quinta-feira, 24 de dezembro de 2015
A Misantropia Literária de Raduan Nassar
Não são poucos os casos de escritores reclusos, que evitam seu público, imprensa e tudo mais. No Brasil e no mundo há diversos exemplos. Rubem Fonseca (teve uma rara e recente aparição pública em Portugal, em 2012, esbanjando carisma), Dalton Trevisan, Thomas Pynchon, Salinger...
Curiosamente, todos optam pelo recolhimento após iniciar a carreira e obter um certo sucesso literário, com repercussão, dando entrevistas em televisões, revistas, etc. Fica evidente que não são reclusos por natureza. Tornam-se depois de reconhecidos. As razões não são esclarecidas. Os escritores preferem tergiversar, talvez, para alcançar uma aura mítica em vida.
Com Raduan Nassar, autor de Lavoura Arcaica e Um Copo de Coléra, também foi assim. A diferença é que ele, segundo o próprio confirma, abandonou a escrita. Nassar não vive isolado, fugindo das lentes ou vestindo óculos e chapéus que escondem seu rosto. Ele resolveu dedicar sua vida a agricultura. É uma pessoa acessível, fácil de se localizar. Porém, nega entrevistas e contato com a imprensa. Há relatos na internet de estudantes e escritores que o encontraram ou mantem contato rotineiro.
Entretanto, na maioria das descrições, Nassar transparece uma misantropia com a Literatura e tudo que a envolve. Na entrevista mais longa que concedeu, aos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituo Moreira Salles, em 1996, tem muito desse sentimento nas suas respostas. Algo o incomodou, porém, não fica evidente o que ocorreu.
Vale dar uma lida na longa conversa. Separei algumas respostas do (ex-)escritor.
"Não tem muito que esclarecer. Em todo caso, veja esses dois versos do Jorge de Lima que já citei à exaustão: "Há sempre um copo de mar / para um homem navegar". As palavras empregadas são do quotidiano, a rima é comum, a sintaxe não poderia ser mais simples. Mas são dois versos generosos para a imaginação. Ou a descoberta que o personagem do Ibsen revela para a mulher em Um inimigo do povo: "O homem mais forte é o que está mais só". Uma afirmação sem qualquer artifício no seu enunciado, de que você pode inclusive discordar, mas que é fascinante no contexto da peça. E segura essa: "Desisti de escrever porque há um excesso de verdade no mundo", uma afirmação do Otto Rank, que o Abbate me deu de presente quando abandonei a literatura".
"Só desequilibrados é que descobrem que este mundo não tem importância".
"Só pra se ter uma ideia, já disseram que o conceito de solidariedade não será mais entendido pelas novas gerações do próximo milênio. Em sintonia com isso, certos escritores vinham há tempos chupando o sangue das palavras, queriam a qualquer custo acabar com os sentimentos na literatura. Andaram complicando um pouco as coisas. Isso me faz lembrar um conto húngaro, em que um ferreiro fazia operações de catarata com um instrumento rústico, mas sempre com muito êxito. Sua fama trouxe até ele os sábios da medicina, já viu! Deitaram tanto conhecimento em cima do pobre ferreiro que acabaram por inibi-lo, a ponto de ele nunca mais conseguir levar a cabo uma cirurgia. Aqueles sábios procuravam provavelmente compensar a sua falta de talento para fazer com um suposto conhecimento de como fazer. Deviam até passar por ótimos teóricos, mas só atrapalhavam. Acho que a literatura perdeu certa ingenuidade, como aquele ferreiro depois da visita dos sábios. Em literatura, quando você lê um texto que não toca o coração, é que alguma coisa está indo pras cucuias. Na minha opinião".
"Seja como for, talvez a gente concorde nisso: nenhum grupo, familiar ou social, se organiza sem valores; como de resto, não há valores que não gerem excluídos. Na brecha larga desse desajuste é que o capeta deita e rola".
"Futurismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo etc. Confesso que sou o exemplo mais acabado de ignorância de tudo isso, por consciente desinteresse".
"Obsceno é toda mitificação. Obsceno é dar um tamanho às chamadas grandes individualidades que reduz o homem comum a um inseto. Obsceno é não fazer uma reflexão pra valer sobre o conceito de mérito, dividindo tão mal o respeito humano. Obsceno é prostrar-se de joelhos diante de mitos que são usados até mesmo como instrumento de dominação. Obsceno é abrir mão do exercício crítico e mentir tanto".
Você pode ter acesso a entrevista completa nesse link: http://www.blogdoims.com.br/ims/entrevista-com-raduan-nassar-2
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