Por Lucas Barroso
Se você, no ano corrente de 2025, for pesquisar o caso Dâmaris Vitória Kremer em sites de busca ou redes sociais verá o seguinte.
Presa injustamente por seis anos, jovem morre após absolvição.
Há variações dessa chamada, como algumas citações a sua doença terminal, câncer do colo do útero. O tema, em quase sua totalidade, foi tratado assim pela opinião pública. O resumo aponta que uma jovem gaúcha foi presa, sofreu no cárcere com uma doença grave e, ao ganhar a liberdade, após ser inocentada, faleceu. E, de fato, não existem erros factuais nessas reduções jornalísticas.
A cronologia dos acontecimentos aponta que, Dâmaris, com 19 anos à época, foi presa em 8 de agosto de 2019, pelo envolvimento no homicídio qualificado de Daniel Gomes Soveral (34 anos). O assassinato em questão foi cometido por Henrique Kauê Golmann (com 25 anos na ocasião), então, namorado de Dâmaris, na cidade de Salto do Jacuí.
Conforme o noticiário de repercussão em todo o país, "a defesa de Damaris sustenta que ela apenas contou a Henrique que teria sido estuprada por Daniel. Em retaliação, ele teria assassinado o homem e ateado fogo no corpo e no veículo".
Quem a defendeu foi a advogada Rebeca Canabarro, que ganhou notoriedade por, diante dos jurados, se emocionar com a história da sua cliente, ao ponto de não conter as lágrimas. Essa imagem, extraída da audiência, veio a público e contribuiu para a comoção nacional.
Dâmaris seguiu no cárcere até 18 de março de 2025, quando teve sua pena convertida em prisão domiciliar, em razão do agravamento de seu câncer. "Fiz petições manifestando que ela estava tratando câncer e precisava transitar por hospitais. Ainda, havia a oscilação do peso. Pedi remoção da tornozeleira, mas nenhum desses pedidos foi atendido. Ela foi submetida a raio-x, exames, tudo com tornozeleira", relatou a advogada.
Nesse contexto, o caso Dâmaris foi, enfim, a julgamento, no dia 13 de agosto de 2025, pela participação no assassinato de Daniel. O júri, composto por sete pessoas, absolveu-a de todas as imputações que lhe foram dirigidas na denúncia.
No dia 26 de outubro de 2025, Dâmaris Vitória Kremer morreu.
Entretanto, alguns pontos de sombra nessa trágica história passaram desapercebidos pela opinião pública. Fatos que vão além das manchetes, da morosidade do Judiciário e da precariedade do sistema penal gaúcho, onde Dâmaris padeceu. Cabe elencá-los, pois são relevantes e, em sua maioria, constam em documentos processuais do caso.
O estupro
O crime sexual, reforçado pela linha de defesa da réu, é citado no processo.
"... há claros indicativos de que os representados planejaram e executaram a morte da vítima Daniel, inclusive com apoio material de pessoas desta cidade, e que a motivação do crime seria um suposto abuso praticado pela vítima em face da acusada Damaris Vitória. Sobre o ponto, é o que se pode inferir do conteúdo das conversas entre a mesma e o representado Henrique Kauê (...) extraída dos celulares apreendidos".
Contudo, as treze testemunhas, muitas delas ligadas a Daniel, não citam essa hipótese. Afirmam que ele estava apaixonado por Dâmaris e era correspondido, abrindo mão de compromissos pessoais e familiares para estar com ela.
Daniel e Dâmaris
Conforme relatos colhidos pela polícia com as testemunhas, e corroborados pelas mesmas no âmbito da Justiça, eles se conheceram na casa noturna Class, no município de Bento Gonçalves, cidade onde residia Daniel. Dâmaris atuou como garota de programa no local.
A morte de Daniel
As informações divulgadas na ocasião do assassinato, via imprensa regional, foram as seguintes.
