sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Não Podia Simplesmente Voltar para Casa Depois da Guerra e Esquecer Tudo

(...)


Quanto tempo ficou no campo?
Dois meses. Eu era cozinheiro, então trabalhava na tropa da cozinha. Meu trabalho era alimentar os sobreviventes. Você deve ter lido as histórias de que alguns não conseguiam parar de comer. Os desnutridos. Tinham pensado em comida durante tanto tempo, que não conseguiam se controlar. Comiam até o explodir a morriam. Centenas deles. No segundo dia, uma mulher veio falar comigo com um bebê no colo. Tinha perdido a cabeça, essa mulher, dava pra ver, dava pra ver nos olhos dela ficavam dançando nas órbitas, tão magra, tão mal alimentada, eu não entendia como conseguia ficar em pé. Não pediu comida nenhuma, mas queria que eu desse leite para o bebê. Fiquei contente de servir, mas quando ela me deu a criança, viu que estava morta, que fazia dias que estava morta. O rostinho todo enrugado e preto, mais preto que a minha cara, uma coisinha que não pesava quase nada, só pele enrugada, pus seco e ossos sem peso. A mulher continuou implorando leite, e então eu despejei um pouco de leite na boca do bebê. Não sabia mais o que fazer. Despejei leite na boca do bebê morto, e aí a mulher pegou o bebê de volta – tão feliz, tão feliz que começou a cantarolar, quase cantar mesmo, cantando de um jeito amoroso, alegre. Não sei se algum dia vi alguém mais contente do que ela naquele momento, indo embora com o bebê morto nos braços, cantando porque tinha finalmente conseguido dar um pouco de leite para ele. Fiquei olhando a mulher se afastar. Ele se arrastou uns cinco metros e aí os joelhos dela cederam e, antes que eu pudesse chegar e segurar, ela caiu morta na lama. Foi por causa disso que a coisa começou para mim. Quando vi essa mulher morrer, entendi o que eu ia ter que fazer alguma coisa. Não podia simplesmente voltar para casa depois da guerra e esquecer tudo. Tinha que guardar aquele lugar na minha cabeça, de continuar a pensando naquilo todos os dias até o resto da minha vida. 

(…)

Trecho de Noite do Oráculo, romance de Paul Auster (editora Cia das Letras, 2004). 

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

A Saudade Mata a Gente



A Saudade Mata a Gente
Composição: João de Barro / Antônio Almeida

Fiz meu rancho na beira do rio
Meu amor foi comigo morar
E na rede nas noites de frio
Meu bem me abraçava pra me agasalhar
Mas agora, meu Deus, vou-me embora
Vou-me embora e não sei se vou voltar
A saudade nas noites de frio
Em meu peito vazio virá se aninhar

A saudade mata a gente, morena
A saudade mata a gente





terça-feira, 26 de novembro de 2019

Tampa da Vida – Trecho de Falcão Maltês, de Dashiel Hammett


Um homem chamado Flitcraft deixou um dia o escritório de sua empresa de carvão, em Tacoma, para tomar um lanche, e nunca mais voltou. Faltou a um compromisso para jogar golfe nessa tarde, depois das quatro horas, apesar de ter sido marcado por sua iniciativa menos de meia hora antes de sair para o lanche. Sua mulher e os filhos nunca tornaram a vê-lo. Ele e a mulher pareciam estar nas melhores relações. Tinha dois filhos, meninos, um de cinco anos, outro de três. Possuía casa própria, num subúrbio de Tacoma, um Packard novo, e tudo o mais que faz parte da vida de um americano em próspera situação. Flitcraft herdara setenta mil dólares de seu pai, e devido ao seu êxito com o carvão, estava com cerca de duzentos mil dólares, quando sumiu. Seus negócios se achavam em ordem, apesar de haver alguns incompletos, em número suficiente para indicar que não os estivera arrumando de propósito, com o fim de desaparecer. Uma transação que lhe daria um lucro sedutor, por exemplo, estava para ser concluída no dia seguinte ao do seu desaparecimento. Nada indicava que tivesse consigo mais do que cinqüenta ou sessenta dólares, quando sumiu. Seus hábitos, nos meses anteriores, podiam ser estimados como muito metódicos, para justificar qualquer suspeita de vícios ocultos, ou mesmo de outra mulher em sua vida. Assim, qualquer dessas hipóteses era quase impossível. — Ele sumiu — disse Spade — como um punho, quando se abre a mão.

