quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Um Livro Melancólico e Perturbador


Um Silêncio Avassalador é um livro melancólico e perturbador. Em seus 15 contos, o autor utiliza-se de questões delicadas e polêmicas (prostituição, pornografia, abusos) para expor contradições (e, talvez, hipocrisias?) sociais e humanas.
No rol de personagens temos uma ginasta dividida, desde a infância, entre a vida pessoal e profissional; um octogenário diretor de cinema contemplando tudo o que viveu (e deixou de viver); um a(u)tor questionando sua arte no palco de um teatro; um estuprador de homens frustrado; um menino que se vale do livre acesso a filmes pornôs para fazer novos amigos.
Todas estas (e outros tantas) figuras complexas e incompletas têm em comum o vazio (impreenchível) da própria existência. A despeito das atitudes, dos desvios de caráter e até da aversão que certos personagens suscitam, é impossível ao leitor não simpatizar ou mesmo se identificar com sua busca por uma felicidade efêmera, quiçá inexistente.
Os contos estão repletos de referências à cultura pop, em especial ao cinema, e alguns trazem situações surreais, mas que se sustentam dada à complexidade e profundidade de seus personagens - esta qualidade também evita a frustração com o término abrupto de alguns contos, já que permite imaginar o rumo mais natural (quiçá inevitável) das narrativas.
Em tempo: leitores mais sensíveis podem se chocar com a linguagem, ainda que esta seja adequada (se não, necessária) a cada história.
A despeito de dois ou três contos menos impactantes, "Um Silêncio Avassalador" é um ótimo livro de contos. Recomendo.

Resenha de T.K. Pereira

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

O Preço da Literatura


Quadro é diferente. Estátua é diferente. Grafite é diferente. Cinema é diferente. Música é diferente.

Literatura não.

Na Literatura, o valor do livro é o valor que ele custa pra ser feito. Ponto.

Tá tudo discriminado na nota fiscal.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Uma Noite que Eu Lembrei


Arlindo Sassi tocou Do You Wanna Dance, do Johnny Rivers, na Continental FM e eu lembrei de uma noite. Os garçons impacientes recolhiam as cadeiras da boate La Barca. Devia ser quase 7h. Um casal dançava coladinho. Olhos fechados. Obviamente, não era um casal de verdade. O fato é que eles estavam sozinhos no salão. Dançando lentamente.

Foi bonito. E triste.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Top 5 Caetano Veloso



Cinema Transcendental (1979) 
Irretocável. Praticamente uma coletânea. 



Cê (2006)
A retomada criativa depois de um insosso e careta anos 90. 



Caetano Veloso (1969)
O álbum que melhor soube dosar psicodelia e música popular. O conceito é o mesmo do irregular Tropicália, lançado um ano antes.



Bicho (1977)
A figura do Caetano riponga vêm desse período. Bicho é o melhor dessa fase. 



Cores, Nomes (1982)
Chegou a maturidade. A partir daí, Caetano virou o intelectual que palpita sobre tudo nos jornais. As letras das músicas foram ficando mais difíceis de entender, a vocalização característica (aquela tremidinha na voz) virou marca registrada. Caê já não seria mais tão legal. Contudo, esse disco envelheceu bem. 


- BÔNUS -


Eu Não Peço Desculpa (2002) - com Jorge Mautner
A parceria dos dois já vinha de longa data. Faltava um disco juntos. Descontraído e divertido como esse. 

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Breve Resenha do Filme Roma



Os gringos até podem cair nessa de que Roma, lançado recentemente pela Netflix e concorrente ao Oscar, é uma obra-prima do cinema moderno. Não é. Mas eles acreditarem nisso, tudo bem. O que assusta é que nós estejamos repercutindo essa falácia. No Brasil, temos diversos exemplares de Roma. É um filme que reproduzimos aos montes, desde o Cinema Novo. Todo ano tem uns dez, no mínimo. Recentemente, tivemos os didáticos Que Horas Ela Volta e Casa Grande, descrevendo a relação entre pobres e ricos.

A história de Roma é a batida via crúcis do miserável. Em que ele é, acima de tudo, um forte. O desafortunado suporta as agruras do mundo, sempre meio alienado, e segue em frente. Pois a vida é assim mesmo. Os bem vividos são os culpados, os alienados de verdade, que não enxergam a real situação das coisas. O pobre vive a História. O rico só serve para narrá-la.

