quinta-feira, 20 de março de 2025

Quando a sorte muda

O gerente do restaurante tava sempre de cara amarrada. Se dirigiu poucas vezes a mim de forma amistosa. Sempre profissional. Sempre no limite da polidez. Uma dia, logo na chegada ao cartão-ponto, me abordou na frente de todo mundo e mandou fazer a barba. "Garçom tem que ter a cara limpa". "Mas não tenho gilete...". "Pega uma na Panvel". Noutro, também na chegada ao ponto, mandou cortar o cabelo. "Esse teu cabelo tá começando a crescer. Corta hoje mesmo". E lá fui eu no barbeiro. Teve uma vez que o pessoal estava indeciso sobre quem deveria cobrir a ausência inesperada de um colega. Era uma decisão dura. Afinal, 14 horas de trabalho em pé não é bolinho. Aleguei que tinha aula e não seria possível. "Que tu quer com estudo? Vai ganhar dinheiro e ajudar tua família, rapaz". Era dureza. Tranquei a Unisinos. E segui no restaurante. O dinheiro vai prendendo a gente. Funcionários comentavam que faltava era uma mulher pro gerente. Ele era apaixonado pela garçonete Rita, que era casada e gostava mim. A gente, lógico, aprontava. Então, na dúvida, quem trabalhava dobrado era eu. Foi assim no domingo do dia dos pais (não dei a mínima) e no domingo do dia das mães. Aí me doeu. Minha mãe e vó eram quase tudo que tinha. Questionei o motivo. "Foi sorteio". "Mas como? Se dobrei no dia dos pais?". "Sorteios são assim. Tu deu azar. Pensa no lado bom, tu vai ganhar dobrado". Inferno! A coisa só mudou quando Rita resolveu que seguiria casada. "Chega dessa vidinha". Alegou que tinha que valorizar quem tava do lado dela de verdade. O gerente desistiu, então. Depois dessa, volta e meia, ele puxava assunto comigo. Perguntava dos meus estudos. Quando eu voltaria pra faculdade, falava do Inter e de outros assuntos. Ele, que nunca faltava, que nunca fazia nada além de trabalhar, até resolveu ir num show. "Amanhã, vou no Simply Red com uma mulher que conheci na internet". "Ah, é?! E quem vai ficar no teu lugar?". "Não quero nem saber, Lucas. Eles que se fodam e deem um jeito". As pessoas mudam. Assim como a sorte muda. Eu, enquanto segui no restaurante, nunca mais fui sorteado para dobrar.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Cinco ótimos livros desagradáveis de ler


A ilha de Sacalina - Tchekhov

Um livro-reportagem antes de existirem livros-reportagem. Escrito em 1890 de forma seca. Como alguém que "apenas" observa a rotina da ilha-presídio russa. 

Ensaio sobre a cegueira - José Saramago

Saramago conseguiu imaginar uma história distópica com a premissa da cegueira como um vírus que se espalha por todo uma cidade. Um livro apavorante do início ao fim. 

Você vai voltar pra mim - B. Kucinski

Todos os contos tem em comum personagens da ditadura militar. Kucinski passa longe da pieguice ou moralismos. Suas histórias breves são narradas com crueza.

É isto um homem? - Primo Levi

Possivelmente, o livro mais triste e dolorido da história. Levi conta seus dias (e de outros judeus que conhece) como prisioneiro de Auschwitz. 

Pssica - Edyr Augusto

Romance curto e escrito de forma frenética. Uma trama violentíssima e muito bem amarrada, onde nada que acontece é gratuito.


domingo, 9 de fevereiro de 2025

Ensaio sobre a cegueira - José Saramago (trecho)

