Quanto tempo ficou
no campo?
Dois meses. Eu era
cozinheiro, então trabalhava na tropa da cozinha. Meu trabalho era alimentar os
sobreviventes. Você deve ter lido as histórias de que alguns não conseguiam
parar de comer. Os desnutridos. Tinham pensado em comida durante tanto tempo,
que não conseguiam se controlar. Comiam até o explodir a morriam. Centenas
deles. No segundo dia, uma mulher veio falar comigo com um bebê no colo. Tinha
perdido a cabeça, essa mulher, dava pra ver, dava pra ver nos olhos dela
ficavam dançando nas órbitas, tão magra, tão mal alimentada, eu não entendia
como conseguia ficar em pé. Não pediu comida nenhuma, mas queria que eu desse
leite para o bebê. Fiquei contente de servir, mas quando ela me deu a criança,
viu que estava morta, que fazia dias que estava morta. O rostinho todo enrugado
e preto, mais preto que a minha cara, uma coisinha que não pesava quase nada,
só pele enrugada, pus seco e ossos sem peso. A mulher continuou implorando
leite, e então eu despejei um pouco de leite na boca do bebê. Não sabia mais o
que fazer. Despejei leite na boca do bebê morto, e aí a mulher pegou o bebê de
volta – tão feliz, tão feliz que começou a cantarolar, quase cantar mesmo,
cantando de um jeito amoroso, alegre. Não sei se algum dia vi alguém mais
contente do que ela naquele momento, indo embora com o bebê morto nos braços,
cantando porque tinha finalmente conseguido dar um pouco de leite para ele.
Fiquei olhando a mulher se afastar. Ele se arrastou uns cinco metros e aí os
joelhos dela cederam e, antes que eu pudesse chegar e segurar, ela caiu morta
na lama. Foi por causa disso que a coisa começou para mim. Quando vi essa
mulher morrer, entendi o que eu ia ter que fazer alguma coisa. Não podia
simplesmente voltar para casa depois da guerra e esquecer tudo. Tinha que
guardar aquele lugar na minha cabeça, de continuar a pensando naquilo todos os
dias até o resto da minha vida.
(…)
Trecho de Noite
do Oráculo, romance de Paul Auster (editora Cia das Letras, 2004).
Muito triste, e ainda existe, mas estamos longe, nao vemos, mas está lá...homens da guerra de escritorio com suas barrigas gordas levando tantos inocentes á um caminho sem volta. Nem imagino como ficaram a saude mental ddesses sobreviventes
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