terça-feira, 25 de agosto de 2015

A Hora e a Vez dos Clássicos: O Pirotécnico Zacarias - Murilo Rubião

Autor de O Ex-Mágico, O Pirotécnico Zacarias, A Casa do Girassol Vermelho, entre outros

O PIROTÉCNICO ZACARIAS
Murilo Rubião

"E se levantará pela tarde sobre ti uma luz como
a do meio-dia; e quando te julgares consumido,
nascerás como a estrela-d’alva".
Jó, XI, 17

Raras são as vezes que, nas conversas de amigos meus, ou
de pessoas das minhas relações, não surja esta pergunta. Teria
morrido o pirotécnico Zacarias?
A esse respeito as opiniões são divergentes. Uns acham
que estou vivo — o morto tinha apenas alguma semelhança
comigo. Outros, mais supersticiosos, acreditam que a minha
morte pertence ao rol dos fatos consumados e o indivíduo
a quem andam chamando Zacarias não passa de uma alma
penada, envolvida por um pobre invólucro humano. Ainda há
os que afirmam de maneira categórica o meu falecimento e
não aceitam o cidadão existente como sendo Zacarias, o artista
pirotécnico, mas alguém muito parecido com o finado.
Uma coisa ninguém discute: se Zacarias morreu, o seu
corpo não foi enterrado.
A única pessoa que poderia dar informações certas sobre
o assunto sou eu. Porém estou impedido de fazê-lo porque os
meus companheiros fogem de mim, tão logo me avistam pela
frente. Quando apanhados de surpresa, ficam estarrecidos e
não conseguem articular uma palavra.
Em verdade morri, o que vem ao encontro da versão dos
que creem na minha morte. Por outro lado, também não estou
morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais
agrado do que anteriormente.
A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um
negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho 
compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso
com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, tênue,
quase sem cor.
Quando tudo começava a ficar branco, veio um automóvel
e me matou.
— Simplício Santana de Alvarenga!
— Presente!
Senti rodar-me a cabeça, o corpo balançar, como se me
faltasse o apoio do solo. Em seguida fui arrastado por uma
força poderosa, irresistível. Tentei agarrar-me às árvores, cujas
ramagens retorcidas, puxadas para cima, escapavam aos meus
dedos. Alcancei mais adiante, com as mãos, uma roda de fogo,
que se pôs a girar com grande velocidade por entre elas, sem
queimá-las, todavia.
— “Meus senhores: na luta vence o mais forte e o momento
é de decisões supremas. Os que desejarem sobreviver ao tempo
tirem os seus chapéus!”
(Ao meu lado dançavam fogos de artifício, logo devorados
pelo arco-íris.)
— Simplício Santana de Alvarenga!
— Não está?
— Tire a mão da boca, Zacarias!
— Quantos são os continentes?
— E a Oceania?
Dos mares da China não mais virão as quinquilharias.
A professora magra, esquelética, os olhos vidrados, empunhava
na mão direita uma dúzia de foguetes. As varetas eram
compridas, tão longas que obrigavam dona Josefina a ter os pés
distanciados uns dois metros do assoalho e a cabeça, coberta
por fios de barbante, quase encostada no teto.
— Simplício Santana de Alvarenga!
— Meninos, amai a verdade!

A noite estava escura. Melhor, negra. Os filamentos brancos
não tardariam a cobrir o céu.
Caminhava pela estrada. Estrada do Acaba Mundo: algumas
curvas, silêncio, mais sombras que silêncio.
O automóvel não buzinou de longe. E nem quando já se
encontrava perto de mim, enxerguei os seus faróis. Simplesmente
porque não seria naquela noite que o branco desceria até a
terra.
As moças que vinham no carro deram gritos histéricos e
não se demoraram a desmaiar. Os rapazes falaram baixo, curaram-se
instantaneamente da bebedeira e se puseram a discutir
qual o melhor destino a ser dado ao cadáver.
A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um
negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho
compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso,
com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado,
quase sem cor. Sem cor jamais quis viver. Viver, cansar bem
os músculos, andando pelas ruas cheias de gente, ausentes de
homens.
Havia silêncio, mais sombras que silêncio, porque os rapazes
não mais discutiam baixinho. Falavam com naturalidade,
dosando a gíria.
Também o ambiente repousava na mesma calma e o cadá-
ver — o meu ensanguentado cadáver — não protestava contra
o fim que os moços lhe desejavam dar.
A ideia inicial, logo rejeitada, consistia em me transportar
para a cidade, onde me deixariam no necrotério. Após breve
discussão, todos os argumentos analisados com frieza, prevaleceu
a opinião de que meu corpo poderia sujar o carro. E havia
ainda o inconveniente das moças não se conformarem em viajar
ao lado de um defunto. (Nesse ponto eles estavam redondamente
enganados, como explicarei mais tarde.)

Um dos moços, rapazola forte e imberbe — o único que
se impressionara com o acidente e permanecera calado e aflito
no decorrer dos acontecimentos —, propôs que se deixassem
as garotas na estrada e me levassem para o cemitério. Os companheiros
não deram importância à proposta. Limitaram-se a
condenar o mau gosto de Jorginho — assim lhe chamavam — e
a sua insensatez em interessar-se mais pelo destino do cadáver
do que pelas lindas pequenas que os acompanhavam.
O rapazola notou a bobagem que acabara de proferir e, sem
encarar de frente os componentes da roda, pôs-se a assoviar,
visivelmente encabulado.
Não pude evitar a minha imediata simpatia por ele, em
virtude da sua razoável sugestão, debilmente formulada aos que
decidiam a minha sorte. Afinal, as longas caminhadas cansam
indistintamente defuntos e vivos. (Esse argumento não me
ocorreu no momento.)
Discutiram em seguida outras soluções e, por fim, consideraram
que me lançar ao precipício, um fundo precipício, que
margeava a estrada, limpar o chão manchado de sangue, lavar
cuidadosamente o carro, quando chegassem a casa, seria o alvitre
mais adequado ao caso e o que melhor conviria a possíveis
complicações com a polícia, sempre ávida de achar mistério
onde nada existe de misterioso.

