Meu amigo Sérgio Rodrigues protestou outro dia ("Vandalizar livros é a última moda", 24/10) contra os decoradores de ambientes que destroem livros para usá-los como objetos de adorno em casas de novos-ricos. Capas, lombadas e contracapas, pela incômoda variedade de cores, são arrancadas para que pilhas de seu miolo, convenientemente monocromático, enfeitem paredes. É uma tendência, e das mais lucrativas.
O cliente que aceita isso de seu decorador passa um atestado de cafona para si próprio. Ninguém é obrigado a gostar de livros, mas quem vê neles objetos de decoração é porque desconfia que devam conferir algum prestígio. Mas, se os livros só servirem para enfeitar uma parede, e aos pedaços, vamos todos sentar no meio-fio e chorar.
O desprezo pelo objeto cultural não se limita aos livros. Há não muito, vi num sebo de São Paulo uma pilha de vinis sem capa, mais alta do que eu. Perguntei ao empregado como fazer para procurar neles alguma coisa interessante. Respondeu-me que não eram para isso, mas para serem comprados em lotes –para servir como decoração de festas, pendurados do teto, ou derretidos para se transformar em vasos. Ao ouvir aquilo, deu-me uma sensação de perda. Talvez não houvesse ali nenhuma Nona Sinfonia, mas qualquer disco contendo música foi gravado na esperança de ser ouvido.
E não apenas livros e discos surrados são tratados como lixo. Papéis velhos têm como habitual destino a caçamba do caminhão ou o incinerador, sem que alguém fique sabendo o que havia neles de escrito ou impresso. Sua única chance de sobrevivência é quando vão parar na feira de antiguidades numa praça de nossa cidade. É daqueles maços de papéis empoeirados e comidos por ratos que costumam ressurgir os originais inéditos dos escritores.
Há dias, em Pompeia, na Itália, descobriu-se na casa de um comerciante um quadro que estava lá, abandonado, havia 50 anos. A dona da casa o achava "horrível". Era um retrato cubista da poeta Dora Maar por seu amante —Picasso—, considerado perdido. No mercado, chegará a 12 milhões de euros. O desprezo pela cultura pode custar caro.
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Ruy Castro (Folha de São Paulo. 6 de novembro de 2024)