(…)

Bem, isso foi em 1922. Em 1927, eu trabalhava numa das grandes agências de detetives de Seattle. A sra. Flitcraft nos procurou e nos contou que alguém vira um homem em Spokane que se parecia muito com o seu marido. Dirigi-me para lá. Era Flitcraft, realmente. Vivia em Spokane, havia alguns anos, como Charles (era esse o seu primeiro nome) Pierce. Tinha um negócio de automóveis que estava lhe rendendo de vinte a vinte e cinco mil dólares líquidos por ano, uma esposa, um filhinho, possuía uma casa em um subúrbio de Spokane, e normalmente saía para jogar golfe depois das quatro horas da tarde, durante a temporada. Spade não tinha sido muito bem instruído sobre o que devia fazer, quando achou Flitcraft. Conversaram no quarto de Spade, no Davenport. Flitcraft não se sentia culpado. Tinha deixado sua primeira família bem amparada, e o que fizera parecia-lhe perfeitamente justo. A única coisa que o aborrecia era a dúvida de que pudesse demonstrar isso a Spade. Nunca contara a sua história a ninguém, e assim não se vira obrigado a tentar essa demonstração. Tentou nessa ocasião. — Compreendi perfeitamente — asseverou Spade a Brigid O'Shaughnessy —, mas a sra. Flitcraft nunca conseguiu entender. Achava absurdo. Talvez fosse. De qualquer maneira, tudo acabou bem. Ela não queria escândalo, depois da peça que ele lhe pregou, no seu modo de ver, também não o queria mais. Assim, divorciaram-se sem barulho, e tudo ficou bem.

— Veja o que lhe aconteceu. No caminho para o lanche, passou por um prédio em construção. Um andaime, ou coisa parecida, caiu de uns oito ou dez andares, e arrebentou o passeio ao seu lado, passando muito próximo dele, mas sem acertá-lo, apesar de um estilhaço do passeio atingir-lhe o rosto. Arrancou-lhe apenas um pouco da pele, mas tinha ainda a cicatriz, quando eu o vi, e ele a esfregou com o dedo, carinhosamente, quando me falou nela. Ficou bastante assustado, disse, mas mais chocado do que realmente amedrontado. Sentia-se como se alguém tivesse tirado a tampa da vida, e o deixasse ver o seu funcionamento. Flitcraft fora um bom cidadão, bom marido e pai, não por influência estranha, mas simplesmente porque era um homem que se sentia melhor quando de acordo com o ambiente. Tinha sido criado assim. Todos os seus amigos também. A vida que ele conhecia era uma coisa sã, limpa, ordenada, cheia de responsabilidades. Mas um andaime que caiu mostrou-lhe que a vida, fundamentalmente, não era nada disso. Ele, o bom cidadão, marido e pai, podia ter sido varrido para fora entre o escritório e o restaurante, pela queda acidental de um andaime. Ficou então sabendo que se podia morrer assim por acaso, e viver apenas enquanto a sorte cega nos poupasse. Não era, em princípio, a injustiça disso o que o perturbava: ele a aceitou, após o primeiro choque. O que o perturbava era a descoberta de que, ordenando sensatamente suas ocupações, saíra do ritmo da vida, em vez de se manter nele. Disse que teve consciência, antes de se afastar uns cinco metros do andaime caído, de que nunca teria tranqüilidade de novo, enquanto não tivesse se reajustado a essa nova concepção de vida. Ao acabar de tomar o lanche, tinha achado os meios de se ajustar. A vida podia terminar para ele, por acaso, sob um andaime; ele transformaria a vida, por acaso, simplesmente partindo. Amava a família, disse ele, tanto quanto supunha, mas sabia que a deixava convenientemente amparada, e que seu amor por ela não era de tal espécie que tornasse sua ausência dolorosa.

