sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

A Quatro Mãos

Escrever é sempre um ato solitário. Por isso, estranhei a experiência de criar um continho com a parceria do amigo Jeison Karnal, que deu o pontapé inicial da história. Mas topei e gostei do resultado. O texto foi originalmente publicado no jornal Diário de Canoas, dia 22 de dezembro, com ilustração de Emerson Wiskow.



Não me Engana
Aquele gordinho do metrô que pedia dinheiro para levar sopão aos pobres e agora vende fones de ouvido piratas a cinco reais. Não me engana.
O coxo que não pode mais trabalhar porque sofreu um acidente e a Justiça brasileira não olha por ele, não me engana.
O velho com o recorte de jornal, dizendo que o filho tem duas línguas dentro da boca, não me engana.
A esquelética chorona que usa a doença rara do suposto filho e um suposto leite caríssimo para faturar e comprar pedra, não me engana.
O bilhete que a mulher com o bebê no colo atira nos passageiros, implorando ajuda, não me engana.
Muito menos o palhaço fedorento, magrelo e alto, que faz piadas sem graça e grita e jura que aquela alegria patética ajuda alguém com câncer no Hospital da Santa Casa.
Não me engana o andarilho sem sotaque que precisa de dinheiro para comprar uma passagem na rodoviária e voltar para casa no interior.
Não me engana o marginal na plataforma que cola o nariz na minha cara para arrancar qualquer nota amassada, sem classe, sem “por favor” nem “muito obrigado”.
Não me engana o doente terminal que levanta a camisa para mostrar metade das vísceras e faturar algum níquel.
Também não me engana o zumbi que desenrola as ataduras e mostra as ulcerações, os pinos, para assustar quem toma uma coca-cola e abocanha um salgadinho antes de ir para a faculdade.
Não me engana a criança sujinha e ingênua que estende as mãozinhas com as unhas imundas para recolher qualquer moeda para o pai bêbado dormindo em casa. Não me engana.
O maquinista sem ânimo anunciando o fim da linha nos alto-falantes e me tirando do torpor. A velha mendiga banguela dizendo para a outra velha mendiga banguela que antigamente viver na rua era melhor. Eles não me enganam.
A guria que masca chiclé e cospe os clichês que aprendeu no Curso de Sociologia da Federal enquanto entrega panfletos sobre a revolução que está para chegar. É, claro, não me engana.

Tampouco o vereador baixinho, mau hálito, que trabalha em nome da preservação da família, que veio aqui em casa e prometeu dois sacos de cimento e um punhado de tijolos para eu ajudar o partido na próxima eleição.

Ele não me engana. Disse que Deus tem um plano pra mim e que devo me cuidar com aqueles que deturpam as palavras sagradas. Essa historinha não engana. Nem meus parentes e muito menos meus vizinhos.
Nós ficamos com os sacos de cimento e os tijolos. Tem um que já ergueu muro. Outro fez puxado. Um vendeu a parte dele pro cunhado.
Melhor esse vereador passar mais grana, porque ele não me engana. Vou fazer campanha. Bandeiraço e estardalhaço. Ganhar um cargo e comprar um carro. Esse maldito trem nunca mais. Nunca mais.

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