quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Enquanto houver estrada

As pessoas não existem mais, mas seguem dentro da gente. É inevitável e um tanto doído. Mas é assim que é. Minha tia-avó padecia e sofria num leito, já sem esperança, quando me dei conta disso.

O médico disse assim. "Se ela faz questão de fumar, deixa. Agora, não tem mais jeito". Então, meu pai recolhia o corpo dela, repousava na cadeira de rodas e levava pro pátio do hospital. "Tá aqui ó! Fuma, tia". 

Nesse sofrimento derradeiro, a velha, já quase com oitenta anos, chamava a mãe para lhe tirar a dor. É aí que entram os ausentes. A vida tem momentos que parecem intransponíveis. E só a força de quem nos guiou no caminho é possível para nos empurrar e nos colocar de volta ao prumo. Porque enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar. Como fala a canção. 

Eu tento não depender dos ausentes. Até finjo que não me faltam tanto assim. Afinal, o mundo é dos vivos. Porém, não é fácil. A barra pesa. Dias desses, minha avó apareceu. E eu era menino outra vez. Contei meus problemas. Ela me ouviu. Ela me cobriu com uma manta fina, pois não estava tão frio assim. E eu adormeci. 

Acordei num susto. Homem feito. Noite alta. Tudo escuro a minha volta. Os problemas, obviamente, prosseguiam. Contudo, minha bebê chorava alto, forte e precisava de algo. 

Não havia avó mais. Nem manta alguma me cobria. Então, levantei-me rápido e peguei a guriazinha nos braços. E ela foi se acalmando. Até que dormiu, outra vez.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Cultura para cafonas - Ruy Castro

Meu amigo Sérgio Rodrigues protestou outro dia ("Vandalizar livros é a última moda", 24/10) contra os decoradores de ambientes que destroem livros para usá-los como objetos de adorno em casas de novos-ricos. Capas, lombadas e contracapas, pela incômoda variedade de cores, são arrancadas para que pilhas de seu miolo, convenientemente monocromático, enfeitem paredes. É uma tendência, e das mais lucrativas.

O cliente que aceita isso de seu decorador passa um atestado de cafona para si próprio. Ninguém é obrigado a gostar de livros, mas quem vê neles objetos de decoração é porque desconfia que devam conferir algum prestígio. Mas, se os livros só servirem para enfeitar uma parede, e aos pedaços, vamos todos sentar no meio-fio e chorar.

O desprezo pelo objeto cultural não se limita aos livros. Há não muito, vi num sebo de São Paulo uma pilha de vinis sem capa, mais alta do que eu. Perguntei ao empregado como fazer para procurar neles alguma coisa interessante. Respondeu-me que não eram para isso, mas para serem comprados em lotes –para servir como decoração de festas, pendurados do teto, ou derretidos para se transformar em vasos. Ao ouvir aquilo, deu-me uma sensação de perda. Talvez não houvesse ali nenhuma Nona Sinfonia, mas qualquer disco contendo música foi gravado na esperança de ser ouvido.

E não apenas livros e discos surrados são tratados como lixo. Papéis velhos têm como habitual destino a caçamba do caminhão ou o incinerador, sem que alguém fique sabendo o que havia neles de escrito ou impresso. Sua única chance de sobrevivência é quando vão parar na feira de antiguidades numa praça de nossa cidade. É daqueles maços de papéis empoeirados e comidos por ratos que costumam ressurgir os originais inéditos dos escritores.

Há dias, em Pompeia, na Itália, descobriu-se na casa de um comerciante um quadro que estava lá, abandonado, havia 50 anos. A dona da casa o achava "horrível". Era um retrato cubista da poeta Dora Maar por seu amante —Picasso—, considerado perdido. No mercado, chegará a 12 milhões de euros. O desprezo pela cultura pode custar caro.

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Ruy Castro (Folha de São Paulo. 6 de novembro de 2024)

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Uma força estranha

Tive um amigo que tinha ódio de morte do cantor Roberto Carlos. Imperialismo norte-americano. Rede Globo. Alienação. Baixa cultura. Era daí pra baixo as críticas e apontamentos ao filho ilustre de Cachoeiro do Itapemirim. 

E assim foi por anos e anos. Até que sua mamãe querida completou mais uma primavera. A grande família se reuniu. Vizinhança também. Festa surpresa. E naquele tempo, uma das maneiras de surpreender alguém era contratar um carro de mensagem para o evento.

