terça-feira, 26 de novembro de 2019

Tampa da Vida – Trecho de Falcão Maltês, de Dashiel Hammett


Um homem chamado Flitcraft deixou um dia o escritório de sua empresa de carvão, em Tacoma, para tomar um lanche, e nunca mais voltou. Faltou a um compromisso para jogar golfe nessa tarde, depois das quatro horas, apesar de ter sido marcado por sua iniciativa menos de meia hora antes de sair para o lanche. Sua mulher e os filhos nunca tornaram a vê-lo. Ele e a mulher pareciam estar nas melhores relações. Tinha dois filhos, meninos, um de cinco anos, outro de três. Possuía casa própria, num subúrbio de Tacoma, um Packard novo, e tudo o mais que faz parte da vida de um americano em próspera situação. Flitcraft herdara setenta mil dólares de seu pai, e devido ao seu êxito com o carvão, estava com cerca de duzentos mil dólares, quando sumiu. Seus negócios se achavam em ordem, apesar de haver alguns incompletos, em número suficiente para indicar que não os estivera arrumando de propósito, com o fim de desaparecer. Uma transação que lhe daria um lucro sedutor, por exemplo, estava para ser concluída no dia seguinte ao do seu desaparecimento. Nada indicava que tivesse consigo mais do que cinqüenta ou sessenta dólares, quando sumiu. Seus hábitos, nos meses anteriores, podiam ser estimados como muito metódicos, para justificar qualquer suspeita de vícios ocultos, ou mesmo de outra mulher em sua vida. Assim, qualquer dessas hipóteses era quase impossível. — Ele sumiu — disse Spade — como um punho, quando se abre a mão.

(…)

Bem, isso foi em 1922. Em 1927, eu trabalhava numa das grandes agências de detetives de Seattle. A sra. Flitcraft nos procurou e nos contou que alguém vira um homem em Spokane que se parecia muito com o seu marido. Dirigi-me para lá. Era Flitcraft, realmente. Vivia em Spokane, havia alguns anos, como Charles (era esse o seu primeiro nome) Pierce. Tinha um negócio de automóveis que estava lhe rendendo de vinte a vinte e cinco mil dólares líquidos por ano, uma esposa, um filhinho, possuía uma casa em um subúrbio de Spokane, e normalmente saía para jogar golfe depois das quatro horas da tarde, durante a temporada. Spade não tinha sido muito bem instruído sobre o que devia fazer, quando achou Flitcraft. Conversaram no quarto de Spade, no Davenport. Flitcraft não se sentia culpado. Tinha deixado sua primeira família bem amparada, e o que fizera parecia-lhe perfeitamente justo. A única coisa que o aborrecia era a dúvida de que pudesse demonstrar isso a Spade. Nunca contara a sua história a ninguém, e assim não se vira obrigado a tentar essa demonstração. Tentou nessa ocasião. — Compreendi perfeitamente — asseverou Spade a Brigid O'Shaughnessy —, mas a sra. Flitcraft nunca conseguiu entender. Achava absurdo. Talvez fosse. De qualquer maneira, tudo acabou bem. Ela não queria escândalo, depois da peça que ele lhe pregou, no seu modo de ver, também não o queria mais. Assim, divorciaram-se sem barulho, e tudo ficou bem.

— Veja o que lhe aconteceu. No caminho para o lanche, passou por um prédio em construção. Um andaime, ou coisa parecida, caiu de uns oito ou dez andares, e arrebentou o passeio ao seu lado, passando muito próximo dele, mas sem acertá-lo, apesar de um estilhaço do passeio atingir-lhe o rosto. Arrancou-lhe apenas um pouco da pele, mas tinha ainda a cicatriz, quando eu o vi, e ele a esfregou com o dedo, carinhosamente, quando me falou nela. Ficou bastante assustado, disse, mas mais chocado do que realmente amedrontado. Sentia-se como se alguém tivesse tirado a tampa da vida, e o deixasse ver o seu funcionamento. Flitcraft fora um bom cidadão, bom marido e pai, não por influência estranha, mas simplesmente porque era um homem que se sentia melhor quando de acordo com o ambiente. Tinha sido criado assim. Todos os seus amigos também. A vida que ele conhecia era uma coisa sã, limpa, ordenada, cheia de responsabilidades. Mas um andaime que caiu mostrou-lhe que a vida, fundamentalmente, não era nada disso. Ele, o bom cidadão, marido e pai, podia ter sido varrido para fora entre o escritório e o restaurante, pela queda acidental de um andaime. Ficou então sabendo que se podia morrer assim por acaso, e viver apenas enquanto a sorte cega nos poupasse. Não era, em princípio, a injustiça disso o que o perturbava: ele a aceitou, após o primeiro choque. O que o perturbava era a descoberta de que, ordenando sensatamente suas ocupações, saíra do ritmo da vida, em vez de se manter nele. Disse que teve consciência, antes de se afastar uns cinco metros do andaime caído, de que nunca teria tranqüilidade de novo, enquanto não tivesse se reajustado a essa nova concepção de vida. Ao acabar de tomar o lanche, tinha achado os meios de se ajustar. A vida podia terminar para ele, por acaso, sob um andaime; ele transformaria a vida, por acaso, simplesmente partindo. Amava a família, disse ele, tanto quanto supunha, mas sabia que a deixava convenientemente amparada, e que seu amor por ela não era de tal espécie que tornasse sua ausência dolorosa.

— Dirigiu-se a Seattle nessa tarde — continuou Spade — e daí veio de navio a San Francisco. Durante alguns anos errou por aqui, e então rumou de volta ao noroeste, estabeleceu-se em Spokane, e casou-se. Sua segunda mulher não era igual à primeira, mas eram mais parecidas do que diferentes. Você sabe, dessa espécie de mulheres que jogam corretamente golfe e bridge, e gostam de receitas novas de salada. Ele não se arrependia do que tinha feito. Parecia-lhe bastante justo. Penso que nem mesmo tinha consciência de que tornara a se estabelecer nas mesmas bases das quais tinha fugido de Tacoma. Mas essa é a parte da história que sempre me agradou. Ele se ajustou aos andaimes que caem, e então não caiu mais nenhum, e ele se ajustou aos andaimes que não caem.

---------------

Trecho de Falcão Maltês, de Dashiel Hammett.

Curiosidade: Essa pequena história, contada pelo personagem principal, o detetive Sam Spade,  serve de mote para a trama de Noite do Oráculo, de Paul Auster.

Nenhum comentário:

Postar um comentário