Fábio! Se eximir, hoje, é ser de direita. Tu sabe que não sou de direita. Essa direita é uma escumalha! Estamos falando de dois candidatos horríveis, presos a ideologias ultrapassadas e partidos corruptos. Ter que escolher entre um deles é o fim dos tempos. E assim a dupla seguiu, por mais meia hora. Fábio se desculpou. Afirmou que o encontro não devia encerrar dessa maneira. Contudo, não havia outro jeito. Nosso encontro estava acabado. Fábio tinha voo marcado naquele dia. Retornaria a Portugal. A gente seguiria em Porto Alegre. A gente não. Porque a Aline foi para Portugal tempos depois. Tentar uma nova vida. Juntou-se ao Fábio, na cidade do Porto. Ele, imigrante regularizado, com apartamento próprio e já estabilizado como guia turístico. Ela, sem visto, morando de aluguel e atendente de um bar. Tudo o que eu menos queria era vir pra cá e ficar na companhia de um brasileiro. E o que tu queria, afinal? Não sei... Acho que só sair de Porto Alegre. Não aguentava mais conviver com aquelas pessoas, com aquele ambiente. E aqui estamos. Dois porto-alegrenses dividindo uma cama na Europa e falando mal da própria cidade. Tu sabe que, no fundo, não me sinto bem com isso. Vai dizer que tu tem saudade? São poucos meses, mas tenho sim. Tu tá no primeiro mundo, a poucas horas de diversos países, e tem saudade do Sarandi? Já te falei que não sou do Sarandi. Não tem como não sentir saudade. Estou em um país com essa política escrota de anti-imigração, as pessoas nos odeiam. Pra mim, não faz o menor sentido tu vir até o primeiro mundo burguês capitalista conservador e anti-imigração. Não combina contigo. Pode não combinar, mas não é uma opção. Sempre é uma opção. Tu tá mentindo pra ti mesmo. Porto Alegre não é mais a mesma, Fábio. Mas e teus ideais, Aline? São meus e de mais alguns, apenas, não da sociedade. Por isso, vivem na merda lá, naquela província. Tu vai acabar sozinha e isolada pensando desse jeito. Como tu, Fábio? A vida dos dois não era o que se imagina de um casal. Ou melhor. Eles não eram um casal. Fábio tinha por volta de cinquenta. Vivia uma rotina medíocre na agência de turismo. Dias tediosos. Dias de passeios com casais de idosos ou grupo de idosos. Um salário e meio. Aline, próximo dos quarenta, tinha uma rotina atribulada. Muito trabalho, além de frilas em eventos. Pagamentos semanais. Trem e mochila nas costas nas folgas. Numa dessas andanças, Aline foi abordada pela polícia. Os seus documentos, por favor. Por que essa abordagem? Escolhem pessoas ao acaso ou se trata de preconceito? Peço-lhe outra vez os documentos, por favor. Senhora Aline, daqui a vinte e sete dias o seu período de permanência expira. Tem conhecimento disso? Tenho. E já comprou a passagem de regresso ao Brasil? Isso não é da sua conta. Pois saiba que é e tenha a certeza de que acompanharemos o seu caso. Não vai dizer que não sou bem-vinda aqui, oficial? Não lhe direi isso, senhora. Também não vai dizer que não gosta de imigrantes? O homem sorriu. Gosto do povo brasileiro. Até vejo telenovelas brasileiras. Tufão, Carminha. Conhece? Torço pela Carminha. E abriu um sorriso. Aline não retrucou. Nem sequer olhava para aquele homem. Mas o facto é que a lei vem em primeiro lugar. E os imigrantes em situação irregular são considerados ilegais, como imagino que deva saber. Um segundo agente observava a cena. Aproximou-se de Aline e baixou o tom. Pois eu não gosto de brasileiros. Vocês são uma corja, porcos, que não trazem rigorosamente nada aqui. Terei todo o prazer em expulsá-la, senhora. O primeiro oficial interrompeu e devolveu o documento. Aline não sabia o que dizer ou fazer ou pra quem pedir ajuda. Aline relatou tudo o que passou a Fábio. E tu queria que eles te dissessem o quê? Eu não acredito no que tô ouvindo?! Tu acha essa abordagem e esse monitoramento normal? Tu acha que tu é um deles. É isso? Não tem nada a ver com normal ou anormal. Com ser um deles ou não. Imigrante é tratado assim no mundo todo. Ou tu realmente pensa que um haitiano é bem-quisto em Porto Alegre? E vai me dizer que tu é bem-quisto aqui? Acorda, Fábio! Bom, pelo menos estou legal e a polícia não me estorva na rua. Ambos, como sempre, seguiriam se alfinetando e nenhum arredaria pé de suas convicções. Dias depois, uma situação inusitada e digna de um realismo fantástico ocorreu. Aline tocou o interfone de Fábio. Estavam sem se falar, desde a última discussão. Fábio surgiu com cara de enfado até que viu o cachorro. Tu acredita que ele tá me seguindo há dias! Fábio então acarinhou o vira-lata cor de caramelo. Não sabia que por aqui tinha desse tipo. Nem eu! Tem certeza de que não é um imigrante ilegal? E riram. E se abraçaram. Prometeram não brigar mais. Subiram para o apartamento. O cão foi junto. Fábio gostava de transar com Aline olhando o rosto dela. Aline gostava do calor dele. Naquela tarde de domingo, uma manifestação tomou as ruas do Porto. Bradavam palavras de ordem e empunhavam bandeiras de Portugal e cartazes. MAIS CONTROLO, MAIS SEGURANÇA. FIM À IMIGRAÇÃO SEM CONTROLO. O LIXO FICA FORA DA CASA. NEM MAIS UM IMIGRANTE ILEGAL. Da janela, Fábio viu aquela gente toda. Eram muitos. O que tá acontecendo? Nada, Aline. É a torcida do Porto. Hoje tem jogo. Volta pra cama então. Ele voltou, porém, não conseguiu dormir. Aline ficou dias sem ver o vira-lata. Colegas do trabalho também sentiram falta do bichinho. Citaram a chance do animalzinho estar no canil da cidade. Na impossibilidade de ir lá, um órgão público, pediu que Fábio fosse. E lá estava o cão, numa celinha imunda. Ficou contente ao ver Fábio. Pareceu até derramar uma lágrima. Abanava o rabo, saltitava e dava ganidos. Queria arrancar a grade com suas patinhas. Fábio retornou a funcionária. "Infelizmente, não é ele...". E foi embora dali. Era muito cedo. A vizinha tocou a campainha de forma insistente. A idosa tremia. Não sabia por onde começar e Fábio não sabia sequer o que perguntar. A velha soltou tudo de uma vez. Denunciei a sua namorada estrangeira. É que... O nosso país... Era o mais correcto a fazer. Peço desculpa. Sei que está cá de forma legal. Entretanto, as leis existem para serem cumpridas. Não é nada contra vocês, contra ela. Percebe? É que o nosso país está muito mal. O senhor vê as notícias, não vê? Percebe? Fábio não sabia o que dizer ou fazer ou pra quem pedir ajuda. A partir desse ponto, não tenho mais informações sobre ele, que jamais retornou meus contatos. Busquei a agência de viagens. Ele se demitiu pouco após o ocorrido. Não sabem dele. Aline está de volta ao Brasil. Casada, dois filhos. Mora no bairro Parque São Sebastião, Zona Norte de Porto Alegre. Não sei precisar se tem e qual seria a sua ocupação. Quando a vi, ela estava com pressa ou quis encurtar a conversa. Comentou que também não tem mais notícias de Fábio e prefere não falar sobre esse período de sua vida.    