Olhando a situação a frio, sem preconceitos nem ressentimentos que sempre obscurecem o raciocínio, havia que reconhecer que as autoridades tiveram visão quando decidiram juntar cegos com cegos, cada qual com seu igual, que é a boa regra da vizinhança, como os leprosos, não há dúvida, aquele médico lá ao fundo está no certo quando diz que nos temos de organizar, a questão, de facto, é de organização, primeiro a comida, depois a organização, ambas são indispensáveis à vida, escolher umas quantas pessoas disciplinadoras para dirigirem isto, estabelecer regras consensuadas de convivência, coisas simples, varrer, arrumar e lavar, disso nos não podemos queixar, até nos mandaram sabão, detergentes, manter a cama feita, o fundamental é não perdermos o respeito por nós próprios, evitar conflitos com os militares que cumprem com o seu dever vigiando-nos, para mortos, já temos que baste, perguntar quem é que conhece aqui histórias que queira contar ao serão, histórias, fábulas, anedotas, tanto faz, imagine-se a sorte que seria saber alguém a Bíblia de cor, repetíamos tudo desde a criação do mundo, o importante é que ouçamos uns aos outros, pena não haver um rádio, a música sempre foi uma grande distracção, e íamos acompanhando as notícias, por exemplo, se se descobrisse a cura da nossa doença, a alegria que não seria aqui.  

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Trecho de Ensaio sobre a cegueira (2ª edição, Companhia das Letras, 2017)

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Nadinha - Conto de Antonio Carlos Viana

 

Nasceu assim e assim cresceu: um nadinha. Já tinha três anos, mas parecia ter um. A avó a embalava cantando “boi da cara preta”, que para ela não tinha cara nenhuma, e nem sabia o que era boi. Com quatro anos deu os primeiros passos e já a chamavam de Nadinha. Mas seu nome mesmo era Maria Auxiliadora. Foi perto dos cinco anos que deu uma dor no pé. Chorou a noite toda. Deram a ela tudo o que foi chá. Até de bosta de galinha deram. Não adiantou. Arrumaram uma rezadeira. “Com dois te botaram, com três eu te tiro”, a mulher rezou em vão. Arranjaram ficha pro médico e ele disse que só operando. Dali a três meses operou, mas não adiantou de nada. Ninguém sabe como nem por quê, Nadinha nunca mais andou. Era só pôr o pé no chão e chorar. Queria colo da vovó a manhosa. Mais dois meses e a perna foi secando. Ficou uma maniva de macaxeira, zombavam os irmãos. Mas Nadinha continuava cada dia mais alheada do mundo, não sabia o que era maniva, muito menos macaxeira. Mais uns tempos e a outra perna foi afinando. Os pés viraram um nervo só, retorcidos que nem rabinho de porco. A mãe chorava, a vovó também, que só sabia cantar “boi da cara preta”. Nadinha, de cabeça desmongolada, olhava pra cara da avó sem ver o mundo. Bebia tudo por um canudinho de mamona enquanto os irmãos corriam com as pernas boas só pra fazer inveja. Mas Nadinha não sabia o que era inveja.

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Conto de Antonio Carlos Viana. Faz parte do livro O meio do mundo e outros contos (Companhia das Letras, 1999)

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Enquanto houver estrada

As pessoas não existem mais, mas seguem dentro da gente. É inevitável e um tanto doído. Mas é assim que é. Minha tia-avó padecia e sofria num leito, já sem esperança, quando me dei conta disso.

O médico disse assim. "Se ela faz questão de fumar, deixa. Agora, não tem mais jeito". Então, meu pai recolhia o corpo dela, repousava na cadeira de rodas e levava pro pátio do hospital. "Tá aqui ó! Fuma, tia". 

Nesse sofrimento derradeiro, a velha, já quase com oitenta anos, chamava a mãe para lhe tirar a dor. É aí que entram os ausentes. A vida tem momentos que parecem intransponíveis. E só a força de quem nos guiou no caminho é possível para nos empurrar e nos colocar de volta ao prumo. Porque enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar. Como fala a canção. 

Eu tento não depender dos ausentes. Até finjo que não me faltam tanto assim. Afinal, o mundo é dos vivos. Porém, não é fácil. A barra pesa. Dias desses, minha avó apareceu. E eu era menino outra vez. Contei meus problemas. Ela me ouviu. Ela me cobriu com uma manta fina, pois não estava tão frio assim. E eu adormeci. 

