Para morrer, basta estar vivo. É um clichê. Mas é, também, uma verdade absoluta. Soube disso, porque tive uma parada respiratória faz um tempo. Levem o rapaz para o Clínicas! Fui. Ar entrava com dificuldade. Ar saía com mais dificuldade ainda. Algo me comprimia por dentro. Morrer assim, não deve ser fácil. Velho Zé, que vendia espetinho de gato no Parque São Sebastião, sempre dizia. Prefiro a morte a morrer afogado. Estava certíssimo. Acho que tinha se passado duas horas. Ou alguns minutos. Não aguentava mais esperar no saguão. Ninguém me acudia. Curvado. Em busca de ar. Tomei coragem. Me levantei e saí. Como uma tartaruga querendo fugir na areia. Onde tu vai? Alguém me perguntou – um médico, um enfermeiro ou um vigia. O que respondi não lembro. Se tu realmente for, tu vai ter que assinar um papel, porque tu vai morrer e a gente não vai se responsabilizar. Bastava estar vivo mesmo.
Na maca. Cirurgiões falando banalidades. Me cravaram um tubo entre as costelas. Ouviam Continental FM. Tocava Baby come back. E o tubo raspando os ossos. Apaguei. Olhos abertos de novo. Dor. Morfina. Uma onda de paz. Dor. Morfina. Outra onda de paz. Cinco dias na emergência superlotada. Mais vinte e cinco dias em um quarto com outros pacientes. Outra cirurgia. Pronto. Nada tão grave. Parada respiratória em decorrência de um pneumotórax espontâneo. É a vida... Virei atração dos estudantes da UFRGS. Três turmas foram me encontrar. Perguntas idênticas. Algum acidente de moto ou trauma? Drogas? Fuma? Sentiu dores outras vezes? Quando? Onde? Diga trinta e três, por favor. Puxe o ar o mais forte que puder.
Teve uma outra visita. Falam mal dos evangélicos. Eu mesmo falava. Porém, a única pessoa desconhecida que me apareceu foi uma senhora evangélica. Posso orar por ti? Sim, senhora. Meu Deus do ceú, ilumina esse rapaz! Olha pela cabeça dele, pelas vistas dele, pelo coraçãozinho dele, pelo estômago dele. Cuida desse rapaz, meu Deus do céu! Me mirou com uns olhos bondosos e se despediu. Faltou avisar Deus que era no pulmão o problema. Não tinha como ela saber, acho.
Os dois colegas de quarto. O que ficava mais próximo da porta fedia demais. Algo no estômago? Quem sabe... Um homem do interior do estado. Nunca recebia visitas. Não se queixava. Se sofria, sofria calado. Na cama do meio, Seu Flávio. Eu, próximo à janela, porque precisava de ar. Seu Flávio estava cego pela diabetes. Sua esposa ia todos os dias lhe fazer companhia. E o xingava sem dó. Eu te falei, Flávio. Mas tu é teimoso. Agora, taí. Aiiii! Não adianta gemer, Flávio. Tu não quis se cuidar. Essa é a verdade. E tu sabe muito bem disso, Flávio. Se tu tá assim, a culpa é só tua!
Não é fácil acompanhar doentes. Meu pai, um dia, perdeu a paciência. Eu tinha que soprar uns tubos com bolinhas. Conhecido como exercitador respiratório pulmonar. Fisioterapia. Meu velho junto. Observando. A bolinha só se movia no primeiro estágio. Bah, mas tu tá soprando isso de má vontade, não é possível! O médico na mesma toada. 6h. Chegava, dava seu recado, explicava os procedimentos para a enfermeira-chefe. Previsão de alta, doutor? Te acalma, só vamos ver isso quando passar essa tua pneumonia. Mas doutor... E ele já tinha ido.
Um dia, durante a madrugada, chegou uma dupla de jaleco branco. Gelei. Não era comigo. Boa noite, Seu Flávio! Tudo bem com o senhor? Tudo bem, meu filho. Pois é... Não tá tudo bem, não. Hoje ainda, vamos ter que fazer um procedimento de emergência e amputar sua perna. Poxa, vida! Infelizmente, não tem outro jeito, Seu Flávio. Logo mais, a enfermeira vai lhe preparar. Sua família já foi avisada. Mas doutor... E eles já tinham ido.
A esposa do Flávio surgiu. Sentou ao seu lado. Eles me disseram da tua perna, Flávio. Não adianta. Não tem o que fazer. Passou a mão nos cabelos ralos do marido. Como se orasse. Como se tentasse entender. Vai dar tudo certo, Flávio.
E em poucos dias a pneumonia se foi. Fiz minha própria barba. Tomei banho sozinho. Pus uma roupa com dificuldade. A camisa parecia vestir um cabide. Fingi que não tinha dor alguma e era forte. Acabou. Me arrastei pelos corredores do hospital. Braço firme de meu pai e minha mãe me carregando. Me empurrando para frente. Até que a porta principal do Hospital de Clínicas se abriu. Um Sol vibrante se chocou contra minha cara. Daqueles tão lindos. Daqueles que basta estar vivo para sentir.