Depoimento de Maria Valéria Rezende*
Tenho certeza de que todo mundo poderia ser escritor. Toda criança desenha, toda criança inventa história —nem que seja para enrolar a mãe —toda criança faz teatro com seus bonecos. Todos, então, criam literatura e são artistas. Só que depois o sistema educacional, as convenções sociais, de certa forma, fazem estancar esse processo nas pessoas.
Eu comecei a ler antes de saber ler. Nasci antes da televisão: à noite minha família costumava se sentar na varanda e dividir poemas. Meu avô tinha sido declamador e sabia muitos de cor. As pessoas sempre me perguntam quais foram os livros de que mais gostei na vida. Eu não sei dizer, faz 70 anos que sou leitora e tinha o costume de ler 2.000 páginas por semana.
Santos (SP), onde eu nasci, era uma cidade privilegiada para quem gosta de livro. Os barcos de carga não tinham televisão nem satélite nem coisa nenhuma; marinheiro em tempo de folga lia. Mas como o espaço reservado para a tripulação era muito pequeno, as bibliotecas que carregavam eram pequenas e, quando eles chegavam aos portos, trocavam seus livros por outros.
Então ali rodavam livros do mundo inteiro. Na época em que eu terminava o curso superior de literatura francesa na Aliança Francesa, o que se publicava muito era Camus, Sartre, Simone de Beauvoir. Assim que eu ouvia dizer que tinha um livro novo, ficava chateando meu pai —ele passava rádio para algum capitão de navio que conhecia, pedindo “traz aí da França o livro que acabou de sair pra minha filha!”.
Quando eu era criança, nunca quis festa de aniversário para mim, achava um desperdício. Aos dez anos, ouvi meus pais combinando de marcar uma festinha, já que era uma data redonda. Eu me meti no meio e disse: “Não quero nada disso: faz a conta do dinheiro que vocês iam gastar e pode me dar para eu comprar os livros que eu quiser”.
Ainda agora estou me vendo, voltando de passar em todas as livrarias de Santos, com as lágrimas escorrendo e duas sacolinhas nas mãos, porque não tinha conseguido gastar todo meu dinheiro. Nessa minha época de criança, nos anos 1940 e começo dos 1950, havia pouco livro infantil. Então rapidamente eu já tinha esgotado todos aqueles considerados infantis. Cheguei em casa e meus pais disseram: “Bom, o jeito então é dar livro de adulto para ela”.
E me presentearam com “Helena”, de Machado de Assis, achando que eu ia dar ao menos uma semana de sossego para eles. Mas, no dia seguinte, eu pedi outro.
Nessa época de formação, um livro que me marcou de maneira diferente foi “O Chamado da Floresta”, de Jack London. Eu devia ter uns 11 anos. Tinha um canto da casa onde me escondia para ler sossegada —afinal, sou a mais velha de seis irmãos—, que ficava no vão entre o sofá e a cortina da janela. Eu me enfiava lá e fazia uma espécie de tenda.
E lembro que, durante três dias, eu senti que era um cachorro. Não é bem o cachorro que conta a história do livro do London, mas o enredo é de um ponto de vista de afinidade com ele. E foi aí que entendi que os livros fazem mágica. A literatura, se é boa, é capaz de fazer você se sentir outra pessoa —ou até um ser de outra espécie.
Dali a um tempo também ganhei “O Velho e o Mar”, do Hemingway, e fiquei torcendo pelo peixe até o fim. E depois fiquei tão chateada com o autor que não queria ler mais nada dele.
Sempre me senti atraída pelas histórias que me tiram do já sabido. É claro que cada um tem o direito de ler e escrever o que quiser, mas, para mim, o que interessa é aquele livro que me tira do meu cotidiano, da minha identidade e me faz experimentar, de alguma forma, o que eu não sou.
Eu não seria capaz de fazer uma literatura mais intimista, ensaística, porque me entusiasmo mais com uma história na qual você consegue se colocar no lugar do personagem.
Não sei se sou uma grande escritora, mas sou uma boa contadora de histórias. Fiz muito isso de ouvir, contar e recontar no meu trabalho de educação popular. Como minha vida teve uma série de mudanças de região e de país, tive muitas experiências de aprender novas linguagens, gestos, comportamentos e histórias. E é como se a gente fosse se multiplicando.
O livro do Jack London me fez compreender isso pela primeira vez. Quando terminei de ler, já não era mais a mesma pessoa; dentro de mim, tinha um cachorro.
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Publicado originalmente na
Folha de São Paulo