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Trecho do conto Chablis, de Donald Barthelme


Minha esposa quer um cachorro. Ela já tem uma neném. A neném tem quase dois anos. Minha esposa diz que a neném quer o cachorro. 

Minha esposa quer um cachorro faz um bom tempo. Quem precisou informar que isso não seria possível fui eu. Mas agora a neném quer um cachorro, diz minha esposa. Andam juntas o tempo todo, bem agarradas. Pergunto à neném. “Você é minha menina? É a menina do papai?”. A neném responde “Mamã” e não diz isso apenas uma vez, fica repetindo “Mamã mamã mamã”. Não vejo motivo para comprar um cachorro de cem dólares para essa porcaria de neném.

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Trecho do conto Chablis, de Donald Barthelme, que integra o livro Grandes Dias e Outras Histórias (editora Rocco, 2019)

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Divagações sobre um poema

Eu lembrei desse poema. Mas não lembrei dos versos. Lembrei da feitura dele. E dele como algo bonito que fiz (mesmo sem recordar os versos). Me ficou na cabeça sua criação. Sua maquinação. Porque o escrevi em uma praça, num final de semana. Essa praça fica ao lado de um lar de idosos. Na frente do lar de idosos (ou seja, no outro lado da rua) tem uma creche. E eu me apercebi disso quando estava nessa pracinha. Com meu filho, que brincava na areia, que brincava no escorregador, que brincava no balanço... O lugar fica muito próximo a casa de Erico Verissimo, onde hoje mora seu filho também ilustre, Luiz Fernando Verissimo. O nome da praça é Mafalda Verissimo por essa razão. E eu escrevi o poema na cabeça primeiro. Com essa perplexidade me latejando. Como pode? Uma criança, quem sabe um dia, vai atravessar essa rua. Fui maquinando esse destino possível. Esse atravessar de rua que é uma vida inteira. Esse atravessar de rua inevitável, porque a velhice é o futuro. Quando cheguei na minha casa, as palavras escorriam pelos dedos. Uma a uma. Ágeis. E iam se enfileirando, aos trancos, sem pedir licença. Chegou um ponto que elas tomaram tento e se organizaram meio que sozinhas, como uma comunidade. Foi engraçado. Nessa hora, achei melhor deixá-las. Abandoná-las. E assim foi. Mesmo que elas acabem em um livro (como foi o caso), não há mais o que fazer com elas, pensei. Porque as palavras também atravessam a rua. E vão parar nesse mesmo asilo. Às vezes, alguém pode lembrar delas. E visitá-las. Mas nem sempre isso acontece.

