Este volume reúne a maior parte das reportagens de menor extensão que fiz nos últimos anos para revistas, jornais e antologias. Sendo assim, me parece que ele exige algum tipo de saraivada introdutória para achacar todos aqueles que se opõem à legitimidade dos quadrinhos como forma eficiente de fazer jornalismo.
Mas antes de puxar o gatilho, quem sabe a gente escute a oposição? Afinal, as objeções podem ter algum mérito. Como responder, por exemplo, quando questionam se o desenho pode aspirar à verdade objetiva? Não é justamente da verdade objetiva que trata o jornalismo? Desenhos, por natureza, não são subjetivos?
A resposta à última pergunta é: sim. Sempre que se apresentar jornalismo na linguagem dos quadrinhos, haverá uma tensão entre as coisas que se podem verificar, como uma declaração gravada, e as coisas que não se prestam à verificação, tais como um desenho que diz representar um episódio em particular. O desenho é interpretação mesmo quando é subserviente a uma fotografia, e costuma -se entender que as fotografias capturam literalmente um momento do mundo real. No desenho, porém, não há nada de literal. O cartunista mistura os elementos a seu bel -prazer e posiciona-os na página de acordo com seus propósitos. Não existe aquela sorte do fotógrafo que capturou uma imagem no momento certo. O cartunista “captura” seu desenho no momento que quiser. É essa abertura ou licença que torna o cartunismo uma mídia inerentemente subjetiva.
Mas isso não põe por terra as pretensões dos cartunistas que aspiram ao jornalismo. Ainda valem as obrigações -padrão do jornalista — reportar de maneira precisa, ater-se às falas dos entrevistados, checar afirmações. O jornalista-quadrinista, porém, tem compromissos maiores. O repórter tradicional pode tranquilamente descrever um comboio da ONU como “um comboio da ONU” e seguir adiante com sua matéria. Um jornalista-quadrinista tem que desenhar o comboio, e nesse momento surgem várias questões. Como são os veículos do comboio? Como são os uniformes dos operativos da ONU? Como era a estrada? E o cenário de fundo?
Por sorte, não há manual de estilo que diga ao jornalista-quadrinista a que ponto deve chegar em termos de detalhamento. O cartunista desenha tendo em mente a verdade essencial, não a literal, o que permite ampla variedade de interpretações e ampla variedade de estilos de desenho. Um cartunista não desenhará um caminhão da ONU da mesma forma que outro cartunista, mesmo que os dois estejam trabalhando a partir da mesma referência.
Posso apresentar aqui as minhas regras particulares no que concerne à veracidade pictórica. Tento desenhar pessoas e objetos da forma mais precisa possível, sempre que possível. No meu entender, tudo que pode ser desenhado fidedignamente tem que ser desenhado fidedignamente — e com isso quero dizer que algo desenhado deve ser facilmente identificado como a coisa real que se intenciona representar. Há desenhos, porém — particularmente cenas que ocorreram no pretérito e que eu não vi com meus próprios olhos —, nos quais sou obrigado a utilizar minha imaginação, ou, ainda, minha imaginação apoiada em pesquisas. Com isso quero dizer que tudo que eu venha a desenhar deve ter sua base nas especificações de temporalidade, lugar e situação que busco reinventar. Na terminologia cinematográfica, o cartunista é cenógrafo, figurinista e diretor de elenco, e é provável que, para executar esses papéis com destreza, ele precise fazer pesquisas em livros, em arquivos e na internet. Quando dependo do testemunho ocular, faço perguntas pertinentemente visuais: Quantas pessoas havia lá? Onde ficava o arame farpado? As pessoas estavam de pé ou sentadas? Quero que meus leitores pelo menos orientem-se em um momento específico, mas meu objetivo maior é satisfazer uma testemunha ocular no sentido de que minha retratação desenhada represente a essência da experiência que essa testemunha teve.
