Um enterro especial requer um caixão especial. O velho
Antunes escolheu o modelo mais bonito. Um ataúde de imbuia maciça munido de
braçadeiras e fechos de bronze, com acabamento em laca da Índia. Para o
velório, encomendou quatro velas grandes em castiçais de prata sobre colunas de
alabastro. E uma coroa de flores com faixa de seda azul e branca na qual mandou
escrever: “Ao Roberto, dos seus pais, tios e irmãs, que nunca te esqueceram”.
Na parede dos fundos da sala, transformada em câmara
mortuária, um pouco acima da altura do caixão, Antunes mandou pendurar um
retrato do filho tirado na sua formatura, no qual ele está ligeiramente de
lado, de modo a ressaltar seu perfil anguloso. O filho tinha olhos negros como
os do pai, cabelos ondulados, lábios grossos e queixo saliente. Puxou o pai, o velho
não se cansou de repetir esses anos todos.
Era uma fotografia pequena que ele pediu ao japonês da loja
Kodak para ampliar. Preferiu essa a outro retrato, bem maior, do filho com toda
a turma de formandos, por causa da beca e do destaque aos traços enérgicos. O Kazuo
precisou refotografar, porque não havia negativo. Roberto era o filho mais
velho. Formara-se em engenharia civil.
Antunes acabou de completar noventa anos. A família é
longeva. Sua irmã Hermínia, que chegou cedinho e ajudou a montar o velório,
está com oitenta e sete anos; as outras duas irmãs têm uma oitenta e quatro e a
outra oitenta e um anos. O irmão mais velho morreu no ano passado com noventa e
três. Foi quando ele decidiu fazer o enterro do filho. Pensou: nosso limite é
entre noventa e noventa e três. Meu irmão, Deus já levou. Logo será minha vez.
Não quero morrer sem enterrar o meu Roberto.
Explicou a ideia à patroa. Devota, dona Rita foi consultar o
padre Gonçalves, que não disse nem sim nem não; pediu tempo para poder consultar
o bispo. Na semana seguinte, o padre explicou que, nas circunstâncias, não
oficiaria missa de corpo presente nem de sétimo dia, mas levaria conforto à
família no velório e no sepultamento.
Ao contrário do marido, que se tornou um homem seco e
calado, dona Rita ainda chora quase todas as noites a ausência do filho. Também
por isso o velho Antunes decidiu fazer o enterro. Pela sua Rita, pelas irmãs do
Roberto, pela família toda. Os mortos têm que ser enterrados.
As vizinhas também vieram cedo. As irmãs Mercedes, do lado
de baixo da rua, e a Diva, do lado de cima, ajudaram na preparação dos
salgadinhos e sanduíches. As Mercedes são solteironas e vivem sós. No começo fofocaram
sobre o sumiço do Roberto, depois não. A Rita diz que não foi por maldade. A
Diva sofreu como se fosse parente; a filha dela, a Cristina, era ligada ao
Roberto. Fizeram o grupo escolar na mesma classe, depois o ginásio. Iam juntos,
voltavam juntos. Não chegaram a namorar, talvez até porque fossem próximos
demais, quase irmãos.
Às dez horas chegaram de Campinas as filhas, Célia e Celina,
com os genros e os netos pequenos. Vieram em dois carros, em caravana. Duas horas
de viagem. No caminho entraram na chácara das flores e compraram ramalhetes de
rosas vermelhas. Elas eram adolescentes quando o irmão desapareceu; tiveram
muita dificuldade em entender o que se passava, principalmente Célia, a menor.
Os pais não explicavam. Criou-se um segredo de família. No telefone, só falavam
aos cochichos.
Primeiro, não queriam que elas soubessem. Depois, quando
elas viram a pequena notícia no jornal, pediram que nunca tocassem no assunto
com as amigas, com os vizinhos, com ninguém. Diziam que era para o bem delas e de
todos. Esse segredo as tornou ainda mais ligadas. Só muito tempo depois é que
os pais contaram o pouco que sabiam. Os velhos nunca voltaram a ser como antes,
viraram outras pessoas, distantes, tristes. Nos últimos anos, com a vinda dos
netos, voltaram a sorrir.