A vida é assim mesmo.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Erico Verissimo sobre o ato de escrever


Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a idéia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, trazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.

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Erico Verissimo, em Solo de Clarineta, Vol. 1.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Um relógio analógico pode mudar sua vida


Vivemos a era da ansiedade. As dores do mundo estão relacionadas ao excesso de informações e estímulos a que estamos submetidos. Tudo é smart e tudo está o tempo todo nos conectando. O interruptor não desliga. E isso tem ou terá um preço logo ali na frente.

É nesse contexto, que um acessório pode ajudar a tirar o peso dos dias. Um relógio analógico pode mudar sua vida. E pra melhor.

Ver as horas no celular ou smartwatch nunca é só ver as horas. É um convite a acessar outros aplicativos e funcionalidades, que nos levam a outros e outros e outros. 

O relógio pode acabar com esse ciclo de distrações e colocar o tempo, que é tão valioso para ser gasto à toa, no seu devido lugar. 

Sem contar que esse "adorno" no pulso é muito mais que uma mera jóia ou produto de moda. São peças carregadas de história, peculiaridades e curiosidades. 

Nos últimos anos, há um certo modismo em torno da relojoaria - ou horologia, como dizem os mais entendidos. Se será passageiro ou não, não se sabe. Mas tem muito mais gente falando e se interessando sobre o assunto.

Então, é um bom momento para ser um pouco mais analógico, mais offline, em um mundo cada vez mais online e digital. 

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Estrela Distante - Roberto Bolaño (trecho)

 


O menino se chamava Lorenzo, creio, não tenho certeza, e esqueci o sobrenome, mas outros o lembrarão, e gostava de brincar de subir em árvores e nos postes de alta-tensão. Um dia ele subiu num desses postes e recebeu um choque tão forte que perdeu os dois braços. Tiveram de amputá-los quase na altura dos ombros. Assim, Lorenzo cresceu no Chile e sem braços, o que por si só já o deixava numa situação bastante desvantajosa, mas ainda por cima ele cresceu no Chile de Pinochet, o que transformava qualquer situação desvantajosa em desesperadora. Mas isso ainda não era tudo, pois ele logo descobriu que era homossexual, o que transformava a situação desesperadora em inconcebível e inenarrável.  

Com todas essas condicionantes, não era de estranhar que Lorenzo virasse artista. (Que mais poderia ser?) Mas é difícil ser artista no Terceiro Mundo quando se é pobre, sem braços e ainda por cima veado. Por isso, Lorenzo se dedicou, durante algum tempo, a outras coisas. Estudava e aprendia. Cantava nas ruas. E se apaixonava, pois era um romântico incurável. Suas desilusões (para não falar nas humilhações, dos desprezos, das ofensas) foram terríveis, e um dia – dia riscado com pedra – decidiu se suicidar. Numa tarde de verão especialmente triste, quando o sol se escondia no oceano Pacífico, Lorenzo saltou para o mar de uma rocha usada exclusivamente por suicidas (coisa que existe em qualquer trecho do litoral chileno que se preze). Afundou como uma pedra, com os olhos abertos, e viu a água ficando cada vez mais escura e as borbulhas que saíam da sua boca e depois, com um movimento de pernas involuntário, voltou à tona. As ondas não permitiram que visse a praia, tão somente as rochas e à distância o mastro de algumas embarcações de passeio ou de pesca. Depois voltou a afundar. Nesse momento também não fechou os olhos: moveu a cabeça com calma (calma de um anestesiado) e buscou com os olhos alguma coisa, qualquer que fosse, mas que fosse bela, para retê-la no momento final. Mas o negror vendava qualquer objeto que pudesse descer junto com seu corpo até as profundezas, e ele nada viu. Então, sua vida, como se costuma dizer, desfilou diante de seus olhos como num filme. Alguns trechos eram em preto e branco e outros em cores. O amor de sua pobre mãe, o orgulho de sua pobre mãe, a exaustão de sua pobre mãe ao abraçá-lo à noite, quando tudo nos vilarejos pobres do Chile parecia estar por um fio (em branco e preto), os tremores, as noites que urinava na cama, os hospitais, os olhares, o zoológico de olhares (em cores), os amigos que compartilham o pouco que têm, a música que nos consola, a maconha, a beleza revelada em locais inverossímeis (em branco e preto), o amor perfeito e breve como um soneto de Góngora, a certeza fatal (mas cheia de raiva dentro da fatalidade) de que só se vive uma vez. Tomado de uma súbita coragem, decidiu que não ia morrer. Conta-se que disse é agora ou nunca, e voltou à superfície. A subida lhe parecia interminável, manter-se à tona, quase insuportável, mas conseguiu. Naquela tarde, ele aprendeu a nadar sem braços, como uma enguia ou uma serpente. Matar-se, disse, nessa conjuntura sociopolítica, é absurdo e redundante. Melhor se tornar um poeta secreto.   

