segunda-feira, 11 de maio de 2015
A Irmandade Da Uva - John Fante Em Estado Puro
John Fante é um caso raro de escritor que não publicou livros ruins. Sua produção não é vasta, é verdade - foram seis livros em vida e mais alguns póstumos, totalizando catorze -, mas, de qualquer forma, é um grande feito só escrever boas histórias.
Fante é amplamente reconhecido por Pergunte ao Pó - o clássico que inspirou Charles Bukowski -, entretanto, sua bibliografia tem outros achados como Sonhos de Bunker Hill - romance que ditou para sua esposa no final de sua vida, quando já estava cego devido à diabetes -, Espere a Primavera, Bandini, 1933 Foi um Ano Ruim e, o mais recente, A Irmandade da Uva.
Todas suas histórias são escritas em primeira pessoa, com personagens que nada mais são que alter-egos do autor - Arturo Bandini, Dominic ou Henry Molise -, relatando as dificuldades de um pobre imigrante italiano tentando se virar nos Estados Unidos.
Em A Irmandade da Uva o panorama não muda, mas o foco sai do alter-ego - ele ainda está lá - e é deslocado para o pai de Fante, ops, o pai de Henry, o rabugento e bêbado Nick Molise. Sem dúvida, é a história mais madura do autor - foi escrita um ano antes de sua morte e parece um ajuste de contas com o tempo. É ambientada na pacata cidade de San Elmo e retrata uma relação confusa e tardia entre um pai e um filho. Não há pieguice, há, sim, a habitual ironia e as belas descrições que Fante sabe construir. E pra não fugir da regra, há também há aquele ritmo característico do autor, que, segundo seu fã ilustre, Bukowski, vêm "das entranhas e do coração".
Vale a pena transcorrer as 223 páginas. É Fante em estado puro. Alguns trechos do livro:
(...)
Na verdade, não foi a primeira vez que o chefe da família Molise fez papel de tolo em público. Poucos meses antes ele havia enfrentado um jovem barman do Onyx Club que lhe deu uns bons socos e o jogou na rua: ele levantou um banco pesado e arremessou através das vidraças do bar. O estrago me custou cem dólares, que paguei mandando um cheque e, graças a Regan, o caso nunca chegou ao tribunal.
De fato, ao longo dos anos, pelas esquinas, em bares e postos eleitorais, Nick Molise havia se metido em tantas brigas que o bom nome da família ficou seriamente comprometido na cidade. Ainda assim, os cidadãos manifestavam tolerância e boa vontade, pois todo mundo gostava do velho e se divertia com seu jeitão explosivo. Irritadiço, barulhento, abusando da paciência dos outros, bêbado na maior parte do tempo, ele tinha as rédeas soltas em San Elmo; e à noite, quando o ouviam se arrastar de volta para casa ao longo de ruas desertas, entoando péssimas versões de O Sole Mio, as pessoas sossegadas em suas camas diziam: "Lá vai o velho Nick”, e sorriam, pois ele fazia parte de suas vidas.
(...)
Escolhemos ficar em silêncio enquanto eu dirigia para o Aeroporto – vinte minutos de óxidos nitrosos fedorentos ao longo da Coast Highway, Harriet mal-humorada e furiosa no canto, fumando um cigarro após o outro. Seu jeito de fumar sempre me divertia porque ela não tragava, apenas sugava a fumaça para a boca e a expelia pelo nariz, mas rápido, o cigarro quase pegando fogo.
Em voz baixa, e em tom casual, ela disse:
- Posso lhe contar uma coisa sobre seu pai?
- O quê?
- Algo que nunca lhe contei antes.
- O que é?
- Prometa que não vai passar adiante.
- Ora, porra, Harriet...
- Ele deu em cima de mim.
A revelação não causou nenhum efeito sobre mim – era como dizer que meu pai bebia muito vinho. Olhei direto para frente, esperando que ela preenchesse a data e a circunstância.
(...)
- Papai, quero que ouça com atenção o que vou dizer. Quero que o senhor seja sensato. Meu negócio, como sabe, é escrever. Seu negócio é construir coisas. Tudo o que sei fazer é enfileirar uma palavra depois da outra como contas num colar. Tudo o que o senhor sabe é empilhar uma pedra sobre a outra. Não sei como colocar tijolos ou misturar argamassa. Não quero saber. Tenho coisas a fazer. Tenho um compromisso. Um compromisso é um contrato. Existe um homem em Nova York, um editor, que está me pagando para escrever um livro. Ele está à espera desse livro. Já o espera há mais de um ano. Está perdendo a paciência. Manda-me cartas zangadas. Telefona e me xinga com palavrões. Ameaça me processar. Entende o que eu estou dizendo, papai?
- Vou lhe dizer uma coisa sobre Monte Casino – falou. – Você vai se sentir melhor. Vai ficar mais saudável. Está se preocupando com o quê? Falei alguma coisa sobre não escrever? Traga lápis e papel. Peça a mamãe. Ela tem um monte de papel na despensa. Escreva a hora que quiser. Escreva alguma coisa sobre as montanhas. Escreva à noite, depois do trabalho. É quieto lá em cima. Conhece as corujas? Vai poder ouvir as corujas. E os coiotes. Paz, silêncio, purificam a mente. Vai escrever melhor.
Eu gemi.
- E Garcia, seu velho carregador de pedras?
- Morreu.
- E Red Griffin?
- Morreu.
- Aquele negro, Campbell.
- Morrendo.
- Tem que haver alguém vivo por aqui além de mim! Tem que haver!
- Já se foram, todos se foram.
(...)
Passadas duas horas, tínhamos usado as pedras menores e ele tentava permanecer ereto, mas sua região lombar estava trincada e não tinha como prosseguir. Curvado como um primata, arrastou-se até o riacho e ergueu a jarra. Agachou-se no terreno e bebeu o vinho frio. Seu rosto foi tomado de tristeza, os olhos se encheram de decepção. A floresta o observava e compreendia sua dor. As árvores suspiraram. Pássaros tagarelavam, alarmados. O céu o fitava num azul compassivo. Meu pai, meu pobre velho pai! Fora derrotado e sabia disso, embora não admitisse. Construíra sua parcela de edificações em pedra, igreja, escolas e pelo menos uma biblioteca, mas agora encontrava uma dificuldade dos diabos para erguer um defumador de três metros de altura, sem janelas e com apenas uma porta.
Deixemos o fracasso assentar, pensei, deixemos que reconheça o fato de que o serviço está além de suas forças e de sua idade, deixemos que jogue fora a desempenadeira para dar o fora dessa montanha e ir pra casa. Que Deus abençoe os cervos!
(...)
Os trechos foram extraídos das páginas 13, 26, 60-61 e 149, respectivamente.
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