terça-feira, 18 de outubro de 2022

Trovoa - Maurício Pereira

 



Minha cabeça trovoa

Sob meu peito te trovo e me ajoelho

Destino canções pros teus olhos vermelhos

Flores vermelhas, Vênus, bônus

Tudo o que me for possível ou menos

Mais ou menos

Me entrego, ofereço

Reverencio a tua beleza

Física também, mas não só

Não só

Graças a Deus você existe

Acho que eu teria um troço

Se você dissesse que não tem negócio

Te ergo com as mãos

Sorrio mal, mal sorrio

Meus olhos fechados te acossam

Fora de órbita

Descabelada

Diva, súbita, súbita

Seja meiga, seja objetiva

Seja faca na manteiga

Pressinto como você chega ligeira

Vasculhando a minha tralha

Bagunçando a minha cabeça

Metralhando na quinquilharia

Que carrego comigo

Clipes, grampos, tônicos

Toda a dureza incrível do meu coração

Feita em pedaços

Minha cabeça trovoa

Sob teu peito eu encontro

A calmaria e o silêncio

No portão da tua casa no bairro

Famílias assistem TV, eu não

Às 8:00 da noite

Eu fumo um Marlboro na rua como todo mundo

E como você, eu sei, quer dizer

Eu acho que sei, eu acho que sei

Vou sossegado e assobio

E é porque eu confio em teu carinho

Mesmo que ele venha num tapa

E caminho a pé pelas ruas da Lapa

Logo cedo, vapor, acredita?

A fuligem me ofusca

A friagem me cutuca

Nascer do sol visto da Vila Ipojuca

O aço fino da navalha me faz a barba

O aço frio do metrô

O halo fino da tua presença

Sozinha na padoca em Santa Cecília

No meio da tarde

Soluça, quer dizer, relembra

Batucando com as unhas coloridas

Na borda de um copo de cerveja

Resmunga quando vê

Que ganha chicletes de troco

Lebrando que um dia eu falei

Sabe, você tá tão chique

Meio freak, anos 70, fique, fica comigo

Se você for embora eu vou virar mendigo

Eu não sirvo pra nada

Num' vou ser teu amigo

Fique, fica comigo

Minha cabeça trovoa

Sob teu manto me entrego

Ao desafio de te dar um beijo

Entender o teu desejo

Me atirar pros teus peitos

Meu amor é imenso

Maior do que penso

É denso

Espessa nuvem de incenso de perfume intenso

E o simples ato de cheirar-te

Me cheira à arte, me leva à Marte

A qualquer parte, a parte que ativa a química

Química

Ignora a mímica

E a educação física

Só se abastece de mágica

Explode uma garrafa térmica

Por sobre as mesas de fórmica

De um salão de cerâmica

Onde soem os cânticos

Convicção monogâmica

Deslocamento atômico

Para um instante único

Em que o poema mais lírico

Se mostre a coisa mais lógica

E se abraçar com força descomunal

Até que os braços queiram arrebentar

Toda a defesa que hoje possa existir

E por acaso queira nos afastar

Esse momento tão pequeno e gentil

E a beleza que ele pode abrigar

Querida, nunca mais se deixe esquecer

Aonde nasce e mora todo o amor


terça-feira, 4 de outubro de 2022

Trechos de Piloto de Guerra - Antoine de Saint-Exupery

 


Eu penso... Eu penso muitas coisas. Espararei a noite, se estiver vivo, para refletir. Vivo... Quando uma missão está fácil, retorna uma a cada três. Quando é um pouco “chata”, fica mais difícil, evidentemente, voltar. E aqui, no gabinete do comandante, a morte não me parece nem augusta nem majestosa, nem heroica nem dilacerante. Ela é apenas um sinal de desordem. Um efeito da desordem. O Grupo vai nos perder, como se perdem bagagens numa confusão de conexões de estradas de ferro.

E não é que não pense sobre a guerra, sobre a morte, sobre o sacrifício, sobre a França, qualquer outra coisa, mas me falta conceito diretor, uma linguagem clara. Penso por contradições. Minha verdade está em pedaços e só posso considerá-los um após o outro. Se estiver vivo, espararei a noite para refletir. A noite bem-amada. À noite, a razão dorme, e simplesmente as coisas são como são. As que importam verdadeiramente retomam sua forma, sobrevivem às destruições das análises do dia. O homem reata seus pedaços e se torna árvore calma. 

O dia é das cenas de briga, mas à noite, aquele que brigou reencontra o Amor. Pois o amor é maior do que o sopro das palavras. E o homem se debruça em sua janela, sob as estrelas, de novo responsável pelos filhos que dormem, pelo pão vindouro, pelo sono da esposa que repousa ali, tão frágil, delicada e passageira. O amor não se discute. Ele é. Que venha a noite e se mostre a mim alguma evidência que mereça o amor. Para que eu pense a civilização, o destino do homem, o gosto da amizade no meu país. Para que eu deseje servir a alguma verdade imperiosa, mesmo que, talvez, ainda inexprimível...

Por enquanto, pareço-me inteiramente com o cristão abandonado pela graça. 

(...)

Esperarei a noite, se puder ainda viver, para andar um pouco a pé na grande estrada que atravessa nossa vila, envolvido em minha solidão bem-amada, a fim de nela reconhecer por que eu devo morrer. 

----------------------

Aprendi aos quinze anos a minha primeira lição: um irmão, mais novo que eu, estava desenganado havia alguns dias. Numa manhã, por volta das quatro horas, sua enfermeira me acorda:

- Seu irmão mandou chamá-lo.
- Está se sentindo mal?

Ela nada responde. Eu me visto depressa e vou ver meu irmão.
Ele diz com uma voz habitual:

- Queria falar contigo antes de morrer. Eu vou morrer.

Uma crise nervosa o crispa e o faz calar-se.
Durante a crise, ele faz "não" com a mão. E não compreendo o gesto. Imagino que a criança recuse a morte. Mas, retomada a calmaria, ele me explica:

- Não te assustes... Não estou sofrendo. Não sinto dor. Não consigo evitar, é meu corpo.

Seu corpo, território estrangeiro, já é outro. 
Mas esse irmão caçula que sucumbiria em vinte minutos, desejava ser sério. Ele sente a necessidade premente de delegar sua herança. E me diz: "Eu queria fazer meu testamento...". Enrubesce, está orgulhoso, é claro, de agir como um homem. Se fosse construtor de torres, ele me confiaria sua torre a construir. Se fosse pai, ele me confiaria seus filhos a instruir. Se fosse piloto de avião de guerra, ele me confiaria seus documentos de bordo. Mas ele é só uma criança. Só me confia um motor a vapor, uma bicicleta e uma carabina. A gente não morre. A gente imaginava temer a morte: tememos o inesperado, a explosão, tememos a nós mesmos. A morte? Não. Não há mais morte quando a encontramos. Meu irmão me disse: "Não te esqueças de escrever tudo isso...". Quando o corpo se desfaz, o essencial se mostra. O homem não passa de um nó de relações. Só as relações valem para o homem.

----------------------

Trechos extraídos do romance Piloto de Guerra, de Antoine de Saint-Exupery (tradução de Mônica Cristina Corrêa, editora Companhia das Letras).