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Trecho de Estrela Distante, romance de Roberto Bolaño (Folha de São Paulo, 2012).

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Quando a menina dorme



Mostro para minha filha a Lua desperta

Balbucio uma canção de ninar

Construo cada versinho

Como quem ergue um prédio alto

Para protegê-la da próxima inundação

Ela não dorme

Ela sorri e me mira os olhos

Que são seus

Aos poucos, ela desiste

E a Lua vai embora

Mas ainda está lá

Como uma música que foi feita para durar

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Extinção



Antes de existir algo

Existia a Natureza

Que assistiu aos dinossauros

E sua derrocada

A Natureza viu o primeiro homem

Presenciou suas descobertas

E todas as guerras que ele criou

Os meninos orfãos

Que caminharam por Sua terra arrasada

Hoje estão reunidos

Para construir muralhas

E sistemas de proteção

____Contra as águas

____Contra o Sol

____Contra o vento

____Contra o fogo

Eles não sabem

Mas também estão sendo observados pela Natureza

Com indiferença


quinta-feira, 10 de julho de 2025

A morte em proparoxítonas - Ruy Castro

"Ouve meu cântico, quase sem ritmo/ Que a voz de um tísico, magro, esquelético/ Poesia ética em forma esdrúxula/ Feita sem métrica com rima rápida.// Amei Angélica, mulher anêmica/ De cores pálidas e gestos tímidos/ Era maligna e tinha ímpetos/ De fazer cócegas no meu esôfago.// Em noite frigida, fomos ao Lírico/ Ouvir o músico, pianista célebre/ Soprava o zéfiro, ventinho úmido/ Então Angélica ficou asmática.// Fomos ao médico de muita clínica/ Com muita prática e preço módico/ Depois do inquérito descobre o clínico/ O mal atávico, mal sifilítico.

"Mandou-me célere comprar noz vômica/ E ácido cítrico para o seu fígado/ O farmacêutico, mocinho estúpido/ Errou na fórmula, fez despropósito.// Não tendo escrúpulo, deu-me sem rótulo/ Ácido fênico e ácido prússico./ Corri mui lépido mais de um quilômetro/ Num bonde elétrico de força múltipla.// O dia cálido deixou-me tépido/ Achei Angélica já toda trêmula/ A terapêutica dose alopática/ Lhe dei em xícara de ferro ágate.// Tomou num fôlego, triste e bucólica/ Essa estrambótica droga fatídica/ Caiu no esôfago, deixou-a lívida/ Dando-lhe cólica e morte trágica.

"O pai de Angélica, chefe do tráfego/ Homem carnívoro, ficou perplexo./ Por ser estrábico, usava óculos/ Um vidro côncavo, e o outro convexo.// Morreu Angélica, de um modo lúgubre/ Moléstia crônica levou-a ao túmulo/ Foi feita a autópsia, todos os médicos/ Foram unânimes no diagnóstico.// Fiz-lhe um sarcófago assaz artístico/ Todo de mármore da cor do ébano/ E sobre o túmulo uma estatística/ Coisa metódica como "Os Lusíadas".// E, numa lápide paralelepípedo/ Pus esse dístico, terno e simbólico:/ ‘Cá jaz Angélica, moça hiperbólica/ Beleza helênica, morreu de cólica.’"

O que é isso? Uma modinha, "O drama da Angélica", de certos Barreto e Lubiti, gravada em 1942 pela famosa dupla sertaneja Alvarenga e Ranchinho. A letra, toda em proparoxítonas, é uma obra-prima. O vídeo está no YouTube —não perca.

Sim, a sofrência das duplas sertanejas brasileiras já foi assim.

