Não me Engana
Aquele gordinho do metrô que pedia dinheiro para levar sopão aos pobres e agora vende fones de ouvido piratas a cinco reais. Não me engana.
O coxo que não pode mais trabalhar porque sofreu um acidente e a Justiça brasileira não olha por ele, não me engana.
O velho com o recorte de jornal, dizendo que o filho tem duas línguas dentro da boca, não me engana.
A esquelética chorona que usa a doença rara do suposto filho e um suposto leite caríssimo para faturar e comprar pedra, não me engana.
O bilhete que a mulher com o bebê no colo atira nos passageiros, implorando ajuda, não me engana.
Muito menos o palhaço fedorento, magrelo e alto, que faz piadas sem graça e grita e jura que aquela alegria patética ajuda alguém com câncer no Hospital da Santa Casa.
Não me engana o andarilho sem sotaque que precisa de dinheiro para comprar uma passagem na rodoviária e voltar para casa no interior.
Não me engana o marginal na plataforma que cola o nariz na minha cara para arrancar qualquer nota amassada, sem classe, sem “por favor” nem “muito obrigado”.
Não me engana o doente terminal que levanta a camisa para mostrar metade das vísceras e faturar algum níquel.
Também não me engana o zumbi que desenrola as ataduras e mostra as ulcerações, os pinos, para assustar quem toma uma coca-cola e abocanha um salgadinho antes de ir para a faculdade.
Não me engana a criança sujinha e ingênua que estende as mãozinhas com as unhas imundas para recolher qualquer moeda para o pai bêbado dormindo em casa. Não me engana.
O maquinista sem ânimo anunciando o fim da linha nos alto-falantes e me tirando do torpor. A velha mendiga banguela dizendo para a outra velha mendiga banguela que antigamente viver na rua era melhor. Eles não me enganam.
A guria que masca chiclé e cospe os clichês que aprendeu no Curso de Sociologia da Federal enquanto entrega panfletos sobre a revolução que está para chegar. É, claro, não me engana.
Tampouco o vereador baixinho, mau hálito, que trabalha em nome da preservação da família, que veio aqui em casa e prometeu dois sacos de cimento e um punhado de tijolos para eu ajudar o partido na próxima eleição.
Ele não me engana. Disse que Deus tem um plano pra mim e que devo me cuidar com aqueles que deturpam as palavras sagradas. Essa historinha não engana. Nem meus parentes e muito menos meus vizinhos.
Tampouco o vereador baixinho, mau hálito, que trabalha em nome da preservação da família, que veio aqui em casa e prometeu dois sacos de cimento e um punhado de tijolos para eu ajudar o partido na próxima eleição.
Ele não me engana. Disse que Deus tem um plano pra mim e que devo me cuidar com aqueles que deturpam as palavras sagradas. Essa historinha não engana. Nem meus parentes e muito menos meus vizinhos.
Nós ficamos com os sacos de cimento e os tijolos. Tem um que já ergueu muro. Outro fez puxado. Um vendeu a parte dele pro cunhado.
Melhor esse vereador passar mais grana, porque ele não me engana. Vou fazer campanha. Bandeiraço e estardalhaço. Ganhar um cargo e comprar um carro. Esse maldito trem nunca mais. Nunca mais.