III
Instalou-se no assento do corredor — 32 — no 707 com destino a Roma. O avião não chegava a estar lotado e havia um assento vago entre ele e a ocupante do assento da janela. Viu com satisfação que se tratava de uma mulher extremamente bonita — ela não era jovem, mas ele também não. Estava usando perfume, um vestido escuro e joias, e parecia pertencer àquela parte do mundo onde ele se movia com mais naturalidade. “Boa noite”, ele disse, acomodando-se. Ela não respondeu. Soltou um grunhido desencorajador e abriu um livro de bolso diante do rosto. Ele tentou conferir o título, mas ela o cobriu com a mão. Não era a primeira vez que ele encontrava uma mulher tímida num avião — não era comum, mas já acontecera.
Imaginava que elas tinham aprendido a cultivar uma cautela compreensível contra bêbados, conquistadores e chatos. Sacou seu exemplar do The Manchester Guardian. Havia notado que os jornais conservadores às vezes inspiravam um pouco de segurança às tímidas. Quando lia os editoriais, a página de esportes e, principalmente, a seção de economia, às vezes uma tímida desconhecida se mostrava disposta a uma conversa. O avião decolou, o aviso de proibido fumar foi desligado e ele pegou uma cigarreira dourada e um isqueiro dourado. Não eram chamativos, mas eram dourados.
“Se importa se eu fumar?”, perguntou. “Por que me importaria?”, ela respondeu. Ela não olhou na sua direção. “Algumas pessoas se importam”, ele disse, acendendo o cigarro. Ela era quase tão bonita quanto hostil, mas por que precisava ser tão fria? Ficariam lado a lado durante nove horas e era mais que sensato dispor-se a um mínimo de conversa. Será que ele a fazia lembrar de alguém desagradável, alguém que a magoara? Estava de banho tomado, barbeado, corretamente vestido e acostumado a fazer amizades. Ela podia ser uma mulher infeliz que não aturava o mundo, mas, quando a aeromoça veio oferecer uma bebida, o sorriso que abriu para a jovem desconhecida foi ofuscante e generoso. Isso o animou a tal ponto que ele próprio sorriu, mas, quando ela percebeu que ele tinha se intrometido numa comunicação direcionada a outrem, voltou-se para ele, fez uma cara feia e retornou ao seu livro. A aeromoça trouxe um martíni duplo para ele e um xerez para a sua vizinha. Ocorreu-lhe que a bebida forte poderia agravar ainda mais o desconforto dela, mas era um risco a correr. Ela continuou lendo. Se ao menos pudesse descobrir qual era o título do livro, pensou, conseguiria dar o primeiro passo. Harold Robbins, Dostoiévski, Philip Roth, Emily Dickinson — qualquer coisa ajudaria. “Posso perguntar o que está lendo?”, perguntou educadamente. “Não”, ela disse.
Quando a aeromoça trouxe os jantares, ele passou a bandeja dela por cima do assento vazio. Ela não agradeceu. Ele se acomodou para comer, para se alimentar, para desfrutar esse hábito simples. A comida estava atipicamente ruim e ele enunciou essa opinião. “Não se pode exigir demais nessas circunstâncias”, ela disse. Ele pensou ter ouvido um traço de cordialidade na sua voz. “Talvez o sal ajude”, ela disse, “mas não me deram sal nenhum. Se incomoda de me dar o seu?” “Oh, com certeza”, ele disse. As coisas estavam definitivamente melhorando. Ele abriu o pacotinho de sal e, ao estendê-lo na direção dela, deixou cair um pouco no carpete. “Sinto dizer que a má sorte será toda sua”, ela disse. Não havia humor nenhum no tom da frase. Ela salgou o pedaço de carne e comeu tudo que veio na bandeja. Depois continuou lendo o livro com o título escondido. Ele sabia que cedo ou tarde ela precisaria ir ao banheiro, e então ele teria a oportunidade de checar o título do livro, mas, quando chegou a hora, ela levou o livro junto ao toalete.
A tela do filme foi baixada. A não ser quando o filme era excepcionalmente interessante, ele nunca alugava o equipamento de áudio. Descobrira que a leitura labial e o jogo de adivinhação acrescentavam uma dimensão ao filme, e de qualquer modo os diálogos costumavam ser ofensivamente banais. Sua vizinha alugou o equipamento e deu sinais de estar se divertindo para valer. Tinha uma risada melodiosa e encantadora e interagia com os atores na tela da mesma maneira que havia interagido com a aeromoça e da mesma maneira que se recusava a interagir com seu companheiro de assento. O sol nasceu quando estavam se aproximando dos Alpes, embora o filme ainda não tivesse acabado. Aqui e ali, o brilho da manhã alpina podia ser visto por entre as fendas da cortina fechada, mas, enquanto eles navegavam no ar sobre o Mont Blanc e o Matterhorn, os personagens na tela continuavam seguindo o roteiro. Houve um desfile, uma perseguição, uma reconciliação e um final. Sua companheira, de novo carregando o livro misterioso, retirou-se mais uma vez para o toalete e voltou com uma espécie de touca de dormir na cabeça e o rosto coberto por uma grossa camada de unguento branco. Arrumou o travesseiro e o cobertor e se preparou para dormir. “Bons sonhos”, ele ousou dizer. Ela suspirou.
Nunca dormia em aviões. Foi à cozinha e pediu um uísque. A aeromoça era bonita e conversadora e falou sobre suas origens, sua escala de trabalho, seu noivo e seus problemas com passageiros que tinham medo de voar. Passando dos Alpes, começaram a descer e ele espiou o Mediterrâneo pela janelinha e pediu outro uísque. Avistou Elba, Giglio e os iates na enseada de Porto Ercole, onde era possível enxergar as villas de seus amigos. Lembrava-se da sua chegada a Nantucket, tantos anos antes. As pessoas costumavam se alinhar na amurada e gritar: “Oh, os Perry estão aqui, e os Salton e os Greenough”. Era parte verdadeiro, parte exibição. Quando ele voltou ao seu assento, a companheira tinha removido a touca e o unguento. Na luz matinal, sua beleza era intensa. Ele não conseguia diagnosticar o que tanto o cativava — uma nostalgia, talvez —, mas os traços dela, a alvura da pele, a posição dos olhos, tudo correspondia ao seu ideal de beleza. “Bom dia”, ele disse, “dormiu bem?” Ela fechou a cara, parecendo achar a pergunta impertinente. “E alguém dorme?”, perguntou elevando o tom. Colocou o livro misterioso dentro de uma bolsa com zíper e juntou suas coisas. Quando pousaram em Fiumicino, ele cedeu a passagem e a seguiu pelo corredor. Passou logo atrás dela no guichê de passaporte, na imigração e no posto sanitário e depois a encontrou no lugar onde se pega a bagagem.
Mas olha só, olha só. Por que ele aponta a mala dela ao carregador e por que, quando já estão ambos de posse de suas bagagens, ele a segue até o ponto de táxi e pechincha com o motorista o preço da corrida até Roma? Por que ele entra com ela no táxi? Ele é o conquistador obstinado que ela tanto abomina? Não, não. Ele é o marido dela, ela é a sua esposa, a mãe de seus filhos, uma mulher que ele venera com paixão há quase trinta anos.
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O texto faz parte do livro 28 Contos de John Cheever (Companhia das Letras) e tem a tradução de Daniel Galera.