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Crônica de Ruy Castro, publicada na Folha de São Paulo, em 5/5/2025

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Drama de Angélica (Alvarenga/M.G.Barreto)


terça-feira, 1 de julho de 2025

Anti ajuda

Não acredite em você

Não curta a vida

Porque a vida não é curta

Tudo é por acaso

E o Sol não brilha para todos


Você não é mais forte 

Do que imagina

Nenhum lugar-comum

Te ensina


Se você pode sonhar

Não pode realizar

Não seja feliz

Nem seja foda


Saia da frente

Não dê o primeiro passo

Tudo pode te deter

E o sucesso não quer te reconhecer


Sempre é tarde

Sempre é tarde

Sempre é tarde


quarta-feira, 25 de junho de 2025

O feitiço que desgraçou Julio Reny


 "Eu sou um pobre diabo e um pobre desgraçado. Perdi a chance da minha vida. Eu não quero mais falar desse maldito show e dessa maldita noite, que eu vou levar pro túmulo. Como dor no coração. E espero que a vida eterna me cure dessa dor e desse meu fracasso nacionalmente. Por causa dessa maldita noite, do show do Unificado, no Gigantinho. O cara que fez o feitiço morreu já. E Deus que me perdoe, desse eu não tenho piedade: que arda no fogo do inferno! O cara quis me matar por uma coisa que eu não fiz contra ele. Desgraçou a minha vida e minha carreira. Tanto que eu sou um maldito até hoje. Às vezes, levo meia dúzia só em um bar. E toco por cem reais, sabe? Ou menos até, quando estou desesperado. Eu sou um pobre diabo e um desgraçado por causa daquela noite no Unificado. Daquele maldito que desgraçou minha existência e minha carreira. É isso. E ponto final".

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Trecho extraído do documentário Amor e Morte em Julio Reny (2025), com direção de Fabrício Cantanhede.

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A referência é ao show Rock Unificado, que foi o motivador da coletânea Rock Grande do Sul (1985, gravadora BMG). O disco revelou ao resto do país bandas como Engenheiros do Hawaii, TNT, Replicantes, Garotos da Rua e De Falla. Julio Reny ficou fora do álbum.  

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Tragédia humana

Desde que o mundo é mundo, o ser humano tem a pretensão de domar a Natureza. Veja o trágico caso do Rio Grande do Sul. Uma enchente histórica destruiu uma boa parte do seu território, em maio de 2024, ocasionando dezenas de mortes e desaparecimentos. Empreendimentos, moradias e sonhos destruídos. Mais de 470 municípios afetados direta ou indiretamente pela força das águas. Não há consolo possível para a população.  

Conforme o estudo "As enchentes no Rio Grande do Sul: lições, desafios e caminhos para um futuro resiliente", publicado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), o desastre foi causado pela maior chuva já observada no país.   

O recado da Natureza não pode ter sido mais claro. Aquele espaço é seu, das suas águas. Pouco importa o debate dos pequenos homens, que buscam culpados pela catástrofe. A Natureza segue seu fluxo.  

A enchente escancarou essa tragédia humana, que é em tentar domesticar o que não pode ser domesticado. Como o caso da ponte que foi levada pela correnteza no limite das cidades de Marques de Souza e Travesseiro, em 2024. Bastou um breve período de calmaria e os homens foram lá e ergueram uma nova, no mesmo lugar. Por necessidade e até de forma instintiva. O que fez a Natureza? Voltou a derrubá-la no ano seguinte.  

No RS, governantes e sociedade civil lutam para ludibriar a Natureza, reconstruindo infraestruturas mais resilientes, projetando sistemas para conter quem de fato é a dona das terras gaúchas. Desenham grandes obras de engenharia: muralhas, diques, casas de bombas. Planejam uma revolução. Essa cruzada tem só um objetivo: não ceder ou se dobrar aos caprichos da Natureza.  

A fé dos homens é comovente. Porém, é digna de um Sísifo, que na mitologia grega foi condenado pelos deuses a empurrar eternamente uma pedra até o topo de uma colina, apenas para vê-la rolar de volta. Falando em devoção. Um padre de Porto Alegre – que deveria ser um homem dedicado à Natureza – afirmou, em entrevista a uma rádio, que jamais sairá da Ilha da Pintada, bairro aguadiço de Porto Alegre. Para ele é indiferente o número de alagamentos ou desastres que aconteceram – como a enchente de 1941 – e ainda possam vir a ocorrer. No microfone da imprensa, o pároco não clamou aos céus por um milagre e, sim, bradou e rogou por uma solução terrena, sendo que ela está já posta.  