"De acordo com a Polícia Civil e o Instituto Geral de Perícias (IGP), o corpo de Soveral estava parcialmente queimado e ao lado de um veículo Fiat Siena, placas de Bento. O corpo foi localizado na noite de sexta-feira, 30 de novembro, por volta das 19h30min, em uma estrada de chão. De acordo com testemunhas, no dia do crime, um veículo passou em alta velocidade pela RST-481. Dentro do automóvel havia quatro pessoas. Na cidade, o veículo teria estacionado em um bar e logo após retornado para o local onde o corpo foi encontrado. Soveral foi alvejado com um tiro de arma de fogo na cabeça".
O processo judicial, calcado na investigação da polícia, indiciou Henrique, Dâmaris e uma terceira pessoa, Wellington Pereira Viana, de alcunha Mamute, por homicídio qualificado.
Delator
Para que a Justiça chegasse a essa conclusão foi fundamental a delação de Kase Jhones, que era uma das quatro pessoas vistas, por testemunhas e câmeras de vídeo, no interior do veículo Siena. Além dele, estavam no carro Daniel (condutor), Dâmaris e Henrique.
Segundo o policial civil que atuou na investigação do crime, informações anônimas chegaram ao seu conhecimento dando conta de que Dâmaris e Kase estariam em Salto do Jacuí, no bairro Cruzeiro, mais especificamente junto a bocas de fumo existentes no local.
Dâmaris não quis prestar informações acerca do fato, sustentando informalmente aos policiais que, caso contasse sobre o ocorrido, sabia exatamente o que aconteceria consigo.
Já Kase Jhones contou tudo, inclusive com detalhes, confirmando Henrique como o executor do homicídio de Daniel Gomes Soveral.
Assim relatou Kase Jhones.
"Todos estavam no veículo por determinação de Mamute e Peixotinho, os quais seriam integrantes da facção Os Manos. Mencionou também que o indivíduo de nome Kauê usava o seu telefone para manter contato com Mamute e Peixotinho, a fim de receber orientações de como proceder. Destacou ainda que Damaris possuía um relacionamento com Daniel e provavelmente era utilizada como isca para a prática delitiva. No mais, destacou, em resumo, que quem matou Daniel com um disparo de arma de fogo foi Kauê, sendo que, posteriormente, Damaris ateou fogo no veículo, e que tudo foi feito por determinação de Mamute e Peixotinho".
Peixotinho (Alex Guedes dos Santos) não foi indiciado. Welligton, o Mamute, chegou a ser levado ao presídio de Santa Cruz do Sul, mas foi solto. Posteriormente, o júri que inocentou Dâmaris também o absolveu.
Segunda vítima
Kase Johnes foi morto dias após o depoimento, também na cidade de Salto do Jacuí. Seu corpo foi encontrado, no dia 17 de dezembro de 2018, boiando no Rio Jacuí.
O noticiário divulgou dessa forma.
"Segundo o delegado Rafael do Santos, responsável pela DP local, Kase havia sido detido no município de Salto do Jacuí pela Polícia Civil, suspeito de estar envolvido na morte de Daniel Gomes Soveral, morto no dia 30 de novembro na estrada que dá acesso ao Monumento dos Navegantes, onde teve o carro incendiado e o corpo parcialmente queimado.
Ele e uma mulher foram detidos na Rua General Câmara, bairro Cruzeiro, no dia 3 de dezembro, três dia após a morte de Daniel, levados a delegacia. Kase teria indicado no seu depoimento o autor da morte de Daniel.
Como o judiciário não homologou o pedido de prisão temporária, ele e a companheira tiveram que ser liberados pela Polícia Civil. O IML não confirmou até o momento a causa da morte. A Polícia investiga a morte e a possível ligação entre os crimes".
Consta nos autos que, após a morte de Kase Jhones, Henrique e Dâmaris foram para Cruz Alta, onde o primeiro foi preso em flagrante por crime de roubo a estabelecimento comercial, retornando ao sistema carcerário, de onde encontrava-se foragido.
