Eu nasci em Itaqui, mas só nasci e fui para Bororé, que sempre considerei meu ventre materno. Era uma criança muito tímida. Tinha muito medo das coisas da vida, e ali era meu refúgio, onde me sentia seguro. Foi meu grande apego. É onde vivo até hoje, praticamente. Meu dia a dia é sempre vinculado ao Bororé. Até nos momentos de caduques, quando estou deitado, falo: "Amanhã vou pra Bororé”. É uma coisa mágica, não sei explicar.
Mario Rubens era itaquiense, mas Mano Lima nasceu em São Borja, quando conheci Apparício Silva Rillo, um grande poeta por quem tinha admiração. Conheci o homem na fazenda onde trabalhava. Ele se impressionou: eu já estava tocando, fazendo verso. Era um grande visionário: enxergou em mim algo que nem eu mesmo conseguia enxergar.
Eu sequer sabia algo de afinação. O palco me trouxe uma evolução como músico, mas também como pessoa. Não tem como comparar com aquele homem bruto, rústico que usava facão na cintura, adequado para o mundo selvagem que vivia. Tinha um vínculo com a natureza muito forte, maior do que com os humanos. Se chegava gente, disparava, me escondia. Tinha muita afinidade com os bichos, mas pouca com as pessoas, com a civilização. Quem me trouxe todo esse enriquecimento foi o palco.
Sempre cantei sobre o mundo que conhecia. Nunca tive dificuldade em fazer uma música sobre tropa, por exemplo. Ou letras baseadas em cachorro, cavalo e gado. Mas todas elas têm uma mensagem perante a vida. Estão relacionadas com histórias que aconteceram comigo ou com alguém que conheci. Todas elas têm um vínculo de verdade, porque não sou poeta. O poeta, sim, é um criador.
Mudar não é fácil, não. Aí é que está o grande mistério da minha vida. É essa transformação
Mas tem coisas que tu precisas de tempo. A ignorância é o pior fardo que o ser humano carrega. Te faz antecipar no julgamento, então, te faz errar. Falo isso com propriedade, porque fui esse cara. Não fui um homem ignorante, fui muito ignorante. Preconceito com tudo. Se o cara me dissesse que era feliz fora do Bororé, já estava ali uma encrenca. Gostava de briga, que é o símbolo maior da ignorância. Gostava de perigo. Aprendi a ginetear justamente pelo desafio ao perigo. Quando criança, me assustava com tudo. Com o tempo, fui perdendo isso. Passei a gostar de desafio. Também percebi que o palco me trouxe muita riqueza. Mas nada disso adiantaria se eu não tivesse índole.
Deus me fez trazer uma mensagem, com uma missão a ser cumprida. Eu trouxe essas duas misturas, esse campo-cidade. Esse intelectual, esse "filósofo campeiro". Tenho essas duas coisas. Tenho lado rústico, fui ignorante, mas hoje levo uma certa cultura. Mas como uma pessoa pode mudar tanto? Será que não está se fazendo? Mudar não é fácil, não. Aí é que está o grande mistério da minha vida. É essa transformação. É o que chamo de "mistério do Bororé".
Como disse para o Rillo quando escreveu Timbre de Galo: eu sou um homem fora do tempo. Se pudesse, voltava para o princípio do mundo. Eu sinto isso. Não entendo nada do mundo moderno. Gosto de tudo que é antigo. Sou um homem que se não tiver um ar puro para respirar, sente dor de cabeça. Gosto de sentar na frente da minha fazenda e olhar tudo que construí. Ouvir o berro do gado, das ovelhas. Ver a natureza.
Fazer 70 anos é uma maravilha, só tenho que agradecer. Sinto saudade do Bororé e da juventude, sim, mas nem sei por quê. Não era para sentir saudade, porque a cada ano que passa minha vida é melhor que o outro que ficou para trás. Não vou te dizer que já corro sem cansar, mas continuo montando a cavalo, não senti ainda o peso. Acredito que com 80 vai começar a pesar, a não ser que Deus tenha outra maneira de pensar. Para mim, está sendo maravilhoso o carinho do público. Me tratam como um pai, e eu, que era uma criança tímida e carente, me encho de alegria. Fico feliz por completo.
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Depoimento do músico Mano Lima ao jornalista William Mansque, publicado em Zero Hora, no dia 4 de setembro de 2023.
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