Respeitar a Natureza, simplesmente.

terça-feira, 27 de maio de 2025

E dale pós-punk em meu coração

 


Transmission - Joy Division

Winning - The Sound

Eighties - Killing Joke

Swamp Thing - The Chameleons

Natural's Not in It - Gang of Four

Rise - PIL

Mannequin - Wire

Totally Wire - The Fall

Ghost Rider - Suicide

Carry Home - The Gun Club

Smither-Jones - The Jam

Mr. Alphabet Says - The Glove 

Bring on the Dancing Horses - Echo and the Bunnymen

Lights Go Out - New Model Army

Trophy - Siouxsie and the Banshees

I'm in Love With a German Film Star - The Passions

Dark Entries - Bauhaus

That's When I Rech for my Revolver - Mission of Burma

Nightshift - The Names

Shot By Both Sides - Magazine

Promise - Violent Femmes

Talk About The Passion - REM

Well I Wonder - The Smiths

Things We Never Did - Sad Lovers and Giants

Sister Europe - The Psychedelic Furs

terça-feira, 13 de maio de 2025

Tanto Amor - Luiz Tatit

 


Tanto Amor

Composição: Ricardo Breim / Luiz Tatit


Foi tanto amor

E começou pulsando em mim

Um dia não, um dia sim

E em pouco tempo, toda hora era hora

E os segundos, um por um

Eram pra nós

A nossa vez

Eternidade que jamais satisfez


Foi tanto amor

Foi tanto amor que transbordou

Deixou a casa e se espalhou

Tomou as ruas e atraiu todos olhares

E os ouvidos, um por um

Mostrando assim

A hora e a vez

Intensidade sem qualquer sensatez


Quem nunca viu amor ao vivo veio ver

Quem tinha visto não sabia o que dizer

Quanto mais via mais queria renascer

Só por amor nada mais só por amor

Quem não amava há muito tempo se empolgou

Quem tinha muito o que fazer não trabalhou

Toda São Paulo que não pára então parou

Só por amor nada mais só por amor


Foi tanto amor

E no entanto nem parecia

Em poucos dias, para nós

Da paz ao caos

Era um segundo só

Era apostar

Na nossa vez

No risco, no cio, na embriaguês


Foi tanto amor

E foi tanto que nem cabia

E noite e dia, para nós

Do lar ao bar

Era um segundo só

Mas mesmo assim

Quanta avidez!

Nos gestos, nas cenas que a gente fez


E era um tal de ver pra crer

De olhar pra nós e emudecer

De achar que isso é que é viver

E de sentir enfim o que é o prazer

Até pra quem tudo é pornô

Naquele instante se encontrou

Toda cidade se integrou

E aplaudiu o amor que transbordou


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Faixa 11 do disco O Meio, lançado em novembro de 2000

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vozes: Luiz Tati / Ná Ozzetti

violão: Swami Junior

piano: Ricardo Breim 

violinos: Anderson Rocha / Alex Braga 

viola: Fábio Tagliaferri 

cello: Marisa Silveira

baixo acústico: Mário Andreotti

arranjo de cordas: Fábio Tagliaferri 

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Aconteceu no Parque São Sebastião