— Dirigiu-se a Seattle nessa tarde — continuou Spade — e daí veio de navio a San Francisco. Durante alguns anos errou por aqui, e então rumou de volta ao noroeste, estabeleceu-se em Spokane, e casou-se. Sua segunda mulher não era igual à primeira, mas eram mais parecidas do que diferentes. Você sabe, dessa espécie de mulheres que jogam corretamente golfe e bridge, e gostam de receitas novas de salada. Ele não se arrependia do que tinha feito. Parecia-lhe bastante justo. Penso que nem mesmo tinha consciência de que tornara a se estabelecer nas mesmas bases das quais tinha fugido de Tacoma. Mas essa é a parte da história que sempre me agradou. Ele se ajustou aos andaimes que caem, e então não caiu mais nenhum, e ele se ajustou aos andaimes que não caem.

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Trecho de Falcão Maltês, de Dashiel Hammett.

Curiosidade: Essa pequena história, contada pelo personagem principal, o detetive Sam Spade,  serve de mote para a trama de Noite do Oráculo, de Paul Auster.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Celular, Modos de Usar


Eu me dei conta de que o celular estava tomando demais o meu tempo quando meu filho, que tem um ano e meio, largou a bola, seu brinquedo favorito, e começou a querer brincar com o meu smartphone. Imagino que, na cabecinha dele, aquele aparelho com luz intermitente deva ser algo fabuloso, pois seu pai está vidrado nele por horas. O que tem de tão legal e divertido ali?, ele pensa. Certamente, algo muito melhor que ficar chutando uma bola.

Meu pequeno ainda não sabe concatenar frases, mas sabe como mexer em um smartphone. Imita seus pais, seus avós e todo mundo à sua volta, apertando os botões e passando o indicador por toda a tela. Um sinal dos tempos. E um sinal um tanto preocupante. Não sou o único pai angustiado. Para se ter uma ideia, Bill Gates, fundador da Microsoft e um dos "culpados" por disseminar esse vírus tecnológico em escala global, não permitiu que seus filhos tivessem celular antes dos 14 anos.

O smartphone e seus conteúdos atraentes, persuasivos, nos distraem do que realmente acontece à nossa frente. Comigo foi assim. Afinal, eu deveria estar me divertindo com meu filho e com aquela bola - que me divertiu por toda a infância, uma infância sem celular. Essa culpa de pai ausente, mesmo estando fisicamente presente, me fez buscar a quase utópica desconexão. Falo em utopia porque, atualmente, no Brasil, temos mais celulares do que pessoas: já são 215 milhões de aparelhos, para uma população de 211 milhões (ou seja, 102% de celulares em relação à população). Os números confirmam que estamos diante de uma realidade - virtual - inescapável. Ficar imune aos áudios, imagens, mensagens, publicações que esses aparelhinhos disparam parece um desejo quase impossível de se realizar.

Sou jornalista, portanto o smartphone é, para mim, também uma ferramenta de trabalho. Não tenho como abandoná-lo, nem sou ingênuo a esse ponto, pois correria o risco de me tornar mais um na lamentável estatística de 12,5 milhões de desempregados no país. Contudo, tenho me esforçado para usá-lo de forma racional e conforme sua verdadeira funcionalidade: ser apenas um dispositivo, e não uma extensão da minha vida. Eu quero e tenho que controlar essa conectividade, não o contrário. Um estudo da Google, realizado nos EUA, atestou que, em média, as pessoas checam cerca de 150 vezes o celular durante o dia. Devo estar próximo disso - ainda estou no início da "desintoxicação" - e me nego a achar essa postura normal.

O celular como é hoje, um minicomputador com milhares de funcionalidades e possibilidades, existe há 12 anos - a primeira geração do iPhone foi lançada em 29 de junho de 2007. Esse aparelho “esperto” – tão esperto que - já consome sozinho cerca de três horas do dia dos brasileiros. Somos o quinto lugar no ranking global de tempo despendido. Voltando ao meu próprio exemplo. Em um dia apenas, eu passei duas horas e trinta minutos - com 67 checagens ao aparelho - interagindo ou utilizando o celular, conforme o aplicativo Moment, que monitora acessos. Para quê tanta informação? Não tenho como acumular esse entulho de dados, textos, imagens, vídeos, interações. O resultado é uma crise de atenção. Estou constantemente disperso em futilidades notificadas em "tempo real". No fim do dia, só resta a exaustão física. Do que li, vi e interagi resta pouca coisa.