Logo chegam mais moradores da ladeira, com seus filhos e
netos. Crianças correm pela casa toda. Deixa correr, diz o velho Antunes. Quero
um velório alegre, como era o Roberto. Mas velório é sempre solene. Os homens
formam rodas austeras e conversam a meia voz. As mulheres ocupam as cadeiras ao
longo das paredes e falam aos cochichos.
As irmãs Mercedes circulam as bandejas com os salgados, os
sanduíches e copos de guaraná. Aos poucos as conversas se tornam mais animadas.
Alguém critica a devassidão nos programas de televisão. A Maria bordadeira, do
outro lado da rua, comenta a decisão da Prefeitura de trazer o asfalto até o
bairro. Diva trouxe um álbum de fotografias em que aparecem o Roberto, a filha
dela e outros rapazes e moças. Sucedem-se comentários e lembranças sobre esse e
aquele.
Às onze e pouco chega o Teixeira, cunhado do Antunes, irmão
mais velho da Rita, alto e gordo. Veio de Bauru com a mulher, dona Isaura, uma senhora
quieta que se mostra sempre submissa. Teixeira é abonado, dono de fazenda. Uma
ocasião recusou um pedido de empréstimo do Antunes para cobrir um ano de safra
ruim. Era ninharia. Ficaram dez anos sem se falar. Mas quando o Beto
desapareceu o Teixeira se mexeu mais que ninguém. Era gamado no Roberto, seu
primeiro sobrinho. Chegou a ir para Brasília falar com uns homens que ele
conhecia. Não adiantou.
Teixeira dá um abraço no Antunes, outro na Rita; por alguns
minutos o vozeirão dele domina o velório. Depois se aproxima de onde está
montado o caixão, permanece um tempão olhando o retrato do Roberto na parede. Balança a cabeça, inconformado. Isaurinha conversa com Rita
na cozinha. As duas se fitam por um longo minuto. Depois se abraçam. Ambas são
mais novas que os maridos, mas parecem mais velhas.
Às duas da tarde a casa
está cheia e o povo transborda pela calçada, para cima e para baixo da ladeira.
O sepultamento está marcado para as quatro, antes da chuva. Circulam mais
bandejas com sanduíches, broa de milho e cuscuz de sardinha. É quando chega o
Dino violeiro, amigo de infância do Beto, acompanhado de outros dois, um de
nome Alcides e o outro, Mário. O Dino fez até o colegial. Jogou muito futebol
com o Beto. Iam juntos à matinê. No sábado à noite paqueravam as moças em torno
do coreto. Quando o Beto foi para São Paulo fazer faculdade, Dino ficou no armazém
ajudando o pai. Depois formou esse conjuntinho de violeiros.
Os músicos entram para cumprimentar o velho Antunes e dona
Rita. Depois se aproximam do ataúde, tiram os chapelões de palha, respeitosos. Fitam
a fotografia na parede, depois saem dando passadas cuidadosas, cumprimentando
as outras pessoas à direita e à esquerda com um menear de cabeça. Lá fora,
depois de algum tempo, tocam uma toada triste com um refrão que diz “Nossa vida
passa, é como fumaça…”. Lá dentro os convidados comentam acontecimentos. Quem
casou, quem descasou. Quem teve filho. O farmacêutico Diogo conta mais um de seus
causos. A Diva continua circulando o álbum de fotografias. Do quintal emana um
aroma de churrasco. É o Alcebíades, da banca de jornal, churrasqueiro fanático.
Os violeiros agora vão para o quintal, onde há mais espaço. O velho Antunes
manda que cantem música alegre e eles respondem com o samba da fita amarela:
Quando eu morrer, não quero choro nem vela, quero uma fita amarela, gravada com
o nome dela.
