segunda-feira, 13 de maio de 2024

Carta de Steve Albini para o Nirvana

 

Steve Albini. 22 de julho de 1962 – 7 de maio de 2024

Kurt, Dave e Chris:

Primeiro, deixe-me pedir desculpas por levar alguns dias para mandar essa proposta. Quando falei com Kurt, estava no meio da gravação de um disco do Fugazi, mas achei que teria um ou dois dias entre os discos para resolver tudo. Minha agenda mudou inesperadamente e este é o primeiro momento que tive depois de passar por tudo isso. Desculpe.

Acho que a melhor coisa que vocês poderiam fazer neste momento é exatamente o que estão falando: martelar um disco em poucos dias, com alta qualidade e “produção” mínima e sem interferência dos manés do escritório. Se isso que vocês realmente querem fazer, adoraria estar envolvido.

Se, em vez disso, vocês se encontrarem em uma posição de ser temporariamente favorecido pela gravadora, só para vê-la puxar a corrente em algum momento (incomodando você para retrabalhar músicas/sequências/produção, chamando pessoas contratadas para “adoçar” seu disco, entregar tudo para algum frila de remix, tanto faz…) então isso será uma chatice e não quero participar disso.

Só estou interessado em trabalhar em discos que reflitam legitimamente a própria percepção da banda sobre sua música e existência. Se vocês se comprometerem com isso como um princípio da metodologia de gravação, então eu vou me esforçar por vocês. Vou trabalhar em círculos ao seu redor. Vou bater na sua cabeça com uma catraca…

Trabalhei em centenas de discos (alguns ótimos, alguns bons, alguns horríveis, muitos na média) e vejo uma correlação direta entre a qualidade do resultado final e o humor da banda durante o processo. Se o disco leva muito tempo e todos ficam chateados e examinam cada passo, então as gravações têm pouca semelhança com a banda ao vivo, e o resultado final raramente é lisonjeiro. Fazer discos punk é definitivamente um caso em que mais “trabalho” não implica um melhor resultado final. É evidente que vocês mesmos aprenderam isso e apreciam a lógica.

Sobre minha metodologia e filosofia:

1) A maioria dos engenheiros e produtores contemporâneos vêem um disco como um “projeto”, e a banda como apenas um elemento deste projeto. Além disso, eles consideram as gravações como o controle de camadas de sons específicos, cada um dos quais está sob controle completo desde o momento em que a nota é concebida até a mix final. Se a banda for pressionada no processo de gravação de um disco, que assim seja; desde que o “projeto” tenha a aprovação do sujeito no controle.

Minha abordagem é exatamente o oposto.

Considero a banda o mais importante, a entidade criativa que gerou sua personalidade e estilo e como uma entidade social que existe 24 horas por dia. Não considero que seja minha função dizer-lhe o que fazer ou como tocar. Estou bastante disposto a deixar minhas opiniões serem ouvidas (se eu acho que a banda está fazendo um belo progresso ou um grande erro, considero parte do meu trabalho contar a eles), mas se a banda decidir explorar algo, farei com que isso seja feito.

Gosto de deixar espaço para acidentes ou caos. Fazer um disco perfeito, em que cada nota e sílaba esteja no lugar e cada bumbo seja idêntico, não é nenhum truque. Qualquer idiota com paciência e orçamento para permitir tal tolice pode fazê-lo. Prefiro trabalhar em discos que aspirem a coisas maiores, como originalidade, personalidade e entusiasmo. Se cada elemento da música e da dinâmica de uma banda for controlado por clicktracks, computadores, mixagens automatizadas, gates, samplers e sequenciadores, então o disco pode não ser incompetente, mas certamente não será excepcional. Também terá muito pouca relação com a banda ao vivo, que é o motivo de tudo isso.