Acordei num susto. Homem feito. Noite alta. Tudo escuro a minha volta. Os problemas, obviamente, prosseguiam. Contudo, minha bebê chorava alto, forte e precisava de algo. 

Não havia avó mais. Nem manta alguma me cobria. Então, levantei-me rápido e peguei a guriazinha nos braços. E ela foi se acalmando. Até que dormiu, outra vez.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Cultura para cafonas - Ruy Castro

Meu amigo Sérgio Rodrigues protestou outro dia ("Vandalizar livros é a última moda", 24/10) contra os decoradores de ambientes que destroem livros para usá-los como objetos de adorno em casas de novos-ricos. Capas, lombadas e contracapas, pela incômoda variedade de cores, são arrancadas para que pilhas de seu miolo, convenientemente monocromático, enfeitem paredes. É uma tendência, e das mais lucrativas.

O cliente que aceita isso de seu decorador passa um atestado de cafona para si próprio. Ninguém é obrigado a gostar de livros, mas quem vê neles objetos de decoração é porque desconfia que devam conferir algum prestígio. Mas, se os livros só servirem para enfeitar uma parede, e aos pedaços, vamos todos sentar no meio-fio e chorar.

O desprezo pelo objeto cultural não se limita aos livros. Há não muito, vi num sebo de São Paulo uma pilha de vinis sem capa, mais alta do que eu. Perguntei ao empregado como fazer para procurar neles alguma coisa interessante. Respondeu-me que não eram para isso, mas para serem comprados em lotes –para servir como decoração de festas, pendurados do teto, ou derretidos para se transformar em vasos. Ao ouvir aquilo, deu-me uma sensação de perda. Talvez não houvesse ali nenhuma Nona Sinfonia, mas qualquer disco contendo música foi gravado na esperança de ser ouvido.

E não apenas livros e discos surrados são tratados como lixo. Papéis velhos têm como habitual destino a caçamba do caminhão ou o incinerador, sem que alguém fique sabendo o que havia neles de escrito ou impresso. Sua única chance de sobrevivência é quando vão parar na feira de antiguidades numa praça de nossa cidade. É daqueles maços de papéis empoeirados e comidos por ratos que costumam ressurgir os originais inéditos dos escritores.

Há dias, em Pompeia, na Itália, descobriu-se na casa de um comerciante um quadro que estava lá, abandonado, havia 50 anos. A dona da casa o achava "horrível". Era um retrato cubista da poeta Dora Maar por seu amante —Picasso—, considerado perdido. No mercado, chegará a 12 milhões de euros. O desprezo pela cultura pode custar caro.

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Ruy Castro (Folha de São Paulo. 6 de novembro de 2024)

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Uma força estranha

Tive um amigo que tinha ódio de morte do cantor Roberto Carlos. Imperialismo norte-americano. Rede Globo. Alienação. Baixa cultura. Era daí pra baixo as críticas e apontamentos ao filho ilustre de Cachoeiro do Itapemirim. 

E assim foi por anos e anos. Até que sua mamãe querida completou mais uma primavera. A grande família se reuniu. Vizinhança também. Festa surpresa. E naquele tempo, uma das maneiras de surpreender alguém era contratar um carro de mensagem para o evento.

Pois bem. O veículo apontou na esquina com suas cores e luzes espalhafatosas. O locutor declamava versinhos de cartão de aniversário e outras frases de efeito. Até que tocaram os primeiros acordes de uma música.

"E essa canção é uma homenagem dos seus filhos e netos para você...". 

O Rei entrou rasgando o ar com sua voz doce, com sua força estranha, afirmando o óbvio, o ululante, o simples, o universal e o necessário:

Eu tenho tanto pra te falar / Mas com palavras não sei dizer / Como é grande o meu amor por você

Olhei de canto de olho para meu amigo, prevendo alguma desaprovação. E ele, de fato, estava um tanto desconfortável. Mas era totalmente compreensível, afinal, não deu pra segurar a enxurrada de lágrimas. 

São tantas emoções...