quinta-feira, 31 de julho de 2025

Divagações sobre um poema

Eu lembrei desse poema. Mas não lembrei dos versos. Lembrei da feitura dele. E dele como algo bonito que fiz (mesmo sem recordar os versos). Me ficou na cabeça sua criação. Sua maquinação. Porque o escrevi em uma praça, num final de semana. Essa praça fica ao lado de um lar de idosos. Na frente do lar de idosos (ou seja, no outro lado da rua) tem uma creche. E eu me apercebi disso quando estava nessa pracinha. Com meu filho, que brincava na areia, que brincava no escorregador, que brincava no balanço... O lugar fica muito próximo a casa de Erico Verissimo, onde hoje mora seu filho também ilustre, Luiz Fernando Verissimo. O nome da praça é Mafalda Verissimo por essa razão. E eu escrevi o poema na cabeça primeiro. Com essa perplexidade me latejando. Como pode? Uma criança, quem sabe um dia, vai atravessar essa rua. Fui maquinando esse destino possível. Esse atravessar de rua que é uma vida inteira. Esse atravessar de rua inevitável, porque a velhice é o futuro. Quando cheguei na minha casa, as palavras escorriam pelos dedos. Uma a uma. Ágeis. E iam se enfileirando, aos trancos, sem pedir licença. Chegou um ponto que elas tomaram tento e se organizaram meio que sozinhas, como uma comunidade. Foi engraçado. Nessa hora, achei melhor deixá-las. Abandoná-las. E assim foi. Mesmo que elas acabem em um livro (como foi o caso), não há mais o que fazer com elas, pensei. Porque as palavras também atravessam a rua. E vão parar nesse mesmo asilo. Às vezes, alguém pode lembrar delas. E visitá-las. Mas nem sempre isso acontece.

A vida é assim mesmo.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Erico Verissimo sobre o ato de escrever


Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a idéia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, trazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.

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Erico Verissimo, em Solo de Clarineta, Vol. 1.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Um relógio analógico pode mudar sua vida


Vivemos a era da ansiedade. As dores do mundo estão relacionadas ao excesso de informações e estímulos a que estamos submetidos. Tudo é smart e tudo está o tempo todo nos conectando. O interruptor não desliga. E isso tem ou terá um preço logo ali na frente.

É nesse contexto, que um acessório pode ajudar a tirar o peso dos dias. Um relógio analógico pode mudar sua vida. E pra melhor.

Ver as horas no celular ou smartwatch nunca é só ver as horas. É um convite a acessar outros aplicativos e funcionalidades, que nos levam a outros e outros e outros. 

O relógio pode acabar com esse ciclo de distrações e colocar o tempo, que é tão valioso para ser gasto à toa, no seu devido lugar. 

Sem contar que esse "adorno" no pulso é muito mais que uma mera jóia ou produto de moda. São peças carregadas de história, peculiaridades e curiosidades. 

Nos últimos anos, há um certo modismo em torno da relojoaria - ou horologia, como dizem os mais entendidos. Se será passageiro ou não, não se sabe. Mas tem muito mais gente falando e se interessando sobre o assunto.

Então, é um bom momento para ser um pouco mais analógico, mais offline, em um mundo cada vez mais online e digital. 

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Estrela Distante - Roberto Bolaño (trecho)

 


O menino se chamava Lorenzo, creio, não tenho certeza, e esqueci o sobrenome, mas outros o lembrarão, e gostava de brincar de subir em árvores e nos postes de alta-tensão. Um dia ele subiu num desses postes e recebeu um choque tão forte que perdeu os dois braços. Tiveram de amputá-los quase na altura dos ombros. Assim, Lorenzo cresceu no Chile e sem braços, o que por si só já o deixava numa situação bastante desvantajosa, mas ainda por cima ele cresceu no Chile de Pinochet, o que transformava qualquer situação desvantajosa em desesperadora. Mas isso ainda não era tudo, pois ele logo descobriu que era homossexual, o que transformava a situação desesperadora em inconcebível e inenarrável.  

Com todas essas condicionantes, não era de estranhar que Lorenzo virasse artista. (Que mais poderia ser?) Mas é difícil ser artista no Terceiro Mundo quando se é pobre, sem braços e ainda por cima veado. Por isso, Lorenzo se dedicou, durante algum tempo, a outras coisas. Estudava e aprendia. Cantava nas ruas. E se apaixonava, pois era um romântico incurável. Suas desilusões (para não falar nas humilhações, dos desprezos, das ofensas) foram terríveis, e um dia – dia riscado com pedra – decidiu se suicidar. Numa tarde de verão especialmente triste, quando o sol se escondia no oceano Pacífico, Lorenzo saltou para o mar de uma rocha usada exclusivamente por suicidas (coisa que existe em qualquer trecho do litoral chileno que se preze). Afundou como uma pedra, com os olhos abertos, e viu a água ficando cada vez mais escura e as borbulhas que saíam da sua boca e depois, com um movimento de pernas involuntário, voltou à tona. As ondas não permitiram que visse a praia, tão somente as rochas e à distância o mastro de algumas embarcações de passeio ou de pesca. Depois voltou a afundar. Nesse momento também não fechou os olhos: moveu a cabeça com calma (calma de um anestesiado) e buscou com os olhos alguma coisa, qualquer que fosse, mas que fosse bela, para retê-la no momento final. Mas o negror vendava qualquer objeto que pudesse descer junto com seu corpo até as profundezas, e ele nada viu. Então, sua vida, como se costuma dizer, desfilou diante de seus olhos como num filme. Alguns trechos eram em preto e branco e outros em cores. O amor de sua pobre mãe, o orgulho de sua pobre mãe, a exaustão de sua pobre mãe ao abraçá-lo à noite, quando tudo nos vilarejos pobres do Chile parecia estar por um fio (em branco e preto), os tremores, as noites que urinava na cama, os hospitais, os olhares, o zoológico de olhares (em cores), os amigos que compartilham o pouco que têm, a música que nos consola, a maconha, a beleza revelada em locais inverossímeis (em branco e preto), o amor perfeito e breve como um soneto de Góngora, a certeza fatal (mas cheia de raiva dentro da fatalidade) de que só se vive uma vez. Tomado de uma súbita coragem, decidiu que não ia morrer. Conta-se que disse é agora ou nunca, e voltou à superfície. A subida lhe parecia interminável, manter-se à tona, quase insuportável, mas conseguiu. Naquela tarde, ele aprendeu a nadar sem braços, como uma enguia ou uma serpente. Matar-se, disse, nessa conjuntura sociopolítica, é absurdo e redundante. Melhor se tornar um poeta secreto.   