2) Não considero gravação e mixagem tarefas não relacionadas que podem ser realizadas por especialistas sem envolvimento contínuo. 99% do som de um disco deve ser estabelecido enquanto o take básico é gravado. Suas experiências são específicas de seus discos, mas para mim remixar nunca resolveu nenhum problema que realmente existisse, apenas problemas imaginários. Não gosto de remixar gravações de outros engenheiros e não gosto de gravar coisas para outra pessoa remixar. Nunca fiquei satisfeito com nenhuma das versões dessa metodologia. Remixar é para covardes sem talento que não sabem afinar uma bateria ou posicionar um microfone.

3) Eu não tenho um evangelho fixo de sons e técnicas de gravação que eu aplico cegamente a todas as bandas em todas as situações. Vocês são uma banda diferente de qualquer outra banda e merecem pelo menos o respeito de ter seus próprios gostos e preocupações abordados. Por exemplo, adoro o som forte de uma bateria (digamos, uma Gretach ou Camco) aberta em uma sala grande, especialmente com um bumbo Bonhammy de duas cabeças e uma caixa realmente doída. Eu também adoro os graves indutores de vômito que saem de um antigo amplificador de guitarra Fender Bassman ou Ampeg e o som totalmente estourado de um SVT com válvulas quebradas. Também sei que esses sons são inapropriados para algumas músicas e tentar forçá-los é uma perda de tempo. Basear as gravações no meu gosto é tão estúpido quanto projetar um carro em torno do estofado. Vocês precisam decidir e depois articular para mim como querem soar, para que não cheguemos ao disco de direções diferentes.

4) Onde gravamos o disco não é tão importante quanto como ele é gravado. Se você tem um estúdio que gostaria de usar, sem crise. Caso contrário, posso fazer sugestões. Eu tenho um ótimo estúdio de 24 canais em minha casa (Fugazi esteve lá, você pode perguntar o que acharam), e estou familiarizado com a maioria dos estúdios no Centro-Oeste, na Costa Leste e uma dúzia ou mais em o Reino Unido.

Eu ficaria um pouco preocupado em ter vocês em minha casa durante todo o processo de gravação e mixagem, mesmo porque vocês são celebridades, e eu não gostaria que a notícia se espalhasse pela vizinhança e vocês tivessem que aturar isso. muita besteira de fãs; seria um ótimo lugar para mixar o disco, e a comida é ótima.

Se vocês quiserem deixar os detalhes da seleção do estúdio, hospedagem, etc. comigo, ficarei muito feliz em resolver tudo. Se vocês quiserem resolver isso, é só dizer.

Minha primeira escolha para um estúdio de gravação externo seria um lugar chamado Pachyderm em Cannon Falls, Minnesota. É uma ótima instalação com excelente acústica e uma mansão dos sonhos que qualquer arquiteto acharia confortável, onde a banda pode morar durante as gravações. Isso torna tudo mais eficiente. Como todos estão lá, as coisas são feitas e as decisões são tomadas muito mais rapidamente do que se as pessoas estivessem em algum lugar da cidade. Há também todas as coisas finas como sauna e piscina e lareiras e riacho de trutas e duzentos mil metros quadrados e por aí vai. Já gravei vários discos lá e sempre gostei do lugar. Também é bem barato, ainda pelo seu tamanho.

A única desvantagem do Pachyderm é que os proprietários e o gerente não são técnicos e não têm um técnico de plantão. Já trabalhei lá o suficiente para poder consertar praticamente qualquer coisa que possa dar errado, exceto um sério colapso eletrônico, mas tenho um cara com quem trabalho muito (Bob Weston) que é muito bom em eletrônica (design de circuitos, resolver problemas e construir as coisas na hora), então se decidirmos fazer isso lá, ele provavelmente estará na minha folha de pagamento, já que seria um seguro barato se uma fonte de alimentação explodir ou ocorrer uma falha grave no no auge do inverno, a 80 quilômetros da loja de eletrônicos mais próxima. Ele também é engenheiro de gravação, então pode fazer algumas das coisas mais mundanas (catalogar fitas, empacotar coisas, buscar suprimentos) enquanto fazemos o disco propriamente dito.

