Lembro de meus pais enfurecidos um com o outro. Enquanto o Fusca 74, de cor ocre marajó, segundo os documentos do veículo, circulava pelo Centro. Estava quente naquele dia. Discutiam aos berros. Poderia ser algo relativo a escolher um trajeto equivocado. Ou algo mais pessoal, sobre as chatices, teimosias e costumes, que nunca mudavam. Não adiantava mais tentar, nunca mudavam, diziam. A maldita sapiência de meu pai, que se mostrava sempre certo diante de tudo, ou o fato de minha mãe sempre esquecer de anotar as tarefas e, consequentemente, deixar de fazê-las, esses eram os tópicos recorrentes de seus acalorados debates pessoais.
Sinceramente, eu não me recordo a razão daquela troca de insultos, daquela brutalidade entre duas pessoas que juraram se amar para sempre, em dezembro de 1979. O certo é que eu estava no banco detrás do Fusca, balançando minhas perninhas, que não tocavam o assoalho ainda, e no rádio do carro, um equipamento modelo Bosch, com botões de borracha para sintonizar e controlar o volume, estava tocando Eternal Flame. Uma canção tristíssima, com uma melodia frágil, onde uma mulher, com uma voz doce e pueril, fala de suas dúvidas relativas a um amor não correspondido.
Mesmo sendo uma criança, achei aquilo tudo muito triste. Aquela música, aqueles gritos. Os dois quase se agredindo fisicamente. A vida era estranha. E eu não entendia bem porque...