sábado, 9 de abril de 2016

Viver Para Escolher Um Clichê


O amor tinha se tornado uma dívida, com altos juros cobrados. Não eram só as parcelas da casa própria, uma dívida de 30 anos. Não era só a falta de desejo em retribuir os bons serviços prestados. Era o fato de que tudo parecia ridículo. Arrastar as coisas da sala e dançar, agora, soava infantil até. Antes, não. Antes, eles não tinham nada na cabeça, preocupavam-se apenas um com o outro. Antes, era só não pisar nos pés dele e dela quando faziam o “dois pra lá, dois pra cá”. Hoje, Preciso do Teu Sorriso, de Dominguinhos, é só uma suave lembrança, que ambos evitam. Faltava um bocado para amortizar a tal dívida. A rotina irremediável. Na intimidade, a impressão é que haviam instalado um cartão-ponto na cama. Por mais que tentassem evitar, eles se obrigavam a olhar pra frente. Não queriam sentir um leve desespero. Preferiam assistir seus pés criando raízes, rachando o concreto do apartamento de um dormitório. Até que ela resolveu sair, com sua arte pretensiosa e o desejo de viver outros clichês. Quando ele toma coragem e pergunta dela, dizem que parece realizada – ou estaria fingindo bem. “E você, como está?”. Ele não sabe o que responder. Não sabe definir sua nova solidão.

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