quinta-feira, 29 de março de 2018

No Bar Babilônia


Seu pai havia sumido. Em uma pesquisa rápida pela vizinhança, soube onde ele estava. O nome do bar era Babilônia e dispunha de uma caraoquê para os clientes. O velho estava no pequeno palco. Cantava de olhos fechados. “Ando devagar porque já tive pressa e levo esse sorriso, porque já chorei demais”.

Segundo o garçom, era a sétima vez que ele escolhia a mesma música.
- Quase sempre é essa. No começo, ele não desafina. Até que canta bem. Mas depois é isso aí.

Esperou seu pai acabar e foi até o palco pegá-lo. Quando reconheceu a figura do filho, o velho se amoleceu, como se estivesse cansado ou doente.
- Vamos embora – disse.

Umas três pessoas bateram palmas, outros se despediram com um até logo. Uma senhora já ocupava o microfone. Tinha voz de fumante e não correspondia ao ritmo da canção. Ela se limitava a declamar “das lembranças que trago na vida, você é a saudade que eu gosto de ter".

sábado, 24 de março de 2018

Malabarista Prateado


Na sinaleira, estudantes recém aprovados no vestibular dividiam o espaço, entre a faixa de pedestres e o quinto carro da fila, com um artista de rua com o corpo todo pintado. Para se preparar para o personagem, ele utilizava creme para cabelo, ou qualquer creme, e purpurina prateada. O efeito daquela junção química reluzia no Sol. Era um malabarista que, ao invés de bolas, manipulava quatro pedregulhos. Todos queriam a breve atenção dos motoristas e qualquer trocado. O artista jogava as pedras para o alto de forma sincronizada e, mentalmente, contava os segundos necessários para realizar o breve espetáculo. Concluído o tempo, circularia entre os carros tentando arrecadar uma contribuição espontânea. Em uma das vezes que se apresentou, não conseguiu manter a concentração e deixou cair todas as pedras no asfalto quente. Recolheu-as e foi para a calçada. Seria vexatório demais pedir dinheiro por aquela cena patética que protagonizou. Deixou o sinal vermelho e os segundos que restavam para os pobres vestibulandos. Deu tempo de ver uma jovem esmolar “qualquer moedinha” a um motorista. O condutor pediu um beijo troca. Ela aceitou e ganhou uma nota de cinco reais. Foi tudo muito rápido, porque logo o sinal abriu.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Amor


- Ai, ai! 
- O que houve?
- Tá me machucando.
- Machucando ruim ou machucando bom?
- Se você for mais devagar vai ser machucando bom.

segunda-feira, 19 de março de 2018

Lembrando Charlie Hebdo

Fazer humor sem ofender ninguém. Ouvi essa.

Claro, quem disse teve a intenção de salientar que não quer rir das ditas minorias, porque não quer perpetuar preconceitos. Ou seja, era um humorista com boas intenções.

A pergunta é: resta o quê? Tirar sarro do que julgam status quo. Dar risada do esteticamente brega, do antiquado.  Alguns clichês recorrentes que vejo no chamado humor inteligente são a graça com os evangélicos, a igreja católica, a classe média, o cidadão de bem, a tv aberta...

Não existe humor vegano. Alguém vai se ofender com o riso dos outros.

sexta-feira, 9 de março de 2018

A Bigorna

A primeira coisa que notou de diferente foi que havia uma bigorna sobre uma mesa, posicionada em um canto, na sala de estar. Gostaria de saber o que seu pai malhava ali. Forjava facas? Ele adorava facas. Se fazia realmente isso, como esquentava os metais? No fogão ou no forno? De qualquer forma, o calor não seria suficiente. Qualquer ação que fosse feita naquela bigorna geraria um barulho insuportável aos vizinhos. Era improvável que fizesse algo. Ao mesmo tempo, não lhe parecia lógico e prático manter uma bigorna naquele ambiente. Poderia ser mais uma memorabilia. Quem sabe era de seu avô, que foi caminhoneiro? Caminhoneiros tem essa mania, de recolher tudo que encontram. Era uma hipótese, porque seu pai era muito apegado ao passado. Essa nostalgia resultava em longos silêncios de reflexão, assim como desencadeava constantes repetições de lembranças de atitudes heroicas e honrosas de sua infância e juventude. Entretanto, não era de se duvidar que o velho usasse a bigorna na sala.