Mas aquele seria um dos poucos desfechos que não me
interessavam. Ficar jogado em um buraco, no meio de pedras e
ervas, tornava-se para mim uma ideia insuportável. E ainda: o
meu corpo poderia, ao rolar pelo barranco abaixo, ficar escondido
entre a vegetação, terra e pedregulhos. Se tal acontecesse,
jamais seria descoberto no seu improvisado túmulo e o meu
nome não ocuparia as manchetes dos jornais.
Não, eles não podiam roubar-me nem que fosse um pequeno
necrológio no principal matutino da cidade. Precisava agir
rápido e decidido:
— Alto lá! Também quero ser ouvido.

Jorginho empalideceu, soltou um grito surdo, tombando
desmaiado, enquanto os seus amigos, algo admirados por verem
um cadáver falar, se dispunham a ouvir-me.
Sempre tive confiança na minha faculdade de convencer
os adversários, em meio às discussões. Não sei se pela força da
lógica ou se por um dom natural, a verdade é que, em vida, eu
vencia qualquer disputa dependente de argumentação segura e
irretorquível.
A morte não extinguira essa faculdade. E a ela os meus
matadores fizeram justiça. Após curto debate, no qual expus
com clareza os meus argumentos, os rapazes ficaram indecisos,
sem encontrar uma saída que atendesse, a contento, às minhas
razões e ao programa da noite, a exigir prosseguimento. Para
tornar mais confusa a situação, sentiam a impossibilidade de
dar rumo a um defunto que não perdera nenhum dos predicados
geralmente atribuídos aos vivos.
Se a um deles não ocorresse uma sugestão, imediatamente
aprovada, teríamos permanecido no impasse. Propunha incluir-me
no grupo e, juntos, terminarmos a farra, interrompida
com o meu atropelamento.
Entretanto, outro obstáculo nos conteve: as moças eram
somente três, isto é, em número igual ao de rapazes. Faltava
uma para mim e eu não aceitava fazer parte da turma desacompanhado.
O mesmo rapaz que aconselhara a minha inclusão
no grupo encontrou a fórmula conciliatória, sugerindo que
abandonassem o colega desmaiado na estrada. Para melhorar o
meu aspecto, concluiu, bastaria trocar as minhas roupas pelas
de Jorginho, o que me prontifiquei a fazer rapidamente.
Depois de certa relutância em abandonar o companheiro,
concordaram todos (homens e mulheres, estas já restabelecidas
do primitivo desmaio) que ele fora fraco e não soubera enfrentar
com dignidade a situação. Portanto, era pouco razoável
que se perdesse tempo fazendo considerações sentimentais em
torno da sua pessoa.

* * *
Do que aconteceu em seguida não guardo recordações muito
nítidas. A bebida, que antes da minha morte pouco me afetava,
teve sobre o meu corpo defunto uma ação surpreendente.
Pelos meus olhos entravam estrelas, luzes cujas cores ignorava,
triângulos absurdos, cones e esferas de marfim, rosas negras,
cravos em forma de lírios, lírios transformados em mãos. E a
ruiva, que me fora destinada, enlaçando-me o pescoço com o
corpo transmudado em longo braço metálico.
Ao clarear o dia, saí da semiletargia em que me encontrava.
Alguém me perguntava onde eu desejava ficar. Recordo-me
que insisti em descer no cemitério, ao que me responderam ser
impossível, pois àquela hora ele se encontrava fechado. Repeti
diversas vezes a palavra cemitério. (Quem sabe nem chegasse
a repeti-la, mas somente movesse os lábios, procurando ligar
as palavras às sensações longínquas do meu delírio policrô-
mico.)
Por muito tempo se prolongou em mim o desequilíbrio
entre o mundo exterior e os meus olhos, que não se acomodavam
ao colorido das paisagens estendidas na minha frente.
Havia ainda o medo que sentia, desde aquela madrugada, quando
constatei que a morte penetrara no meu corpo.
Não fosse o ceticismo dos homens, recusando-se aceitar-me
vivo ou morto, eu poderia abrigar a ambição de construir uma
nova existência.
Tinha ainda que lutar contra o desatino que, às vezes, se
tornava senhor dos meus atos e obrigava-me a buscar, ansioso,
nos jornais, qualquer notícia que elucidasse o mistério que cercava
o meu falecimento.
Fiz várias tentativas para estabelecer contato com meus
companheiros da noite fatal e o resultado foi desencorajador. E
eles eram a esperança que me restava para provar quão real fora
a minha morte.

No passar dos meses, tornou-se menos intenso o meu
sofrimento e menor a minha frustração ante a dificuldade de
convencer os amigos de que o Zacarias que anda pelas ruas da
cidade é o mesmo artista pirotécnico de outros tempos, com a
diferença de que aquele era vivo e este, um defunto.
Só um pensamento me oprime: que acontecimentos o destino
reservará a um morto se os vivos respiram uma vida agonizante?
E a minha angústia cresce ao sentir, na sua plenitude,
que a minha capacidade de amar, discernir as coisas, é bem
superior à dos seres que por mim passam assustados.
Amanhã o dia poderá nascer claro, o sol brilhando como
nunca brilhou. Nessa hora os homens compreenderão que,
mesmo à margem da vida, ainda vivo, porque a minha existência
se transmudou em cores e o branco já se aproxima da terra
para exclusiva ternura dos meus olhos.

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