quinta-feira, 31 de agosto de 2017
O Diário de John Cheever
1948_Estou com um leve resfriado, nada sério, mas ele tem um efeito depressivo, e a febre e a tosse seca sempre comprometeram a minha estabilidade. Além disso, às vezes tusso um pouco de sangue e isso me traz pressentimentos de morte que parecem pura petulância. Ontem à noite, por motivos que compreendo, minha esposa sugeriu que eu a deixe por um tempo, sugestão que não consigo achar razoável. Instigou-se em mim um tipo de orgulho que se pode transformar em algo perverso, como uma longa separação ou um divórcio. Uma longa separação seria perigosa, pois somos os dois pouco comunicativos e não estamos inclinados a perdoar. Ela tem um lado que não é sociável nem afetuoso, e que ela nunca manifestou a mim ou a outros sem que isso resultasse em dor. Ela passava muito tempo sozinha na juventude e esses hábitos solitários às vezes reaparecem. De vez em quando, se sente sufocada por uma total ausência de privacidade. Ela tem todo direito a isso – é algo que identifiquei quando a conheci e a pedi em casamento. Ainda por cima, há o fato de que minha vida recente tem tido todas as características de um fracasso.
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Estou cansado, mas vai passar. Amo o corpo da minha mulher e a inocência dos meus filhos. Nada mais.
1952_Quando a autodestruição brota no coração, parece ser menor do que um grão de areia. É uma dor de cabeça, uma leve indigestão, um dedo inflamado; mas você perde o trem das 8h20 e chega atrasado à reunião sobre a dívida do cartão de crédito. O velho amigo com quem você se encontra para almoçar esgota a sua paciência sem mais nem menos e num esforço para ser agradável você toma três drinques, mas a essa altura o dia já perdeu a forma, o propósito e o significado. Na esperança de lhe devolver algum sentido e beleza, você bebe demais nos coquetéis e fala demais, dá em cima da mulher de alguém e termina fazendo algo idiota e obsceno, e pela manhã você quer estar morto. Mas quando tenta reconstituir o caminho que o conduziu a esse abismo, tudo que você encontra é um grão de areia.
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Prestes a completar 40 anos sem ter realizado nada do que pretendia realizar – sem jamais ter alcançado a criatividade profunda à qual me dediquei todo esse tempo –, me sinto ocupando uma posição menor, débil e obscura, a que cheguei não por destino, mas por culpa minha, como se me tivessem faltado, a certa altura do caminho, o espírito e a coragem necessários para me encaixar com competência nos moldes que iam surgindo. Penso em Leander e em todos os outros. Não é por serem histórias de fracasso; não é isso que assusta. É que esses registros são banais, eles não têm a menor importância; é porque Leander, caminhando no jardim ao entardecer, padecendo de uma paixão violenta, não interessa a ninguém. Não importa. Não importa…
quinta-feira, 17 de agosto de 2017
Até o Bom e Velho Barraco Se Atualizou
Curioso como tudo se atualiza. Antes, os barracos eram expostos pra vizinhança e algumas pessoas da rua. Fui criado num ambiente onde os problemas se resolviam, geralmente, com violência. Agressão verbal, na maioria dos casos, ou física. Porque os dias eram assim.
A gente até apagava as luzes lá em casa, que era pra ninguém notar que estávamos de olho na briga dos outros. Quando não éramos nós os que estavam no centro das atenções...
Mas, agora, mudou. Hoje, o escândalo mais eficaz não é berrar ofensas, chegar bebaço, quebrar coisas na parede ou nos outros. O que funciona é fazer um textão no Facebook ou em qualquer outra rede social. E como tem!
Depoimentos carregados de desprezo e nojo e raiva. Casos de família escancarados com indiretas (ou diretas), com ofensas sublinhadas, assim como intimidades de casal expostas a milhares de pessoas. Quanto mais curtidas melhor.
Porém, nem todo mundo aderiu.
Dia desses, minha vizinha tava berrando com o marido. "Marcelo, seu merda! Tu é um escroto! Es-cro-to!". E logo depois barulho de vidros quebrando e outras coisas jogadas na parede. Ele, que retrucava até então, ficou pianinho. Ela deu mais uns gritos e parou.
Como sou um sujeito antenado, fui vasculhar o Facebook dela. Nada de textão. Outro dia, fui de novo. Nada. Uma semana. Nada. Nenhuma queixa ao marido. Só fotos felizes. Família, viagens e animais fofos.
Minha vizinha tá desatualizada.
terça-feira, 15 de agosto de 2017
Reunião no Bunker e Uma Sugestão de Leitura
- Bom, gente! Agradeço a presença de todos. O tema Judeus já foi superado. A partir de agora, o esquema é o seguinte: vamos conquistar a Europa. No mapa que a turma do Goebbels fez aqui dá pra ver o trajeto das tropas. Quem não se aliar conosco, será considerado...
- Desculpe interromper, Führer.
- Sim?
- O senhor ainda não disse se somos de direita ou esquerda. Esse tema está pendente há quatro encontros. Acho relevante uma definição o quanto antes.
- Hum... Verdade. Falta essa definição. Mas depois que conquistarmos a União Soviética a gente vê isso aí.
