sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Graciliano Ramos: “Arte é Sangue, É Carne” ou "Só Podemos Expor O Que Somos"


Em carta enviada à sua irmã, o escritor Graciliano Ramos, autor de Memórias do Cárcere, Vidas Secas, São Bernardo, entre outros, comentou o que pensa sobre Literatura e o que significa escrever. Abaixo, o relato em resposta a um conto (chamado Mariana) que ela lhe enviou.

Rio, 23 de novembro de 1949.

Marili: mando-lhe alguns números do jornal que publicou o seu conto. Retardei a publicação: andei muito ocupado estive alguns dias de cama, a cabeça rebentada, sem poder ler. Quando me levantei, pedi a Ricardo que datilografasse a Mariana e dei-a ao Álvaro Lins. Não quis metê-la numa revista: essas revistinhas vagabundas inutilizam um principiante. Mariana saiu num suplemento que a recomenda. Veja a companhia. Há uns cretinos, mas há sujeitos importantes. Adiante. Aqui em casa gostaram muito do conto, foram excessivos. Não vou tão longe. Achei-o apresentável, mas, em vez de elogiá-lo, acho melhor exibir os defeitos dele. Julgo que você entrou num mau caminho. Expôs uma criatura simples, que lava roupa e faz renda, com as complicações interiores de menina habituada aos romances e ao colégio. As caboclas da nossa terra são meio selvagens, quase inteiramente selvagens. Como pode você adivinhar o que se passa na alma delas? Você não bate bilros nem lava roupas. Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos. E você não é Mariana, não é da classe dela. Fique na sua classe, apresente-se como é, nua, sem ocultar nada. Arte é isso. A técnica é necessária, é claro. Mas se lhe faltar técnica, seja ao menos sincera. Diga o que é, mostre o que é. Você tem experiência e está na idade de começar. A literatura é uma horrível profissão, em que só podemos principiar tarde; indispensável muita observação. Precocidade em literatura é impossível: isto não é música, não temos gênios de dez anos. Você teve um colégio, trabalhou, observou, deve ter se amolado em excesso. Por que não se fixa aí, não tenta um livro sério, onde ponha as suas ilusões e os seus desenganos? Em Mariana você mostrou umas coisinhas suas. Mas – repito – você não é Mariana. E – com o perdão da palavra – essas mijadas curtas não adiantam. Revele-se toda. A sua personagem deve ser você mesma. Adeus, querida Marili. Muitos abraços para você.

Graciliano.

Você com certeza acha difícil ler isso. Estou escrevendo sentado num banco, no fundo da livraria, muita gente em redor me chateando.

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Carta extraída da Revista Graduando, número 1, jul/dez 2010, publicação da Universidade Estadual de Feira de Santana (BA). Do artigo Graciliano Ramos: O Escritor e o Homem, de Eliseu Ferreira da Silva.

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Graciliano faz um belo relato sobre o fazer artístico. Entretanto, há uma contradição em sua carta. Nesse trecho, ele ressalta: "As caboclas da nossa terra são meio selvagens, quase inteiramente selvagens. Como pode você adivinhar o que se passa na alma delas? Você não bate bilros nem lava roupas".

É uma provocação. Porém, o próprio escritor parece que não levou essa "dica" a sério, afinal, ele é o autor de Vidas Secas (1938). Um romance que retrata a miséria e a sobrevivência dos retirantes. E como é de conhecimento público, Graciliano era um homem de classe média, que nunca passou necessidade, assim como sua irmã.

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