Por Antonio Carlos Viana
Comecei a escrever por acaso. Não foi algo planejado, que tenha nascido de um desejo irrefreado. Nunca me peguei dizendo: “Vou ser escritor”. Claro que, um dia, tive meus sonhos de ser poeta, como todo bom adolescente, mas logo desisti do intento quando descobri que estar ao lado de um Drummond, de um Bandeira, não era nada fácil. Pensava que para escrever poesia bastava seguir a emoção. Quando descobri, mais adiante, que era preciso ter muita aplicação, muita técnica, e conheci a obra de João Cabral de Melo Neto, desisti de vez da poesia.
Só fui voltar a pensar a escrever já alguns anos depois de formado em Letras. Aí já tinha lido muito, descoberto grandes autores, visto que a imaginação podia ser a porta para criar universos bem pessoais. Foi nessa época que descobri um contista goiano injustamente esquecido hoje: José J. Veiga. Houve, de imediato, sintonia entre mim e ele desde a primeira leitura de Os Cavalinhos de Platiplanto. Senti que aquele poderia ser meu caminho, explorando, sobretudo, o universo da infância, que é de uma riqueza infinita para quem se propõe escrever.
Do primeiro conto ninguém esquece. Havia comprado uma maquina de escrever Remington portátil. Naquele tempo, início dos anos 1970, comprar a primeira máquina de escrever correspondia hoje não ao primeiro computador, mas ao primeiro carro. Quando cheguei em casa com aquele troféu, fruto de minhas sofridas economias, pus uma folha de papel e comecei a escrever o que me veio à cabeça. Deixei que minha imaginação guiasse meus dedos. Saiu uma história estranha, a de um menino cujo irmão parece estar morto sem que a mãe dê a menor atenção ao fato. Fui adiante, não quis censurar nada. A história ganhou caminhos insuspeitos e eu mesmo me surpreendi com seu desfecho. Daí para o segundo conto foi um pulo. E veio o terceiro, o quarto... Achei que era aquele meu caminho, se eu quisesse ser mesmo escritor, ainda uma vaga ideia em minha cabeça. Como não tinha a quem mostrar meu trabalho, resolvi mandar os melhores contos para dois concursos literários. Surpreendentemente ganhei os dois. Foi uma notícia que me deixou surpreso. Descobri que escrever poderia ser fonte de emoção, sobretudo depois de concluído e aprovado o trabalho por um júri exigente, como o dos concursos que ganhei.
Dali em diante, não parei mais de escrever. Se ainda havia em mim os desejos de ser poeta, os enterrei de vez. Teria de cavar meu lugar entre contistas, o que também não seria nada fácil, depois de ter conhecido Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector... Era a época do realismo mágico e parecia ser fácil escrever nessa linha, só que não era. O fantástico tem suas leis e é preciso observá-las para evitar as facilidades do gênero.
Paralelamente a essa minha descoberta de que podia ser contista, continuei lendo muito, sobretudo livros ligados à técnica literária. Para aprimorar meus conhecimentos, fiz mestrado em Teoria Literária; anos depois, doutorado em Literatura Comparada. A facilidade do início da carreira, fruto da ingenuidade, foi sendo substituída pela complexidade do fazer literário, resultado da leitura de teóricos como Roland Barthes, Todorov, Kristeva, Lotman e outros não menos complexos.
Confesso que, desde então, escrever se tornou uma tortura. Não conseguia mais produzir nada com a tranquilidade dos primeiros contos. Saber teoria não melhora a produção literária, a não ser que você esqueça tudo na hora do trabalho, o que é difícil. Perder a inocência faz muito mal ao escritor. Minha batalha agora era tentar separar o estudioso de teoria do escritor que pretendia ser. Consegui isso a duras penas, depois de um grande silêncio criativo, quando pensei que iria abandonar de vez a escrita. A fonte havia secado. Senti que, se não desvinculasse o escritor do professor de teoria, jamais voltaria a escrever qualquer miniconto.
A aprendizagem foi dura e longa. Hoje, como nos primeiros tempos, deixo a imaginação alce voo, sem censura, sem me cobrar resultados imediatos a cada conto que estou escrevendo. Se der certo, ótimo. Se não, tomo apenas como exercício. Como me considero um discípulo de Paul Valéry – fundamento de minha tese de doutorado –, sempre acho que um texto pode ser trabalhado ao infinito. Quem põe um ponto final nele é o editor, quando diz “chega”. Para o autor, a obra é interminável, sempre passível de reconstrução. Valéry dizia também que não há texto perdido, desde que a gente o trabalhe até chegar a uma forma, se não perfeita, pelos menos que nos satisfaça. É isso que persigo obstinadamente. Primeiro, escrevo o texto, que nunca vem pronto de primeira. Nunca sei aonde vai dar. Assusta um pouco, porque você pode colocar nele toda sua energia e esperança e, ao final, não chegar ao resultado que esperava. Muitos contos já vêm mais ou menos bem delineados, outros precisam de anos para chegar a um fim que me agrade. Esse trabalho é incansável. Ocupa os dias e as noites. Às vezes, acordo pensando numa personagem que deixei em suspenso ontem à noite. O trabalho de limagem é o mais difícil. Quase sempre a primeira forma é a melhor. À medida que vou sofisticando o texto, vejo que só pioro. É preciso ter a medida certa, o que nem sempre é fácil. Por isso preciso de uns três ou quatro leitores especiais para apontar meus defeitos.
Qualquer coisa que a gente escreve pode chegar a um bom termo, desde que trabalhemos, trabalhemos, sem trégua. Hoje posso dizer que tenho alguma tranquilidade para escrever. Sei que nem tudo vai dar certo. É com pena que abandono algumas histórias que teimam em não se concretizar. Que fazer? Nada. Certas personagens são como certas pessoas: atiçam nossa curiosidade e depois somem para um espaço a que não temos mais acesso. Resta-nos a frustração do conto que não foi escrito e que nunca será esquecido. Não adianta brigar com os contos que não deram certo. Melhor trabalhar aqueles que se mostraram dóceis ao nosso tato. Escrever exige muita paciência.
* Texto originalmente publicado no livro Ficcionais (Editora Cepe, 2012), onde 32 autores contam suas experiências na produção de suas obras literárias.
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