Roma é um dramalhão frio, que se passa na Cidade do México, década de 70, durante o truculento governo do presidente Luis Echeverría Álvarez, considerado uma ditadura perfeita por Mario Vargas Llosa. Narra a rotina de uma empregada doméstica de família. O pai do clã some, restando às mulheres da casa tomarem conta de tudo. O motivo da fuga só é explicitado no fim. E aí está uma boa sacada. Somente aí. Todo o resto é lugar-comum para nós, terceiro-mundistas.

Ao longo de duas horas, ficamos diante da mesma estética de um filme nacional típico. A lentidão de acontecimentos, a trilha insignificante, a culpa burguesa do diretor (o mexicano Alfonso Cuarón, mas poderia ser algum Moreira Salles, não faria diferença), pesando no roteiro. O diferencial para nossos filmes, e que piora as coisas, é que Roma é rodado em um cafona preto e branco. Aquela fotografia pretensiosa (Salve, Sebastião Salgado!).

Entretanto, nem tudo é negativo. É preciso também ver o lado bom. E a vantagem de Roma para outros filmes enfadonhos é que ele está disponível somente no catálogo da Netflix. Basta dar um stop e escolher outro.

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Texto publicado originalmente no Mínimo Multíplo

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Negrinha - Conto de Monteiro Lobato


Conto foi publicado no livro homônimo, em 1920. 

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.

Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.

Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.

Ótima, a dona Inácia.

Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:

— Quem é a peste que está chorando aí?

Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.

— Cale a boca, diabo!

No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer…

Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Maria Bethânia, Uma Cantora de Churrascaria



Essa foi a descrição de Maria Bethânia por Miguel de Almeida, jornalista do caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo, em 27 de novembro de 1982.

Essas e outras histórias do período, onde o jornalismo cultural não tinha o menor interesse em cativar amizades, são contadas em no documentário Não Estávamos Ali Para Fazer Amigos.


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Chuva de Estrelas - Conto de Antônio Fraga



Ao bom amigo e pintor Pancetti

Poeta.
Os olhos melosos, a juba leonina e o ar distante e vago, denunciam-no.
Comprova-o, a roupa mal amanhada, descolorida, imunda.
E para que não sobrem dúvidas, vejam-lhe o nome, muito ridículo é certo, mas poético à beça - Cândido Gentil.
Nasceu poeta como quem nasce corcunda, por fatalidade. Fatalidade genealógica.
O avô, nos tempos de Dom Pedro II, amerceou as damas da corte com galanteios rimados e, não satisfeito com isso, irmanou-os num volume - Gentilezas.
O pai contou sílabas pelos dedos e botou mais estrelas nos seus versos que o bom Deus no infinito.
Ele, zeloso como um chinês pelo fulgor da tradição familiar, "musicará idéias que elevarão à estratosfera o glorioso nome dos Gentis" - poetas incompreendidos e hereditários.
O instinto segredou-lhe algo sobre os estilos decadentes. Os cabeçalhos dos pasquins, sempre enlutados com o carvão das letras quilométricas, mostraram-lhe que o mundo tem sede de novidades. E um intelectual de vanguarda explicou-lhe que "para ser modernista basta virar as coisas pelo avesso".
Não sabe que a originalidade é aquela "outra história" que o Kipling não contou; que os Baudelaire não tingem mais os cabelos de verde; e que escrever coisas sem nexo não é "mariodeandradismo", é burrice.
Vamos surpreendê-lo em ação.
Masturba-se - quero dizer, pensa. Olha para o teto, na falta de céu, em busca de inspiração. Só vê sujeira de moscas, mas persiste.
A inspiração desce do teto. Trepa na perna. A pena desliza no papel, desenhando, num cursivo que três anos de caligrafia aprimoraram as palavras.
Pronto. Já temos um título - Chuva de estrelas. - Que título! Vai causar inveja a muita gente boa. Ora se vai!
Destaca as sílabas, vagarosamente, saboreando-as:
- Chu-va de es-tre-las.
Bota reticências depois de estrelas, para o título ficar mais engraçadinho. Sublinha o título. Beija o título.
Que diabo! Não é que ia esquecendo a ilustração? É preciso de fato pensar na ilustração.
Coça a cabeça. Uma mulher nua? Sim, uma mulher nua e as estrelas prateadas escorrendo pelo corpo. Esvazia a unha do excesso de caspa. A ilustração é caso resolvido.
Agora, espreme o cérebro em busca de um poema que concorde com o título. Fica penando um quarto de hora à cata do primeiro verso. Nem pingo de idéia!
Enquanto o verso não vem, namora um pensamento. Ei-lo: chuva de estrelas dá um ótimo título de livro. É. Está resolvido. Escreverá um livro.
E o editor? E a crítica?
Nada de editores. Os editores são uns piratas. Nem um exemplar para a crítica. A crítica é incompetente.
Mastiga as palavras piratas e, incompetente como um homem superior, como um gênio!
Começa a ser consagrado - na imaginação, por enquanto. Solicitam-lhe autógrafos, entrevistas - como os repórteres são cacetes! - e é confidente de ministros. Ministros? Ministros? Ministros nada! Vê lá se vai dar confiança a ministros. O ditador? Sim, confidente do ditador. Ali na batata!
Ensaia sorrisos hipócritas, protetores, compassivos.
- Seu Cândido, vou desligar a luz. Tá na hora.
É dona Maricota, a proprietária da pensão, sempre preocupada com o gasto de energia elétrica.
Coitada, ela não sabem quem hospeda, pensa. Olha mais uma vez o título, despe-se e deita-se, ferrando logo no sono.
E é assim que Cândido Gentil, último do seu nome, "publica" diariamente um livro.