Algo que foi criado para ajudar e facilitar está atrapalhando e dificultando minha rotina, como todo vício faz. Preciso assumir essa dependência e buscar o tal uso consciente do celular. Se não fizer nada para mudar, já imagino essa conversa em 2025:

- Pai, como era a vida antes do Google?

- Não sei, filho, joga no Google e vê.

Lógico que esse diálogo entre duas pessoas hiperconectadas é uma brincadeira, mas confesso que um dos sintomas que a dependência digital tem me causado é o esquecimento. Até mesmo de como era vida antes da tecnologia. Lembram-se dos dicionários, das enciclopédias, de ter que perguntar para alguém como chegar a algum lugar, das televisões sem controle remoto, de só ficar sabendo das coisas um tempão depois? Pois é...

Outro problema, mais grave, é a consequente falta de tempo. Junto dele, as desculpas esfarrapadas para não escrever (esse texto, por exemplo), ler um livro, passear com a família, ir ao mercado, limpar a casa, visitar alguém. É desolador se dar conta disso. Uma vida que se esvai, atrelada a um aparelho de 15 centímetros, que cabe no bolso.

Por sorte, meu filho está me trazendo de volta à realidade e às coisas simples, as que realmente fazem a diferença. Ficarei bem melhor assim, com ele - e o mais longe possível do celular.

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Texto original publicado no site Mínimo Múltiplo

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Extinção - Poema Régis Bonvicino


Extinção

(Régis  Bonvicino)

O lobo-guará é manso...
foge diante de qualquer ameaça.
é solitário;
avesso ao dia, tímido,
detesta as cidades.


para fugir do ataque
cada vez mais inevitável
dos cachorros
atravessa estradas.
onde quase sempre é atropelado.


onívoro, com mandíbulas fracas
come pássaros, ratos, ovos, frutas.

às vezes, quando está perdido,
vasculha latas de lixo nas ruas.
engasga ao mastigar garrafas
de plástico ou isopores.

se corta  ou morre ao morder
lâmpadas fluorescentes
ou engolir fios elétricos.


morre ao lamber inseticidas...

ou restos de tinta
ou ao engolir remédios vencidos
ou seringas e agulhas
descartáveis !!

dócil, sem astúcia,
é facilmente capturado e morto
por traficantes de pele.


quando, então, uiva,

quando , então, uiva...





Texto recitado por Antônio Abujamra em seu programa da TV Cultura, Provocações.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Vaidade e Teimosia


Comigo as palavras são só palavras. Não tenho pose de artista. Não tenho bandeiras - que não seja a bandeira da Literatura, que fique bem claro.

E, hoje, isso significa não ter representatividade artística, não ter um grupo a qual pertencer, não ter uma prateleira de destaque.

Um conto meu com a temática homoafetiva não é um conto com a temática homoafetiva, por exemplo. Porque eu, o autor, não hasteei a bandeira. Agindo dessa forma, como um apátrida, apequeno minha obra.

Meus personagens se queixam para mim, porque querem ter vida própria. Me tiram o sono à noite com suas cantilenas. "Sou o criador, não a criatura, meu Deus!", eu digo a eles e mando se calarem que já é tarde.

No fundo, até os entendo. Sei que me falta a afetação necessária, a mão amparando o queixo na foto da contracapa do livro, o olhar distante e a causa certa a que lutar - a causa que o momento pede.

Eu sei como e o que fazer. Mas, simplesmente, me nego. 

