Ao
bom amigo e pintor Pancetti
Poeta.
Os olhos melosos, a juba leonina e o ar
distante e vago, denunciam-no.
Comprova-o, a roupa mal amanhada,
descolorida, imunda.
E para que não sobrem dúvidas, vejam-lhe
o nome, muito ridículo é certo, mas poético à beça - Cândido Gentil.
Nasceu poeta como quem nasce corcunda,
por fatalidade. Fatalidade genealógica.
O avô, nos tempos de Dom Pedro II,
amerceou as damas da corte com galanteios rimados e, não satisfeito com isso,
irmanou-os num volume - Gentilezas.
O pai contou sílabas pelos dedos e botou
mais estrelas nos seus versos que o bom Deus no infinito.
Ele, zeloso como um chinês pelo fulgor
da tradição familiar, "musicará idéias que elevarão à estratosfera o
glorioso nome dos Gentis" - poetas incompreendidos e hereditários.
O instinto segredou-lhe algo sobre os
estilos decadentes. Os cabeçalhos dos pasquins, sempre enlutados com o carvão
das letras quilométricas, mostraram-lhe que o mundo tem sede de novidades. E um
intelectual de vanguarda explicou-lhe que "para ser modernista basta virar
as coisas pelo avesso".
Não sabe que a originalidade é aquela
"outra história" que o Kipling não contou; que os Baudelaire não
tingem mais os cabelos de verde; e que escrever coisas sem nexo não é
"mariodeandradismo", é burrice.
Vamos surpreendê-lo em ação.
Masturba-se - quero dizer, pensa. Olha
para o teto, na falta de céu, em busca de inspiração. Só vê sujeira de moscas,
mas persiste.
A inspiração desce do teto. Trepa na
perna. A pena desliza no papel, desenhando, num cursivo que três anos de
caligrafia aprimoraram as palavras.
Pronto. Já temos um título - Chuva de
estrelas. - Que título! Vai causar inveja a muita gente boa. Ora se vai!
Destaca as sílabas, vagarosamente,
saboreando-as:
- Chu-va de es-tre-las.
Bota reticências depois de estrelas,
para o título ficar mais engraçadinho. Sublinha o título. Beija o título.
Que diabo! Não é que ia esquecendo a
ilustração? É preciso de fato pensar na ilustração.
Coça a cabeça. Uma mulher nua? Sim, uma
mulher nua e as estrelas prateadas escorrendo pelo corpo. Esvazia a unha do
excesso de caspa. A ilustração é caso resolvido.
Agora, espreme o cérebro em busca de um
poema que concorde com o título. Fica penando um quarto de hora à cata do
primeiro verso. Nem pingo de idéia!
Enquanto o verso não vem, namora um
pensamento. Ei-lo: chuva de estrelas dá um ótimo título de livro. É. Está
resolvido. Escreverá um livro.
E o editor? E a crítica?
Nada de editores. Os editores são uns
piratas. Nem um exemplar para a crítica. A crítica é incompetente.
Mastiga as palavras piratas e,
incompetente como um homem superior, como um gênio!
Começa a ser consagrado - na imaginação,
por enquanto. Solicitam-lhe autógrafos, entrevistas - como os repórteres são
cacetes! - e é confidente de ministros. Ministros? Ministros? Ministros nada!
Vê lá se vai dar confiança a ministros. O ditador? Sim, confidente do ditador.
Ali na batata!
Ensaia sorrisos hipócritas, protetores,
compassivos.
- Seu Cândido, vou desligar a luz. Tá na
hora.
É dona Maricota, a proprietária da
pensão, sempre preocupada com o gasto de energia elétrica.
Coitada, ela não sabem quem hospeda,
pensa. Olha mais uma vez o título, despe-se e deita-se, ferrando logo no sono.
E é assim que Cândido Gentil, último do
seu nome, "publica" diariamente um livro.
Rio de Janeiro, 1939
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Esse conto de Antônio Fraga está publicado no livro Desabrigo e Outros Trecos, editora Relume Dumará (1999).
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