sexta-feira, 28 de março de 2014

Silhueta Na Calçada - Poema de O Ano dos Mortos


Silhueta na Calçada

Lucas Barroso

Os sacos de lixo
Amontoados na calçada
Desenham um corpo caído
O vento
O frio
O Sol
A primavera
Nada o faz levantar
O chorume que exala
Faz as pessoas apertarem os passos
Tomarem outro rumo
As sacolas plásticas
Assim como a pele
Tem carne podre dentro delas
Quem jogou fora esse lixo?
Os abutres têm hora marcada
E tem pressa

Não sobrará nem memória
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Imagem do repórter fotográfico Evandro Oliveira.

O poema fará parte do meu segundo livro, O Ano dos Mortos, editora Bartlebee Livros. O lançamento deverá acontecer até a metade do ano.

Minha estreia: http://lsbarroso.blogspot.com.br/p/livros-publicados.html

quinta-feira, 20 de março de 2014

Em Casa II

- Mais um dia difícil, Lucas?
- Sim, mais um.
- Você vai beber de novo, Lucas?
- E você queria que eu tomasse leite?
- Por que você não descansa um pouco, Lucas?
- Porque você não deixa. Fica miando igual uma gata.
- É que estou com fome, Lucas.
- Teu pote tá cheio de ração...
- Mas eu prefiro umas novas, mais crocantes. Pode despejar um pouco pra mim, Lucas?
- Ok. Mas você promete que não vai mais me regular?
- Prometo. Aproveita e deixa a torneira um pouquinho aberta, Lucas. Aquela água parada no pote ninguém merece...

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O primeiro Em Casa, está aqui: http://lsbarroso.blogspot.com.br/2014/01/a-primeira-coisa-que-faco-e-desabotoar.html

quarta-feira, 19 de março de 2014

Geografia - Conto Publicado no Site Mínimo Múltiplo

Na minha época de escola (o glorioso Ana Neri, no bairro São Sebastião), volta e meia, as professoras tinham uns discursos que ultrapassavam a lição de moral. Era mais que uma divagação sobre o que é certo e errado. Era uma preocupação sincera com aquelas criaturinhas.

Aquelas mulheres tinham seus problemas em casa. Deviam ver que o mundo não ia bem. E o que seria daqueles infelizes ali, sentados naquelas carteiras, copiando tudo que estava no quadro negro? Como seria a vida deles, dali pra frente? Não deve ser fácil ser professor(a)...

Bom, depois que a gente fica mais velho algumas coisas voltam. Baseado nessa lembrança, fiz esse conto, Geografia, publicado no site Mínimo Múltiplo. Abaixo, um trecho. Para ler o conto completo só clicar aqui.

Geografia

– Eu os invejo – disse, em meio a vozes. – Vocês que parecem e se mostram felizes. Vocês precisam entender que a felicidade é algo absurdo. É algo comovente e único. Um momento de felicidade vale uma vida inteira. Buscá-la é o sentido de tudo que nos cerca. Não é a morte. Não é a vida. O inexplicável, incompreensível, o mistério que encanta, encerra ou escancara as janelas da alma, é a felicidade. Eu afirmo para todos que têm ouvidos para escutar: vocês se enganam, com esses sorrisos, esses trejeitos premeditados e essas falsas lutas corporais. Admirar uma paisagem natural ou manipulada, um animal, ou até mesmo um bebê, não deve resultar em felicidade instantânea. No máximo, alegria, ou qualquer outro momento fugaz, um sentimentalismo menor. Não há como encontrar a felicidade, planejá-la ou construí-la de forma pensada. Tudo que nos rodeia não é, de forma alguma, felicidade. Felicidade não é um sentimento que reflete uma natureza. Não é algo banal, fútil, frívolo, que foi criado com o Universo, mesmo o Universo sendo repleto de uma alta complexidade...

(...)

domingo, 16 de março de 2014

Porto Alegre Cabe Num Cartão Postal - Poema de O Ano dos Mortos

De tempos em tempos, publicarei por aqui, Facebook e Twitter, alguns poemas do meu segundo livro, O Ano dos Mortos, que será lançado até o meio desse ano, pela Bartlebee Livros. Para quem tiver interesse, já conhecer um pouquinho do trabalho.

Escolherei algumas fotos para ilustrá-los. Imagens que me tocaram e acredito que tenham algo a ver com o texto. São fotos de amigos e serão creditadas. Todas já foram publicadas em páginas pessoais ou sites. Então, o primeiro poema é Porto Alegre Cabe Num Cartão Postal (um dos que mais gostei de escrever) e a foto que ilustra é do jornalista Felipe Daroit. 