Pois bem. O veículo apontou na esquina com suas cores e luzes espalhafatosas. O locutor declamava versinhos de cartão de aniversário e outras frases de efeito. Até que tocaram os primeiros acordes de uma música.

"E essa canção é uma homenagem dos seus filhos e netos para você...". 

O Rei entrou rasgando o ar com sua voz doce, com sua força estranha, afirmando o óbvio, o ululante, o simples, o universal e o necessário:

Eu tenho tanto pra te falar / Mas com palavras não sei dizer / Como é grande o meu amor por você

Olhei de canto de olho para meu amigo, prevendo alguma desaprovação. E ele, de fato, estava um tanto desconfortável. Mas era totalmente compreensível, afinal, não deu pra segurar a enxurrada de lágrimas. 

São tantas emoções...

Nem tudo já foi escrito

Provavelmente, tudo já tinha sido escrito quando Sérgio Bittencourt compôs Naquela Mesa. Assim ocorreu quando Nelson Gonçalves cantou seus versos. E também foi dessa forma quando eu a ouvi pela primeira vez.

"Eu não sabia que doía tanto / Uma mesa num canto, uma casa, um jardim / Se eu soubesse o quanto dói a vida / Essa dor, tão doída / Não doía assim".

Só Deus sabe o quanto me tocou fundo cada palavra. Eu sei bem, que nada mais se cria. Tudo se copia. É o que dizem. E, portanto, a criação não faz mais tanto sentido hoje. Contudo, ainda consigo sentir uma certa surpresa diante de muita coisa por aí.

Talvez, seja um dos motivos de escrever. Porque o papel aceita tudo, óbvio. Mas porque há um tanto de ingenuidade e ignorância diante do mundo. Ainda vi muito pouco. 

A versão de Naquela Mesa, que me refiro, é de um disco de 1974. Dez anos antes do meu nascimento. E se apresentou como uma novidade em algum momento de minha vida. E me fez lembrar de amores e pessoas que não voltam mais.

Esse espanto, essa saudade e esse medo do futuro puxam uma frase de alguma gaveta da memória, que leva a outra frase. Uma cadeia de sentidos se forma e tudo se torna inevitável. 

É preciso contar. Como tantos outros já contaram, eu sei. Até o ponto final.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Quando quis morrer - David Coimbra

 

Eu quis morrer. Não se trata de figura de linguagem, estou falando sério: queria não existir mais. Refiro-me a esse tempo em que passei sofrendo. Alguém me acusará de estar sendo dramático a fim de justificar para o leitor a minha ausência. Em parte é verdade, porque sei que devo explicações. Muita gente, mas muita gente mesmo, mandou e-mail e mensagens perguntando por mim, e não respondi, porque me sentia fraco demais. 

Foi exatamente essa reunião da fraqueza com as dores e com o mal-estar, todos agindo de forma permanente, que me tirou a vontade de viver. 

Agora chegamos a uma parte importante: não deixei de amar a vida. Amo viver, amo a vida e sempre amarei. Mas não estava sendo recíproco. Então, de que adianta estar vivo se não posso fazer nada do que gosto? Uma vida repleta de dor, incômodos e humilhações? Era isso que havia para mim? Não, não, preferia uma morte rápida e suave. 

Só que eu não iria resolver esse problema com minhas próprias mãos. Não podia. Seria péssimo para a vida de pessoas que amo. Mesmo que esteja ausente, você tem responsabilidades, afinal. Assim, o que resta a fazer numa situação dessas? 

Resistir. 

Gemer, chorar, desesperar-se às vezes, mas resistir. 

Não vou aborrecer o leitor detalhando todos os males por que passei. Conto apenas que houve um momento em que fechei a porta do quarto, me encolhi na cama e de lá não saí por dois dias e duas noites. Não comia, não tomava banho, não olhava o celular, não fazia nada além de dormir em posição fetal. No final da tarde do terceiro dia é que me levantei e tentei comer algo. 

Mas agora estou melhor. Cheio de traumas de guerra, todo lanhado e escalavrado, com algumas dores ainda, mas melhor. 

Um dos traumas que carrego é o medo de que tudo se repita. Nós somos prisioneiros do nosso corpo, eis a verdade. Os grandes sofrimentos, bem como os grandes prazeres, constituem uma camada extra da nossa personalidade. Estão localizados no corpo, mas afetam a mente. Ao mesmo tempo, aquele feixe de dores não me pertence, é algo separado do meu ser. Eu, neste instante, sou quem pede a Deus, a Jesus, a Nossa Senhora, a todos os santos e médicos que me tirem a dor. 