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

A Primeira Impressão de Dummy, disco do Portishead


Portishead redefine 'cool' com músicas angustiadas
Banda junta ritmo e depressão no melhor álbum de 95

ZECA CAMARGO
EDITOR DA ILUSTRADA

Já é maio, quase meio do ano, então já dá para usar aquele clichê favorito dos críticos de música: ``Se você tiver que comprar só um disco este ano, tem que ser este". No caso, o álbum é ``Dummy", do Portishead.
Por enquanto, ele só existe importado no Brasil. Custa um pouco mais caro, claro. Mas, para juntar R$ 25 ou até R$ 30 para este fim, qualquer esforço é justificado. Se necessário, roube.
Mas atenção: ouvir Portishead não é uma experiência das mais alegres.
Dá para dançar, é verdade -dentro do novo ritmo que a turma de Bristol acabou impondo à temporada (leia texto nesta página). Mas ouça ``Dummy" preparado para terminar em lágrimas.
Esta expressão, aliás, é tirada de um dos álbuns mais importantes dos anos 80, ``It'll End in Tears", do This Mortal Coil.
Fundamental para entender a melancolia das bandas inglesas da década passada, ``Tears" é uma boa referência para o trabalho da banda, ainda que só pelo teama.
Dez anos depois (``Dummy" foi lançado no segundo semestre de 94 na Inglaterra), o Portishead retomaria a depressão do This Mortal Coil, só que a elevando ao nível do ultra-sublime -quase à beira do suicídio.
E, só lembrando, mesmo com essa tristeza toda, é possível dançar ao som de Portishead.
Só nos Estados Unidos eles já venderam 400 mil cópias. Mais 250 mil na Inglaterra e algo como 200 mil no resto da Europa. Isto é, no mínimo, uma boa conta para quem não tinha a menor pretensão de fazer sucesso.
Aos 30 anos, a cantora Beth Gibbons já tinha certamente passado de qualquer pretensão adolescente de se tornar uma popstar.
Mais jovem, Geoff Barrow, 23, é um daqueles ratos de estúdio pouco interessados em colocar suas cabeças para fora.
Fora que eles vêm da cidade que dá nome à banda, a oeste de Bristol (costa oeste da Inglaterra).
Nos parâmetros normais do mercado de música pop, o apelo comercial do Portishead seria igual a zero. Sua melancolia não se refere à angústia calculada da corja pós-grunge americana.
Beth Gibbons também não tem nem um traço sequer de ``popstar".
Então uma das explicações possíveis pode ser a sua voz. Tem que ser.
As comparações na imprensa musical internacional não são muito criativas. Elas se repetem entre Edith Piaf e Billie Holliday. Mas você pode jogar qualquer outro elemento para descrevê-la.
Gibbons tem o ``non-chalance" de Debbie Harry (Blondie), a sofisticação de Sade, a distância de Tracy Thorn (Everything But the Girl), a clareza de Alice Statton (Weekend), a fragilidade de Dolores O'Riordan (Cranberries) etc.
É como se cada faixa de ``Dummy" sugerisse uma inspiração de Beth. Ela vem forte em ``Glory Box", quando canta o lugar-comum ``I just to be a woman" (``eu só quero ser uma mulher").
Ou vem indefesa em ``Sour Times" ao confessar ``nobody loves me just like you do" (``ninguém me ama como você"), sua voz é um convite à doce sedução da destruição emocional. Resista -é melhor para você.
Só que, se fosse só pela voz, Beth poderia entrar para a lista de talentos perdidos que gravitam no universo pop. Suas chances eram realmente poucas.
Mas a tristeza era profunda. E provavelmente a necessidade de milhares de pessoas de se identificar com isso também.
As músicas de ``Dummy" falam basicamente de solidão: ``Essa solidão que não me deixa só", como Gibbons canta na faixa ``Dumb".
O verso é obviamente cínico, já que a impressão é de que ela não quer deixar de sentir-se assim.
Solidão é a inspiração para o grupo. Mais que isso, é uma obsessão, um meio e um fim a ser degustado, um assunto do qual não se fala, mas se vive.
É uma maneira de preencher um vazio entre uma decepção emocional e a decisão de não viver mais.
O estado de espírito miserável das músicas do Portishead é tão invejável que, na esperança de ouvir novas composições no futuro, você até torce para que eles nunca encontrem alguém que os satisfaça.
Egoísmo explícito, correto. Mas tudo que você quer depois de ouvir ``Dummy" é que eles prolonguem esse clima, esse ``ennui". Pelo menos para você poder dançar um pouco mais.

Publicado originalmente em 1º de maio de 1995