Foi uma briga e tanto. Tem vezes que só a violência resolve e acalma as coisas. Meu pai não era flor. O outro homem envolvido também não. Só que meu pai era meu pai. Eu não tinha o que fazer senão defendê-lo. Meu velho estava sentado. Apreensivo. Ouvindo as ofensas. O outro atravessando a rua com uma faca em punho. Me viu. Ameaçou. Negaceou. Blefou. Entendeu que poderia ser dois contra um. Avaliou. Deu meia volta. Eu calado. Olhos fixos. Por uma fração de segundo, refleti. Estou de Havaianas, é ruim brigar assim. Tinha vinte e tantos anos. Nessa idade não se pensa muito. Seis passadas largas e estava perto dele. Foi muito rápido. Ele perdeu a faca. Desceu a rua Ministro de Oliveira Lima aos trancos e barrancos. Entrou na rua Guará em fuga. Cambaleava. Acessou o Mercado Guará derrubando tudo e todos. Eu logo atrás, com um cavalete de propaganda, aqueles de madeira e chapa de metal, do próprio mercadinho. Costela em promoção: R$ 16,90 o quilo. Batia. Sobrou pra quem estava perto. E pra mim também. Meu pai tentando brigar, me ajudar. Muita gente em volta. Cuidado, tem criança! Meu Deus, alguém segura ele! Em minutos, homens formaram um cordão humanitário que continha a todos. Eu com as mãos lavadas de sangue. Me desvencilhei. Ele tomou uma facada! O outro atirado perto do açougue. Era acudido.  Tossia. Não tinha mais o que fazer ali. Subi a Ministro de Oliveira Lima sozinho. Meu avô era vivo ainda e me esperava na entrada do prédio. Tá tudo bem? Sim, vô, tá tudo bem. Morávamos todos juntos. Baixou ou subiu a pressão dele. Minha mãe cuidando dos dois. Um era a pressão arterial. O outro era simplesmente seu filho. Quis saber o que houve. Vizinhos nas janelas e nos apartamentos próximos também queriam. Auscultavam. De onde esse sangue? Ele foi me defender, explicou meu pai esbaforido. Já disse que tá tudo bem. Cortei a mão com aquele cavalete. Que cavalete? Disseram que foi uma facada. Não foi. Mas tá um corte feio. Minha namorada surge na cena. Cara de nojo. Muita raiva. Explode. Eu não acredito que tu tava brigando na rua?! É que ele foi... Deixa pai. E a guria deu às costas. Foi embora me xingando e dizendo que aquele bairro era uma vila e que essa gentinha da vizinhança era uma chinelagem e outras tantas coisas. Alguém leva ele no hospital. Não precisa. Precisa, sim! E tem que ir na delegacia dar queixa. Ih... a polícia tá aí. Viatura na frente do prédio. Giroflex. Vizinhos na rua. Crianças me cumprimentando. Crianças brincando de luta livre. Amigos perguntando se estava tudo bem. Amigos prometendo que assim não ia ficar. Dois brigadianos. Atentos. O outro já estava dentro da viatura. Banco de trás. Algemado. Curvado. Tossia. Ele admitiu que ameaçou o senhor e deu uma facada no seu filho. Eu já não tinha saco pra desmentir. Vocês têm que ir na delegacia agora, ali na DP do Sarandi, registrar o B.O. Não temos como levar vocês agora. Só tem uma viatura disponível. Vocês têm carro? Fomos. Meu pai, guiando o Uno Mille. Ainda tenso. Quis conversa. Essa DP é ali perto do Big, conheço o delegado. Estudei com ele. Se é que é o mesmo delegado ainda... Não dei assunto. Registrada a ocorrência. Uma segunda viatura apareceu e me levou ao Hospital Cristo Redentor. O médico olhou a ficha com enfado. Hum... briga com faca. Uns pontos nessa mão e vai ficar tudo bem. Não falei nada. Só virei o rosto para não ver. Tem medo de agulha? Não respondi, porém, ficou claro que sim. Mas de faca tu não tem né? O doutor fez o que tinha que fazer. Logo, a enfermeira vem aí e faz o curativo e tu tá liberado. Fui pra casa. Tinha um casamento para ir com minha namorada – se é que ainda era minha namorada - e estava muito atrasado. Minha mãe já tinha preparado o terno. Ela já foi, meu filho. Eu imaginei. Tu vai ir mesmo assim? Vou. Nossa, ainda cabe em ti esse terno! Tu não mudou nada... Faz o nó da gravata pra mim? Com a mão enfaixada tá difícil. Faço, filho. Dei um beijo na testa da velha. Tomei um táxi e fui. Perdi a cerimônia na igreja. Cheguei a tempo da festa. Minha namorada não teve reação alguma quando me viu. Fazia questão de olhar para o nada. Falava pouco e só com sua mãe e seu padrasto. Era como se eu não estivesse ali. Assim seguiu, até que os noivos, um casal de amigos de infância dela, se aproximaram de nossa mesa. Minha namorada mostrou os dentes. Abraços e muitos votos de felicidade. A cerimônia foi emocionante, disseram. Concordei. Após as frivolidades do momento, o noivo perguntou. E essa mão aí? Que que houve? Não titubeei. Acredita que cortei a mão fazendo um churrasco? Ele ficou surpreso, mas pareceu acreditar.  

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Depois de tudo ainda ser feliz

Não existe acerto de contas com a vida. O que está feito, está feito. Nosso passado é uma parte nossa que morreu. Por isso, tanta gente tem saudade. Por isso, há tanto rancor. Por isso, esse arrependimento que sufoca. 

Eu pensava nisso, enquanto ela falava de como tudo poderia ter sido diferente. Falava dela, falava de mim, no passado. Sempre no passado. "Tu lembra aquela vez, na parada, esperando o Sans Succi? Tava um frio de rachar. Hoje, não tem mais um frio como aquele". Era como se falasse de dois mortos. "Claro que lembro. Só que tua vida seria bem diferente. Não sei se pra melhor". "Minha vida seria mais feliz, Lucas".

E a dor era só dela. De mais ninguém. Minha dor tinha ficado pra trás, morta. Ela deixou sua caminhonete Audi num estacionamento da João Pessoa com a República e entrou no meu Uno Mille. Parecia contente, mesmo triste. A alegria é tão fugaz... Por algumas horas fomos o que poderíamos ter sido.

Quando já não havia mais o que lembrar, nem o que dizer, nos despedimos. Ela fez menção em falar algo. Parou sua caminhonete e abriu o vidro. Me aproximei. Mas ela desistiu e foi embora pela segunda vez.