E é então que surge a solidão. A nossa imensa, incontornável solidão. Porque ninguém pode ajudá-lo. O médico já receitou o remédio e é preciso esperar algumas semanas para que funcione. Sua mulher, sua irmã e seu filho o enchem de carinhos, os amigos querem estar junto, até pessoas desconhecidas rezam por você. E você? Você se lamenta porque não há como se livrar do Mal. Não há consolo. Você está sozinho, preso em um corpo que o tortura sem cessar. 

Só que, no fim das contas, aquele movimento gigantesco das pessoas que o amam faz efeito. Meu amigo Glauco cozinha seus pratos deliciosos e eu começo a voltar a gostar de comida, e ganho força. O médico, André Fay, luta até nos finais de semana para achar o tratamento ideal. Minha mulher, a Marcinha, e minha irmã, a Silvia, cuidam tanto de mim que me sinto seguro. A Marta Gleich, diretora da RBS, e o Nelson Sirotsky contêm minha ansiedade em voltar a trabalhar e me garantem respaldo. O Rafael, do Espeto de Ouro, manda um churrasco para alegrar meu domingo, enquanto a Grace e o Edward enviam uma cesta repleta de guloseimas. O Potter leva meu filho ao show do Maroon 5, e leva com gosto, não por dever. A Kelly deixa aqui acepipes para o café da manhã e o Admar traz um vinho delicado como ele. E mais outros tantos, tantos, que seria impossível citá-los em uma página só. Então, talvez eu não estivesse tão sozinho... Fora da prisão do meu corpo, havia um exército a ajudar. 

Isso fez bem. Estou de pé, enfim. Meio esfarrapado, mas de pé. Vamos em frente de cabeça erguida. Com um leve tremor ao pensar no futuro. Mas o futuro não é coisa para se pensar. O que existe é o presente e, se o presente pode ser sorvido integralmente, a vida passa a ser boa. E ela é. A vida é boa. 

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Todo Aquele Jazz: Chet Baker

 


As canções se vingavam: ele as abandonava repetidamente, mas sempre voltava, sempre retornava a elas. Se antes tratava cada canção como lhe apetecia, só precisando sussurrar algumas frases para fazê-la chorar, agora elas nada sentiam, não eram atingidas por seu toque. Pegar o trompete o deixava sem fôlego para tocá-lo, e cada vez mais ele cantava a letra das canções, com uma voz frágil e suave como o cabelinho de um bebê. Às vezes, acariciava suas velhas canções com tamanha delicadeza que elas se lembravam do que um dia tinham sentido, da facilidade com que haviam sido enobrecidas pelos seus dedos e seu sopro – mas, sobretudo, apiedavam-se dele, ofereciam-lhe uma guarida que ele mal tinha forças para aceitar.

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Trecho do livro Todo Aquele Jazz (Companhia das Letras)

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Todo Aquele Jazz: Ben Webster


Ele carregava sua solidão consigo como se fosse o estojo do instrumento. Ela nunca o abandonava. Após apresentações, depois de conversar com fãs e, às vezes, com alguns amigos de passagem pelo lugar, depois de se refugiar num bar e ali se deixar ficar até não haver ninguém para ir embora, depois de se arrastar de volta a seu quarto, depois de tatear em busca das chaves e ouvi-las arranhar ao girar o interior da fechadura silenciosa, depois de abrir a porta e entrar no apartamento, sempre exatamente como o deixara, depois de jogar o estojo do sax no sofá  depois de tudo isso, por tardíssimo que fosse, sempre chegava o momento em que ele queria continuar a conversar, ouvir o tinido e as borbulhas de alguém passando um café ou preparando uma bebida. Voltando para o apartamento assim, ele destapava uma garrafa, tomava uns tragos e ficava de cueca e camiseta, tocando o saxofone o mais baixo que podia. Quando morava em Amsterdam, telefonava para os amigos nos Estados Unidos a qualquer hora da noite, mas agora só havia o sax, e ele o usava para tentar falar com Duke, com Bean ou outra pessoa, revezando durante uma hora ou mais entre a garrafa e o instrumento.  

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Trecho do livro Todo Aquele Jazz, de Geoff Dyer.