Porto Alegre Cabe Num Cartão Postal

Lucas Barroso

Porto Alegre é uma guerra que teima em não acontecer
Por pura falta de tempo
Porto Alegre é uma cidade sagrada
Para todos que estão dispersos em seu ar
Que jamais foi seu
Os ventos de Porto Alegre vêm de outro lugar
E acabam morrendo em Porto Alegre
Porque Porto Alegre é seu trágico destino
Assim como o de todas as misericordiosas mulheres sem passado
Que escondem o que têm no meio de suas pernas
E voltam para casa quando Porto Alegre acorda

Porto Alegre desmaia a cada gole
Junto de seus adolescentes vadios
Ainda presos às máquinas de pinball
Fingindo um uivo
Ou falseando uma dança impossível de se dançar a dois
Porto Alegre foi inundada com a saliva podre de Quintana e Miranda em uma tarde nublada de outono
Seus números romanos e seus cânions recheados de gente
Foi o que ficou de Porto Alegre
Agora, zumbis plantam
Na terra árida de Porto Alegre
Sementes de baunilha e boldo
E recebem em troca um verão ácido

Porto Alegre está infestada por besouros de lata
Zumbindo e cuspindo fogo
Rasgando calçadas e meio-fios
Adubando o cimento
Incólumes

Pois Porto Alegre não tem dono

Porto Alegre é dos poetas-fotógrafos que a registram despida
Ruborizada e insone
Porto Alegre geme e preenche a noite dos solitários artesãos de sonhos
Sua tipografia foi feita por um homem louco que ainda vive em Porto Alegre
Masturbando travestis em praças sem nome próprio
Vendendo balas de goma em frente às escolas
O vértice máximo de sua dor e o suprassumo de sua ironia mofam sob seus paralepípedos de sangue
E a ânsia de ser
Faz Porto Alegre acordar mais cedo
Mas ainda tarde para alcançar o trem que já partiu

Porto Alegre é uma lástima
Uma lágrima contida
Um desespero profano
Uma valsa triste
Seus entes carregam toneladas de concreto nas costas e acabam sendo pisoteados pelos próprios pés

Porto Alegre nasceu no mar e morreu no asfalto
Durante a lua cheia que durou dezessete semanas e meia
Ninguém deu a mínima
E Porto Alegre cresceu sem aprender a dizer não
Porto Alegre não duvida nem confirma seus versos satânicos
Porque Porto Alegre tem o dom de esperar sua santidade
Seus cavalos de tróia
Suas caixinhas de surpresas
Mesmo sabendo das farsas e farpas que envolvem sua História
Montada a cento e treze mãos imundas de graxa e pânico
Porto Alegre segue sua fé
Sem saber a razão de sua fé

Os versos são precários em Porto Alegre, pois não há mão de obra qualificada em um raio de cem quilômetros
As palavras que conseguem sobreviver ao tempo e ao vento fermentam, viram bolor e se transformam em anticorpos na barriga dos ratos de Porto Alegre
Que vomitam tudo que comem
Que forram as paredes do esgoto, formando uma biblioteca sincera de fatos e fotos que jamais morrerão

Porto Alegre dorme sobre o mijo incandescente e vai trabalhar de terno com olhos fechados por películas negras
Os fantasmas de Porto Alegre vagam por seus contêineres e montanhas de plástico quando é Carnaval
Esperam a chuva imóvel
O desejo contido
A ira velada
E o suave pesadelo da manhã

Porto Alegre fantasia suas placas
Seus sinais
Seus muros pichados de sêmen e saudade
Com a verdade que lhe convém
E os desesperados do convés brindam a última ceia antes do indulto de Natal
Como se Porto Alegre fosse acabar em um desastre previsto por Nostradamus

São os gados de corte
Que carimbam seus cartões-ponto às oito e às dezoito
Os sujeito típicos de Porto Alegre
Fechados em saunas ou suspensos por teleféricos guiados
Derretendo rastros
Subvertendo satélites
Cabe a eles suspirar aliviados ou ranger os calcanhares
Para que Porto Alegre assuma seu posto de constelação estapafúrdia que é

Um véu e uma grinalda cobrem Porto Alegre
Que bóia num abismo raso de esperança e medo
Não há quem sacie a sede das esquinas de Porto Alegre
Então, Porto Alegre se cala
Suas fendas e cavidades escondem as horas que Porto Alegre perdeu
Esperando seu príncipe piedoso e belo

Enquanto os sinos dobram
Sapateiros descalços retalham Porto Alegre
Carteiros em procissão anunciam o nascimento e morte de Porto Alegre
Alguém ouve?
Alguém?

Já é tarde
Já é tarde


Porto Alegre cabe num cartão-postal

domingo, 2 de março de 2014

Em Quem Não Acreditar

Você luta a vida inteira. Esbarra em gente de todo o tipo. Ultrapassa alguns obstáculos. Emperra em outros. Desiste. Corre atrás de sonhos. Inventa utopias. E, no fim, fica entrevado em uma cama de um hospital público lotado.

Com minha vó, por exemplo, foi assim. Uma mulher e tanto. Por que não lhe deram mais tempo? Por que lhe arrancaram para longe, assim de repente? Tinha carteira de motorista e de trabalho na década de 60. E ainda segurava a barra em casa. Tinha fibra, força, não levava desaforo. Era desquitada numa época ruim para ser desquitada. Que mulher! No seu final, merecia algo melhor.

E, por incrível que pareça, seu último desejo era apenas comer biscoitos de polvilho salgados. Não conseguia engolir nada. Não tinha força pra nada. E aqueles biscoitos imbecis lhe faziam um bem danado. Brilhava os olhinhos quando comia. Até hoje, isso me dói...

Então, ouço muita gente falar sobre o significado da vida. Eles podem julgar que sabem, fingir uma experiência no que dizem. Bom... eu simplesmente não acredito neles. Nunca vou acreditar.