"O senhor é um homem de sorte", comentou, com um sorriso, o manobrista do estacionamento.

quinta-feira, 20 de março de 2025

Quando a sorte muda

O gerente do restaurante tava sempre de cara amarrada. Se dirigiu poucas vezes a mim de forma amistosa. Sempre profissional. Sempre no limite da polidez. Uma dia, logo na chegada ao cartão-ponto, me abordou na frente de todo mundo e mandou fazer a barba. "Garçom tem que ter a cara limpa". "Mas não tenho gilete...". "Pega uma na Panvel". Noutro, também na chegada ao ponto, mandou cortar o cabelo. "Esse teu cabelo tá começando a crescer. Corta hoje mesmo". E lá fui eu no barbeiro. Teve uma vez que o pessoal estava indeciso sobre quem deveria cobrir a ausência inesperada de um colega. Era uma decisão dura. Afinal, 14 horas de trabalho em pé não é bolinho. Aleguei que tinha aula e não seria possível. "Que tu quer com estudo? Vai ganhar dinheiro e ajudar tua família, rapaz". Era dureza. Tranquei a Unisinos. E segui no restaurante. O dinheiro vai prendendo a gente. Funcionários comentavam que faltava era uma mulher pro gerente. Ele era apaixonado pela garçonete Rita, que era casada e gostava mim. A gente, lógico, aprontava. Então, na dúvida, quem trabalhava dobrado era eu. Foi assim no domingo do dia dos pais (não dei a mínima) e no domingo do dia das mães. Aí me doeu. Minha mãe e vó eram quase tudo que tinha. Questionei o motivo. "Foi sorteio". "Mas como? Se dobrei no dia dos pais?". "Sorteios são assim. Tu deu azar. Pensa no lado bom, tu vai ganhar dobrado". Inferno! A coisa só mudou quando Rita resolveu que seguiria casada. "Chega dessa vidinha". Alegou que tinha que valorizar quem tava do lado dela de verdade. O gerente desistiu, então. Depois dessa, volta e meia, ele puxava assunto comigo. Perguntava dos meus estudos. Quando eu voltaria pra faculdade, falava do Inter e de outros assuntos. Ele, que nunca faltava, que nunca fazia nada além de trabalhar, até resolveu ir num show. "Amanhã, vou no Simply Red com uma mulher que conheci na internet". "Ah, é?! E quem vai ficar no teu lugar?". "Não quero nem saber, Lucas. Eles que se fodam e deem um jeito". As pessoas mudam. Assim como a sorte muda. Eu, enquanto segui no restaurante, nunca mais fui sorteado para dobrar.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Cinco ótimos livros desagradáveis de ler


A ilha de Sacalina - Tchekhov

Um livro-reportagem antes de existirem livros-reportagem. Escrito em 1890 de forma seca. Como alguém que "apenas" observa a rotina da ilha-presídio russa. 

Ensaio sobre a cegueira - José Saramago

Saramago conseguiu imaginar uma história distópica com a premissa da cegueira como um vírus que se espalha por todo uma cidade. Um livro apavorante do início ao fim. 

Você vai voltar pra mim - B. Kucinski

Todos os contos tem em comum personagens da ditadura militar. Kucinski passa longe da pieguice ou moralismos. Suas histórias breves são narradas com crueza.

É isto um homem? - Primo Levi

Possivelmente, o livro mais triste e dolorido da história. Levi conta seus dias (e de outros judeus que conhece) como prisioneiro de Auschwitz. 

Pssica - Edyr Augusto

Romance curto e escrito de forma frenética. Uma trama violentíssima e muito bem amarrada, onde nada que acontece é gratuito.


domingo, 9 de fevereiro de 2025

Ensaio sobre a cegueira - José Saramago (trecho)

Olhando a situação a frio, sem preconceitos nem ressentimentos que sempre obscurecem o raciocínio, havia que reconhecer que as autoridades tiveram visão quando decidiram juntar cegos com cegos, cada qual com seu igual, que é a boa regra da vizinhança, como os leprosos, não há dúvida, aquele médico lá ao fundo está no certo quando diz que nos temos de organizar, a questão, de facto, é de organização, primeiro a comida, depois a organização, ambas são indispensáveis à vida, escolher umas quantas pessoas disciplinadoras para dirigirem isto, estabelecer regras consensuadas de convivência, coisas simples, varrer, arrumar e lavar, disso nos não podemos queixar, até nos mandaram sabão, detergentes, manter a cama feita, o fundamental é não perdermos o respeito por nós próprios, evitar conflitos com os militares que cumprem com o seu dever vigiando-nos, para mortos, já temos que baste, perguntar quem é que conhece aqui histórias que queira contar ao serão, histórias, fábulas, anedotas, tanto faz, imagine-se a sorte que seria saber alguém a Bíblia de cor, repetíamos tudo desde a criação do mundo, o importante é que ouçamos uns aos outros, pena não haver um rádio, a música sempre foi uma grande distracção, e íamos acompanhando as notícias, por exemplo, se se descobrisse a cura da nossa doença, a alegria que não seria aqui.  

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Trecho de Ensaio sobre a cegueira (2ª edição, Companhia das Letras, 2017)