sábado, 27 de setembro de 2025

Aline e Fábio


Pra mim, a história deles começou naquela cafetaria. Espaço gourmetizado, ornamentado demais, com um ar cafona e objetos vintage. Era outubro, véspera das eleições municipais e Aline discursava com vigor. Sua candidata, de esquerda, era um azarão frente ao candidato da direita. Assim diziam as pesquisas. Ela elencava os riscos da possível vitória do candidato da direita. Encarreirou lugares-comuns que esquerdistas carimbam em seus opositores. Neoliberal. Fascista. Reacionário. Entreguista. Xenófobo. Elitista. Culpou a mídia. Culpou os grupos empresariais. Culpou até mesmo o povo, chamando as pessoas de gado. Tinha muito medo do futuro. Fábio parecia e estava impaciente. Aguardou Aline encerrar seu falatório e sentenciou. Quem discorda de ti é sempre um extremista, já percebeu isto? Impressionante! E o que era um monólogo da Aline, virou um debate. Fábio insistia na tese de que a única saída possível era anular o voto. E se eximir? Escolhe teu lado, Fábio! Se eximir, hoje, é ser de direita. Tu sabe que não sou de direita. Essa direita é uma escumalha! Só que estamos falando de dois candidatos horríveis, presos a ideologias ultrapassadas e partidos corruptos. Ter que escolher entre um deles é o fim dos tempos. E assim a dupla seguiu, por mais meia hora. Fábio se desculpou. Afirmou que o encontro não devia encerrar dessa maneira. Contudo, não havia outro jeito. Nosso encontro estava acabado. Fábio tinha voo marcado naquele dia e em poucas horas. Retornaria a Portugal. A gente seguiria em Porto Alegre. A gente não. Porque a Aline foi para Portugal tempos depois. Tentar uma nova vida. Juntou-se ao Fábio, na cidade do Porto. Ele, imigrante regularizado, com apartamento próprio e já estabilizado como guia turístico. Ela, sem visto, morando de aluguel e atendente de um bar. Tudo o que eu menos queria era vir pra cá e ficar na companhia de um brasileiro. E o que tu queria, afinal? Não sei... Acho que só sair de Porto Alegre. Não aguentava mais conviver com aquelas pessoas, com aquele ambiente. E aqui estamos. Dois porto-alegrenses dividindo uma cama na Europa e falando mal da própria cidade. Tu sabe que, no fundo, não me sinto bem com isso. Vai dizer que tu tem saudade? São poucos meses, mas tenho sim. Tu tá no primeiro mundo, há poucas horas de diversos países, e tem saudade do Sarandi? Já te falei que não sou do Sarandi. Não tem como não sentir saudade. Estou em um país com essa política escrota de anti-imigração, as pessoas nos odeiam. Pra mim, não faz o menor sentido tu vir até o primeiro mundo burguês capitalista conservador e anti-imigração. Não combina contigo. Pode não combinar, mas não é uma opção. Sempre é uma opção. Tu tá mentindo pra ti mesmo. Porto Alegre não é mais a mesma, Fábio. Mas e teus ideais, Aline? São meus e de mais alguns, apenas, não da sociedade. Por isso, vivem na merda lá, naquela província. Tu vai acabar sozinha e isolada pensando desse jeito. Como tu, Fábio? A vida dos dois não era o que se imagina de um casal. Ou melhor. Eles não eram um casal. Fábio tinha por volta de cinquenta. Vivia uma rotina medíocre na agência de turismo. Dias tediosos. Dias de passeios com casais de idosos ou grupo de idosos. Dois salários-mínimos mensais. Aline, próximo dos quarenta, tinha uma rotina atribulada. Muito trabalho, além de frilas em eventos. Pagamentos semanais. Trem e mochila nas costas nas folgas. Numa dessas andanças, Aline foi abordada pela polícia. Os seus documentos, por favor. Porque essa abordagem? Escolhem pessoas ao acaso ou se trata de preconceito? Vou pedir-lhe outra vez os documentos, por favor. Senhora Aline, daqui a vinte e sete dias o seu visto expira. Tem conhecimento disso? Tenho. E já comprou a passagem de regresso ao Brasil? Isso não é da sua conta. Pois saiba que é e tenha a certeza de que vamos acompanhar o seu caso. Não vai dizer que não sou bem-vinda aqui, oficial? Não