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Sugestão de leitura
Nesses tempos tristes, de neonazistas em marcha pelos EUA, essa leitura é uma boa indicação. Personagem principal de Diário da Queda, de Michel Laub, é neto de um sobrevivente de Auschwitz.
quarta-feira, 9 de agosto de 2017
Anjo e Demônio - Armando Nogueira Recorda Heleno de Freitas
Jornalista Armando Nogueira (1927 - 2010) |
Viveu em conflito com o universo do futebol, amado como um Deus, renegado como o demônio: era o espantalho dos árbitros, o gênio da bola, o desafeto das torcidas. Era, também, o galã irresistível das mocinhas de Copacabana que lhe namoravam a elegância, no traje, a rebeldia, o anel de doutor e a celebridade.
Em campo, tinha acessos de fúria, cuspia fogo nos rivais, nos próprios colegas de equipe, no juiz. Só tinha afagos pra conquistar a bola, em cuja convivência realizava sua face de anjo. Era um artista, jogando: driblava com esmero, corria em gestos perfeitos. Enriquecia o futebol com melodias corporais de raro efeito. Poucos craques na história do futebol conseguiram ou conseguirão jogar tão bem de cabeça quanto ele. Costumava dar cabeçadas homéricas.
Heleno de Freitas realizava todas as virtudes de craque com um toque de beleza. Tinha, contudo, a psicose da perfeição: o erro do homem derrotava o artista - e Heleno perdia a cabeça, perdia a razão, perdia o jogo. Transtornado, acabava expulso. Fora de campo, era um cavalheiro, apesar de ter sido sempre marcado por uma sombra de narcisismo que é, por sinal, um dos grandes abismos do ídolo.
Perturbado mentalmente, em 1953, Heleno de Freitas sumia dos estádios. A família, a muito custo, arrancou-o das arquibancadas do Botafogo, onde costumava passar as tardes, sozinho, dia de treino, com o rosto enfiado numa toalha de banho, cheirando éter. Chorava. Quem saberia dizer de quê: saudade? amor? desamor? inveja? abandono? Heleno acabou louco internado no Sanatório de Barbacena.
Dormia abraçado com a bola delirante do jogo de ontem, de hoje, de amanhã, de sempre. Quando acordava, bola murcha, Heleno tornava ao delírio. Heleno de Freitas, o craque das mais belas expressões corporais que conheci nos estádios, morreu, sem gestos, de paralisia progressiva, e descansa, hoje, no Cemitério de São João Nepomuceno, onde nasceu um dia, para jogar a própria vida num match sem intervalo entre a glória e a desgraça.
Crônica publicada no Jornal do Brasil, dia 11 de novembro de 1970.
sábado, 5 de agosto de 2017
Um Livro Que Me Deixou Zonzo - Árvores Abatidas
Sempre tive inveja de quem consegue ler em carro ou ônibus. Comigo isso é impossível. Se eu passar os olhos numa notinha de jornal, já basta pra ficar enjoado e me estragar o resto do dia. Quando não acontece coisa pior.
Demorei pra descobrir a causa. Tá certo que o SUS não ajudou. Nas vezes que estive no Pronto Socorro me deram um Plasil e tchau e benção. Só acharam o problema quando comecei a cair sozinho. Daí, um médico cravou: “Tu tem vertigem posicional crônica”.
E completou: “Tem remédio. Tem tratamento. É uma doencinha. Não te preocupa”.
O curioso é que ler no trem eu consigo. Nos oito anos que fiz a rota Porto Alegre/São Leopoldo, li muita coisa boa – também detonei um discman, mas isso é outra história. Retirava os exemplares da biblioteca da Unisinos. Nos quarenta minutos do itinerário, conheci Albert Camus (A Peste), Murilo Mendes (As metamorfoses), Katherine Mansfield (Felicidade), Campos de Carvalho (A lua vem da ásia), John Fante (A caminho de Los Angeles)... e Thomas Bernhard.
Não sei como esse autor foi parar na minha mão – desconfio que tava procurando Thomas Mann... Árvores Abatidas era o título. O enredo era simplório: um jantar. O narrador-personagem fica sentado numa cadeira, observando os preparativos para o evento e divagando. Passa a trama toda espinafrando a Áustria, Viena, os artistas, os intelectuais, os dogmas europeus, as ideologias políticas. Bernhard não poupa ninguém. Claro, nem ele próprio. A edição não tem capítulos. Texto corrido em apenas um parágrafo imenso. Um jorro só. Um queixume.
Explicando assim não parece, mas é um grande livro.
Talvez, tenha sido o ideal para um jovem indignado como eu era. Um jovem que pegava o trem das 22h20 e tinha que correr para alcançar o ônibus das 23h20 para chegar em casa antes da meia-noite.
Entretanto, a qualidade estética de Bernhard está acima de qualquer experiência de leitor. Problema é encontrá-lo em livrarias ou sebos. É raro achar exemplar desse livro à venda. Os que existem, usados, ultrapassam os R$ 200. Há outros títulos mais em conta.
Enfim, retomando o causo do início. Árvores Abatidas foi o livro que me deixou zonzo, me tirou o prumo. Escancarou uma possibilidade, uma realidade, que é a vida, que é a arte. Essa doencinha, que tem remédio, que tem tratamento. E nos preocupa tanto.
Mais sobre o autor nesse artigo de Antônio Xerxenesky -
http://blogdoims.com.br/thomas-bernhard-repeticao-e-aniquilacao-por-antonio-xerxenesky/
A imagem com a citação é do livro O sobrinho de Wittgenstein.
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