Aparecem duas senhoras com jarras de refresco de limão e
abacaxi. Alguém distribui picolés à garotada. Às três da tarde tem-se a
impressão de que todos os viventes da cidade estão no velório do Roberto,
inclusive os cachorros e os gatos. Comentam que nunca houve um velório tão
concorrido. Não se vê ninguém nas outras ruas, na praça da matriz, na
rodoviária. Virou cidade fantasma. É quando surge lá longe, no topo da ladeira,
meio esfumaçado como se fosse assombração, o Chevrolet preto da Prefeitura. O
carro se aproxima lentamente e para um pouco antes do terraço dos Antunes.
Descem o prefeito Belisário, o delegado de polícia, dr. Costa, e o padre
Gonçalves.
À chegada das autoridades, o povo abre espaço. Os novos
visitantes entram, o prefeito à frente; acenam para uns, inclinam a cabeça para
outros. Um de cada vez, oferecem condolências ao velho Antunes, depois se
dirigem ao ataúde. Fitam a fotografia do Roberto longamente em postura de
reverência. Conversam um pouco entre si em voz baixa. Dona Rita vem da cozinha
e cumprimenta o prefeito e os demais, agradece a visita, pede bênção ao padre.
Alguém oferece refresco de limão às autoridades. Padre Gonçalves ergue o braço,
pedindo silêncio, e sem esperar dá início a uma oração pelos mortos: “Pai
santo, Deus eterno e Todo-Poderoso, nós Vos pedimos por Roberto Antunes, que
chamastes deste mundo. Dai-lhe a felicidade, a luz e a paz… que sua alma nada
sofra…”. Algumas vozes acompanham, hesitantes, a oração não muito conhecida.
“Perdoai-lhe os pecados para que alcance junto a Vós a vida imortal no reino
eterno. Por Jesus Cristo, Vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém.”
Às quatro em ponto tem início o saimento. À frente do
cortejo, o ataúde é sustentado pelo tio Teixeira, pelo prefeito, pelo Dino
violeiro e pelo farmacêutico Diogo. O velho Antunes acompanha, com a mão
direita sobre o caixão. Faz força para caminhar ereto e com passadas firmes.
Sente-se exausto mas feliz. Seu sonho de tantos anos finalmente se realiza; já
pode morrer em paz. E toda a cidade compreendeu. Isso foi o mais importante. Toda
a cidade. Até o padre Gonçalves, que primeiro lavou as mãos, depois deu a
bênção. É tanta gente que os últimos do cortejo só alcançam a cova dez minutos depois
dos primeiros. No céu, bem acima do cemitério, as nuvens engrossam. As duas
irmãs do Roberto, Célia e Celina, sobem numa pedra e pedem silêncio para dar
início à cerimônia. Passam então a ler uma memória sobre Roberto. Celina lê um
parágrafo e passa para Célia, que lê o seguinte. Falam de como ele era quando
menino, de suas travessuras, depois de seus sonhos de adolescência, do drama do
vestibular, da alegria de ter passado, da colação de grau. Algumas pessoas
soluçam. Falam brevemente do sofrimento da família. Depois, em uníssono,
agradecem: muito obrigada pela presença de todos vocês.
A um sinal de Antunes, o caixão é baixado à sepultura e
padre Gonçalves repete a oração pelos mortos. Pessoas passam rente à cova e atiram
punhados de terra, mulheres jogam as rosas vermelhas trazidas pelas irmãs. O
coveiro João assume, despejando muito depressa com a pá quantidades robustas de
terra. O tio Teixeira de Bauru pega outra pá e apressa o sepultamento. As
pessoas começam a dispersar. Caem os primeiros pingos de chuva. O caixão está
enterrado. Dentro dele estão um paletó e um par de sapatos do Roberto. Seu
corpo nunca foi encontrado.
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O conto integra o livro Você Vai Voltar Pra Mim, publicado em 2014 pela Cosac Naify