lhe direi isso, senhora. Também não vai dizer que não gosta de imigrantes? O homem sorriu. Gosto do povo brasileiro. Até vejo telenovelas brasileiras. Tufão, Carminha. Conhece? Torço pela Carminha. E abriu um sorriso. Aline não retrucou. Nem sequer olhava para aquele homem. Mas o facto é que a lei vem em primeiro lugar. E os imigrantes em situação irregular são considerados ilegais, como imagino que deva saber. Um segundo agente observava a cena. Aproximou-se de Aline e baixou o tom. Pois eu não gosto de brasileiros. Vocês são uma corja, porcos, que não trazem rigorosamente nada aqui. Terei todo o prazer em expulsá-la, senhora. O primeiro oficial interrompeu e devolveu o documento. Aline não sabia o que dizer ou fazer ou pra quem pedir ajuda. Aline relatou tudo o que passou a Fábio. E tu queria que eles te dissessem o quê? Eu não acredito no que tô ouvindo?! Tu acha essa abordagem e esse monitoramento normal? Tu acha que tu é um deles. É isso? Não tem nada a ver com normal ou anormal. Com ser um deles ou não. Imigrante é tratado assim no mundo todo. Ou tu acha que um haitiano é bem-quisto em Porto Alegre? E vai me dizer que tu é bem-quisto aqui? Acorda, Fábio! Bom, pelo menos estou legal e polícia não me estorva na rua. Ambos, como sempre, seguiriam se alfinetando e nenhum arredaria pé de suas convicções. Dias depois, uma situação inusitada e digna de um realismo fantástico ocorreu. Aline tocou o interfone de Fábio. Estavam sem se falar, desde a última discussão. Fábio surgiu com cara de enfado até que viu o cachorro. Tu acredita que ele tá me seguindo há dois dias! Fábio então acarinhou o vira-lata cor de caramelo. Não sabia que por aqui tinha desse tipo. Nem eu! Tem certeza de que não é um imigrante ilegal? E riram. E se abraçaram, prometeram não brigar mais. Subiram para o apartamento. O cão foi junto. Fábio gostava de transar com Aline olhando o rosto dela. Aline gostava do calor dele. Naquela tarde de domingo, uma manifestação tomou as ruas do Porto. Bradavam palavras de ordem e empunhavam bandeiras de Portugal e cartazes. MAIS CONTROLO, MAIS SEGURANÇA. FIM À IMIGRAÇÃO SEM CONTROLO. O LIXO FICA FORA DA CASA. NEM MAIS UM IMIGRANTE ILEGAL. Da janela, Fábio viu aquela gente toda. Eram muitos. O que tá acontecendo? Nada, Aline. É a torcida do Porto. Hoje tem jogo. Volta pra cama então. Ele voltou, porém, não conseguiu dormir. Aline ficou dias sem ver o vira-lata. Colegas do trabalho também sentiram falta do bichinho. Citaram a possibilidade dele estar no canil da cidade. Na impossibilidade de ir lá, um órgão público, pediu que Fábio fosse. E lá estava o cão, numa celinha imunda. Ficou contente ao ver Fábio. Pareceu até derramar uma lágrima. Abanava o rabo e dava ganidos. Fábio retornou a funcionária. "Infelizmente, não é ele". E foi embora dali. Era muito cedo. A vizinha tocou sua campainha de forma insistente. A idosa tremia. Não sabia por onde começar. Fábio não sabia sequer o que perguntar. A velha soltou tudo de uma vez. Denunciei a sua namorada estrangeira. É que... O nosso país... Era o mais correcto a fazer. Peço-lhe desculpa. Sei que está cá de forma legal. Mas as leis existem para serem cumpridas. Não é nada contra vocês. Compreende-me? É que o nosso país está muito mal. O senhor vê as notícias, não vê? Compreende-me? Fábio não sabia o que dizer ou fazer ou pra quem pedir ajuda. A partir desse ponto, não tenho mais informações sobre ele, que jamais retornou meus contatos. Busquei a agência de viagens. Ele se demitiu pouco após o ocorrido. Não sabem dele. Aline está de volta ao país. Casada, dois filhos. Mora no bairro Parque São Sebastião, Zona Norte de Porto Alegre. Não sei precisar se tem e qual seria a sua ocupação. Quando a vi, ela estava com pressa ou quis encurtar a conversa. Comentou que também não tem mais notícias de Fábio e prefere não falar sobre esse período de sua vida.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário