quinta-feira, 19 de junho de 2014

Consolação - Poema de O Ano dos Mortos

Consolação

Lucas Barroso

As lágrimas não formam poças nas calçadas
São os cuspes
As babas cansadas que acumulam e dão cheiro
A essa cidade invadida
E povoada por todos os lados
O reboco dos apartamentos JK
Cobre e dá textura ao retrato
Que ninguém pinta
Os velhos dizem que tudo foi nobre
Lá atrás
Os novos e viciados
Se deitam na pele cinza da praia que não existe
Mijam nos tijolos à vista
Abraçam as alças de acesso
Olham os carros parar
E não dão a mínima
A tristeza já não comove mais
Ela faz parte dos dias
E quando não fez?
Todos, incrivelmente lúcidos, sabem de sua existência
Sentem seu vazio
Preencher seus peitos inflamados por um grito que ecoa
Em alguma viela deserta
Muitos deixam de caminhar
Para admirar seus muros
Seus traços escuros
Suas veias coloridas rubricadas por Deus
As mãos dadas
Ou unidas
Dão dó
São motivo de esmola nos sinais
E no fim das contas rendem um pão com banha
 “Estamos todos sãos e salvos”
É o que dizem aqueles que brindam
Antes de tentar a sorte
Antes de se esquecer que se está sóbrio
E que tudo vai terminar no ponto final
A palavra felicidade soa pedante
Não serve de autoajuda nem para quem a cunhou
Não vale um sorriso
Um lapso muscular facial
Uma desistência...
Se todos se calassem
Poderia se ouvir
Cada saudação
Cada assombro de uma gaita de boca
De uma corda de guitarra
Deslizada com um vidro de antidepressivo no anular
Pode-se ouvir
No canto da mesa do bar
Cada dose de lágrimas
Sendo derramada para dentro
Em um gole só
Pode-se sentir
Nada para o santo
Nada
O cigarro se apaga
As brasas e as cinzas
Fazem cama para a canção
Que é de toda essa gente
Viva entre a fumaça
Que, por pouco, muito pouco
Não deu certo

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Foto: Coletivo Iscagram

O poema fará parte do meu segundo livro, O Ano dos Mortos, editora Bartlebee Livros. O lançamento deverá acontecer até a metade desse ano.

Minha estreia, acesse aqui.