Olhando a situação a frio, sem preconceitos nem ressentimentos que sempre obscurecem o raciocínio, havia que reconhecer que as autoridades tiveram visão quando decidiram juntar cegos com cegos, cada qual com seu igual, que é a boa regra da vizinhança, como os leprosos, não há dúvida, aquele médico lá ao fundo está no certo quando diz que nos temos de organizar, a questão, de facto, é de organização, primeiro a comida, depois a organização, ambas são indispensáveis à vida, escolher umas quantas pessoas disciplinadoras para dirigirem isto, estabelecer regras consensuadas de convivência, coisas simples, varrer, arrumar e lavar, disso nos não podemos queixar, até nos mandaram sabão, detergentes, manter a cama feita, o fundamental é não perdermos o respeito por nós próprios, evitar conflitos com os militares que cumprem com o seu dever vigiando-nos, para mortos, já temos que baste, perguntar quem é que conhece aqui histórias que queira contar ao serão, histórias, fábulas, anedotas, tanto faz, imagine-se a sorte que seria saber alguém a Bíblia de cor, repetíamos tudo desde a criação do mundo, o importante é que ouçamos uns aos outros, pena não haver um rádio, a música sempre foi uma grande distracção, e íamos acompanhando as notícias, por exemplo, se se descobrisse a cura da nossa doença, a alegria que não seria aqui.
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Trecho de Ensaio sobre a cegueira (2ª edição, Companhia das Letras, 2017)
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