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Trecho de Estrela Distante, romance de Roberto Bolaño (Folha de São Paulo, 2012).

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Quando a menina dorme



Mostro para minha filha a Lua desperta

Balbucio uma canção de ninar

Construo cada versinho

Como quem ergue um prédio alto

Para protegê-la da próxima inundação

Ela não dorme

Ela sorri e me mira os olhos

Que são seus

Aos poucos, ela desiste

E a Lua vai embora

Mas ainda está lá

Como uma música que foi feita para durar

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Extinção


Antes de existir algo

Existia a Natureza

Que assistiu aos dinossauros

E sua derrocada

A Natureza viu o primeiro homem

Presenciou suas descobertas

E todas as guerras que ele criou

Os meninos orfãos

Que caminharam por Sua terra arrasada

Hoje estão reunidos

Para construir muralhas

E sistemas de proteção

____Contra as águas

____Contra o Sol

____Contra o vento

____Contra o fogo

Eles não sabem

Mas também estão sendo observados pela Natureza

Com indiferença


quinta-feira, 10 de julho de 2025

A morte em proparoxítonas - Ruy Castro

"Ouve meu cântico, quase sem ritmo/ Que a voz de um tísico, magro, esquelético/ Poesia ética em forma esdrúxula/ Feita sem métrica com rima rápida.// Amei Angélica, mulher anêmica/ De cores pálidas e gestos tímidos/ Era maligna e tinha ímpetos/ De fazer cócegas no meu esôfago.// Em noite frigida, fomos ao Lírico/ Ouvir o músico, pianista célebre/ Soprava o zéfiro, ventinho úmido/ Então Angélica ficou asmática.// Fomos ao médico de muita clínica/ Com muita prática e preço módico/ Depois do inquérito descobre o clínico/ O mal atávico, mal sifilítico.

"Mandou-me célere comprar noz vômica/ E ácido cítrico para o seu fígado/ O farmacêutico, mocinho estúpido/ Errou na fórmula, fez despropósito.// Não tendo escrúpulo, deu-me sem rótulo/ Ácido fênico e ácido prússico./ Corri mui lépido mais de um quilômetro/ Num bonde elétrico de força múltipla.// O dia cálido deixou-me tépido/ Achei Angélica já toda trêmula/ A terapêutica dose alopática/ Lhe dei em xícara de ferro ágate.// Tomou num fôlego, triste e bucólica/ Essa estrambótica droga fatídica/ Caiu no esôfago, deixou-a lívida/ Dando-lhe cólica e morte trágica.

"O pai de Angélica, chefe do tráfego/ Homem carnívoro, ficou perplexo./ Por ser estrábico, usava óculos/ Um vidro côncavo, e o outro convexo.// Morreu Angélica, de um modo lúgubre/ Moléstia crônica levou-a ao túmulo/ Foi feita a autópsia, todos os médicos/ Foram unânimes no diagnóstico.// Fiz-lhe um sarcófago assaz artístico/ Todo de mármore da cor do ébano/ E sobre o túmulo uma estatística/ Coisa metódica como "Os Lusíadas".// E, numa lápide paralelepípedo/ Pus esse dístico, terno e simbólico:/ ‘Cá jaz Angélica, moça hiperbólica/ Beleza helênica, morreu de cólica.’"

O que é isso? Uma modinha, "O drama da Angélica", de certos Barreto e Lubiti, gravada em 1942 pela famosa dupla sertaneja Alvarenga e Ranchinho. A letra, toda em proparoxítonas, é uma obra-prima. O vídeo está no YouTube —não perca.

Sim, a sofrência das duplas sertanejas brasileiras já foi assim.

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Crônica de Ruy Castro, publicada na Folha de São Paulo, em 5/5/2025

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Drama de Angélica (Alvarenga/M.G.Barreto)


terça-feira, 1 de julho de 2025

Anti ajuda

Não acredite em você

Não curta a vida

Porque a vida não é curta

Tudo é por acaso

E o Sol não brilha para todos


Você não é mais forte 

Do que imagina

Nenhum lugar-comum

Te ensina


Se você pode sonhar

Não pode realizar

Não seja feliz

Nem seja foda


Saia da frente

Não dê o primeiro passo

Tudo pode te deter

E o sucesso não quer te reconhecer


Sempre é tarde

Sempre é tarde

Sempre é tarde