Porém, como já explicitei, dificilmente será um trabalho imaculado. Afinal, o desenho reflete a visão do cartunista como indivíduo. Não creio, porém, que esse fato proíba que um relato desenhado entre no campo do jornalismo. Creio que é possível almejar precisão no âmbito de uma obra desenhada. Em outras palavras, os fatos (um caminhão que carregava prisioneiros vindo pela estrada) e a subjetividade (como essa cena é desenhada) podem conviver juntos — uma coisa não impede a outra. Eu, pelo menos, aceito as implicações do relato subjetivo e dou preferência a destacar essas implicações. Já que é difícil (embora não impossível) me apagar de uma história, não é algo que eu costume tentar. O resultado, em termos jornalísticos, é libertador. Como sou “personagem” da minha própria obra, me atribuo licença jornalística para mostrar minhas interações com aqueles que conheço. Descobre-se muito sobre esses indivíduos a partir da representação do intercâmbio pessoal, o que a maioria dos jornalistas convencionais, infelizmente, subtrai de suas matérias. (As histórias que os jornalistas contam entre pares, na mesa do jantar, que geralmente envolvem interações similares, costumam ser mais interessantes e reveladoras do que as que entram no texto.) Apesar da impressão que alguns tentam passar, o jornalista não é uma mosquinha na parede, invisível e muda. Em campo, na apuração, a presença do jornalista quase sempre é relevante. Os jovens rebeldes erguem e brandem as armas quando a equipe de televisão começa a filmar, ou começam a se policiar quando o repórter faz perguntas contundentes. Ao admitir que estou presente na cena, minha intenção é sinalizar ao leitor que o jornalismo é um processo no qual defeitos e marcas de costura ficam aparentes, como se realizado por um ser humano — e não ciência executada friamente por um robô atrás do acrílico.
O que nos leva à vaca sagrada do jornalismo norte -americano, a “objetividade”. Deixo claro que não tenho problemas com a palavra em si, se o significado for apenas abordar um fato sem ter pré-concepções. O problema é que não acredito que a maioria dos jornalistas consiga abordar um fato, seja qual for sua relevância, com “objetividade”. Eu, decerto, não consigo. A jornalista norte -americana que acaba de pôr os pés na pista do aeroporto afegão não se livra de imediato do ponto de vista norte -americano nem abdica de toda pré -concepção para gravar novas observações em tábula rasa. Será que ela, de uma hora para outra, vai deixar de ver os soldados norte-americanos que acompanha como compatriotas de respeito e boas intenções, que compartilham muitos de seus valores, e passará a percebê -los como instrumento de um estado-nação que opera segundo seus próprios interesses, o que na prática — em termos objetivos — eles são? Na melhor das hipóteses, ela tenta relatar suas ações e reações da forma mais sincera, nas quais quer que recaia sua simpatia. Como dizia o lendário jornalista norte -americano Edward R. Murrow: “Toda pessoa é prisioneira de sua experiência. Ninguém consegue eliminar seus preconceitos — mas tão somente reconhecê-los”.
Outra armadilha que se promove nas escolas de jornalismo dos Estados Unidos é a fidelidade servil ao “equilíbrio”. Mas se um lado diz uma coisa e o outro diz outra, será mesmo que a verdade se encontra “em algum ponto entre os dois”? O jornalista que diz “bom, deixei os dois lados fulos da vida, então acho que estou no caminho certo” provavelmente está se enganando e, o pior, engana também o leitor. O equilíbrio não devia acobertar a preguiça. Caso haja duas ou mais versões dos fatos, o jornalista precisa não só explorar e avaliar cada declaração, mas também ir a fundo no relato contestado independente de quem o relata. Por mais que o jornalismo seja “o que eles disseram que viram”, ele também é “o que eu vi”. O jornalista deve empenhar-se em descobrir o que acontece e relatar, e não tornar a verdade neutra só porque houve distribuição igualitária de espaço.
Fui eu que escolhi as histórias que desejo contar, e nesta seleção devem ficar claras quais são minhas afinidades. Tenho interesse sobretudo por aqueles que raramente são ouvidos, e não creio que caiba a mim equilibrar suas vozes com as apologias bem escovadas dos que detêm o poder. Os poderosos geralmente estão muito bem servidos pela mídia massiva ou pelos órgãos de propaganda ideológica. Os poderosos têm que ser citados, é claro, mas para que seus pronunciamentos possam ser avaliados diante da verdade, não para obscurecê-la. Se acredito que o poder faz as pessoas mostrarem o que têm de pior, já observei que aqueles que ficam na ponta da miséria também não são inocentes por completo, e é isso que me empenho em reportar. Creio que o jornalista britânico Robert Fisk seja quem melhor resume a equação: “Sempre digo que os repórteres devem ser neutra e imparcialmente a favor daqueles que sofrem”.
Em resumo, a grande benesse de uma mídia inerentemente interpretativa, como é o caso dos quadrinhos, é que ela não me deixou confinado ao jornalismo tradicional. Ao tornar difícil me ausentar de uma cena, ela não me permite fazer da imparcialidade uma virtude. Para o bem ou para o mal, a mídia dos quadrinhos é inflexível, o que me leva a fazer escolhas. A meu ver, isso faz parte de sua mensagem inerente.
Joe Sacco
Abril de 2011
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Texto de abertura do livro Reportagens (1ª edição no Brasil, em 2016), de Joe Sacco.