Rio de Janeiro, 1939
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Esse conto de Antônio Fraga está publicado no livro Desabrigo e Outros Trecos, editora Relume Dumará (1999).

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Quando Tudo é Novo


Vou a pé com meu filho, o pequeno Murilo, no colo até a creche. Todo o dia o mesmo trajeto de seiscentos metros. Ele vai admirando tudo. Vira a cabecinha com agilidade. É sempre o mesmo mendigo, que diz "bom dia, amiguinho!", as mesmas árvores, as mesmas calçadas de basalto, os mesmos sabiás bicando os butiás caídos pelo chão. O poste de luz enferrujado, que ele insiste em colocar a mão, é o mesmo. Também são os mesmos ônibus que lhe assustam na avenida Protásio Alves.

E ele com aqueles olhinhos surpresos! De quem vê pela primeira vez. É uma cena bonita. Um dia, nessa breve caminhada, quis registrar. Desajeitadamente, tentei fotografar. Desisti. Nenhuma câmera captará isso.

Eu sei que o tempo vai tratar de tornar a vista do meu guri mais dura, infelizmente. Além disso, logo logo ele não se lembrará que olhou as coisas desse jeito, porque assim é a vida.

Já eu, se Deus quiser, ficarei velho e, quando um filme dos dias passar diante de minhas retinas cansadas, ainda terei comigo o olhar do menino Murilo.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

O Advogado que Trabalhou Com Dolores Duran


Nesses restaurantes de mesas muito próximas, às vezes, acontece de alguém puxar uma conversa. E eu vi, no jeito dele me olhar, que o velho queria assunto. Ele se apresentou. Contou que era morador do Centro. Queria saber minha ocupação. Eu disse que era jornalista.

- Pois sabe que eu sou advogado. E ainda advogo!
- Qual a idade do senhor?
- Oitenta e um. Trabalhei muito tempo com o doutor Adalberto Campos. Não sei se é do teu tempo... Ele aparecia muito nos jornais.
- Não recordo.
- Um grande criminalista, sem dúvida. Trabalhei também com a Dolores Duran. Talvez, ela tu conheça.
- Dolores Duran?
- Sim.
- A cantora?
- Ela advoga até hoje.
- Hum... achei que fosse a cantora.
- Se tu quiser posso cantar uma dela.
- Ah... Não precisa.
- Na verdade, fiz boa parte da minha carreira em Santa Maria. Sou de lá.
- E quando o senhor veio à Porto Alegre?
- Em dois mil e vinte.
- Dois mil e vinte?!
- Apareceu uma oportunidade em um escritório e vim. Cheguei só com a roupa do corpo.
- Não deve ter sido fácil.
- Foi muito complicado. Mas tenho uma vida boa, hoje. Não posso me queixar. Só tô é sentindo falta de dirigir. Adoro carros. Tive que deixar o meu com a minha filha. Agora, é só táxi.
- O senhor tá certo. É mais seguro - e enfiei o garfo no prato cheio.
- Vou te deixar terminar o almoço. Não quero te atrapalhar. E o táxi que eu chamei acabou de chegar.

Nos despedimos. Ele se levantou, pagou a conta e saiu do restaurante. Não havia táxi nenhum lá fora.