Dâmaris e Henrique
Não há informações nos documentos sobre como, onde e quando se conheceram e até que momento durou o relacionamento entre eles.
Condenação por tráfico
Dâmaris foi condenada, em 2024, em outro processo, por tráfico de drogas e associação criminosa. A sentença foi parcialmente mantida pelo Tribunal de Justiça do RS em 2025, resultando em pena de 1 ano e 8 meses de reclusão, substituída por penas restritivas de direitos.
Trecho da sentença.
"No dia 20 de julho de 2019, por volta das 00h15min, na Rua Andre Edite Eidelwein, s/n°, Bairro Imigrante, em Estrela/RS, os denunciados Itamar de Sena da Silva e Dâmaris Vitória Kremer, em comunhão de esforços e conjunção de vontades, guardavam, para fins de traficância, farelos de maconha, pesando 10g (dez gramas), 12 (doze) tijolinhos de maconha, pesando 25g (vinte e cinco gramas), e 05 (cinco) buchinhas de crack, pesando 0,8g (zero vírgula oito gramas), substâncias entorpecentes que determinam dependência física e psíquica, sem autorização e em desacordo com determinação legal e regulamentar, além de R$ 196,00 (cento e noventa e seis reais) em notas diversas, R$ 10,80 (dez reais e oitenta centavos) em moedas diversas e 01 (um) aparelho celular, marca Motorola, com a tela trincada, conforme positivam o Auto de Apreensão".
Esse fato resultou na prisão de Dâmaris, que estava foragida após o assassinato de Daniel.
Redes sociais
Dâmaris e Daniel interagiram em seus perfis no Facebook. Entre os dias 8 e 27 de novembro de 2018, Dâmaris curtiu onze publicações de Daniel e comentou em uma delas (dia 8 de novembro), elogiando a foto de um prato elaborado por ele.
A última publicação do perfil de Daniel ocorreu em 27 de novembro de 2018, dias antes de sua morte. Uma foto sua, em frente à Escola do Hospital Pompeia, em Caxias do Sul, com a mensagem.
"Quanto maior o pensamento, maiores serão as possibilidades de sucesso. Nunca foi sorte, sempre foi Deus".
Já Dâmaris tinha dois perfis no Facebook (Viktoria Kremer e Viktoria Kremer - Toia) e dois perfis no Instagram (kremer_uber_alles e kremer_2016).
Outro que possui perfis no Facebook é Henrique Kauê Golmann. Foram localizados sete, ao todo. Com nomes de Rique Golmann ou Kaue Golmann. Um deles é nomeado Kaue Vitoria Golmann e tem como foto principal, publicada em 18 de janeiro de 2019, Henrique e Dâmaris abraçados em frente a uma casa.
Em seu perfil com mais seguidores, 1,2 mil, Rique Golmann publicou a seguinte frase, no dia 25 de novembro de 2018.
"Não mexa com quem eu amo. Deus perdoa, eu não".
Dois dias depois, ele publicou uma foto da personagem Arlequina. Sem nenhum texto. Dâmaris tinha uma tatuagem sob o olho, assim como a Arlequina.
No dia 19 de setembro de 2025, Dâmaris registrou em seu Instagram (kremer_2016), um vídeo extraindo a tatuagem citada.
O assassino não fala
Dos quatro presentes no fatídico dia 30 de novembro de 2018, o único que ainda está vivo é Henrique Kauê Golmann, que optou pelo silêncio durante todo o processo. Atualmente, ele cumpre pena no presídio de Venâncio Aires.
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Fonte de pesquisa
https://www.gaz.com.br/corpo-encontrado-em-rio-em-salto-do-jacui/
https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-rs/759474618/inteiro-teor-759474626
Demais documentos acessados
- Íntegra do processo 161/2.19.0000325-8
- Denúncia do Ministério Público
- Sentença
- Sentença do júri
- Ata de audiência