Algum dia vou convencer o Jesus Lizard a ir até lá e nos divertiremos de verdade. Ah, sim, e é o mesmo console Neve em que o álbum Back in Black do AC/DC foi gravado e mixado, então você sabe que tem o rock.

5) Grana. Expliquei isso a Kurt, mas achei melhor reiterar aqui. Eu não quero e não aceitarei royalties sobre nenhum disco que eu gravar. Sem conversa. Ponto final. Acho que pagar royalties a um produtor ou engenheiro é eticamente indefensável. A banda escreve as músicas. A banda toca a música. São os fãs da banda que compram os discos. A banda é responsável por ser um ótimo disco ou um disco horrível. Os royalties pertencem à banda.

Gostaria de ser pago como um encanador: eu faço o trabalho e você me paga o que vale. A gravadora espera que eu peça um ponto percentual ou um ponto e meio. Se falarmos em três milhões de vendas, isso equivale a cerca de 400.000 dólares. De jeito nenhum eu aceitaria tanto dinheiro. Eu não conseguiria dormir.

Tenho que me sentir confortável com a quantidade de dinheiro que você me paga, mas o dinheiro é seu, e insisto que você também se sinta confortável com ele. Kurt sugeriu que me pagasse uma parte que eu consideraria pagamento integral, e então, se você realmente achasse que eu merecia mais, me pagasse outra parte depois de ter tido a chance de conviver com o álbum por um tempo. Isso seria bom, mas provavelmente teriam mais problemas organizacionais do que valem a pena.

Tanto faz. Confio que vocês serão justos comigo e sei que devem estar familiarizados com o que um capanga normal da indústria cobraria. Vou deixar você tomar a decisão final sobre quanto receberei. O quanto você decidir me pagar não afetará meu entusiasmo pelo disco.

Algumas pessoas na minha posição esperariam um aumento nos negócios depois de se associarem à sua banda. Eu, no entanto, já tenho mais trabalho do que posso dar conta e, francamente, o tipo de pessoas que essas superficialidades atrairão não são pessoas com quem eu queira trabalhar. Por favor, não considere isso um problema.

É isso.

Por favor, ligue-me para discutir isso se não estiver claro.

(Assinado)

Se um disco leva mais de uma semana para ser feito, alguém está estragando tudo. Ei!”

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Carta traduzida pelo jornalista Alexandre Matias, no Vida Fodona. 

sábado, 11 de maio de 2024

Como funciona o amor na prática

Foto: Maurício Tonetto


Era 6 de maio de 2024. Eu sei da data porque, há 20 anos, nos conhecemos. Dias antes, escrevi na minha agenda: comprar flores para Marília. A ideia era fazer algo bem piegas e banal. Mandar um buquê para seu trabalho. Escrever algo. Dizer que a amava.
 
Porém, não comprei flores, nem mandei ninguém entregar nada, tampouco escrevi carta ou bilhete. Porque estávamos em casa, com nossos filhos e a cidade sofria a pior catástrofe de sua história. Foi questão de dias. Porto Alegre estava inundada. E onde não estava debaixo d’água, faltava luz ou água. E esse era o nosso caso.  

Os abrigos lotados. As estradas lotadas. O país inteiro preocupado. Pegamos as crianças, já impacientes, fizemos as malas às pressas e fomos para outro estado.   

Era madrugada, não era mais dia 6 de maio. Os pequenos dormiam no banco de trás. Não entendiam o que se passava. O carro percorria uma estrada simples, de sentido único. Quase desértica. Era tudo muito triste.   

Não tínhamos muito o que conversar. Entretanto, perguntei se ela lembrou que até bem pouco tinha sido 6 de maio. Ela disse que sim.  

Esperei que ela complementasse. Mas ela não falou mais nada. Talvez, também pensou que eu teria algo a mencionar. Mas o fato é que não tínhamos o que dizer. Não naquela hora.

terça-feira, 2 de abril de 2024

Uma carta de Tchekhov


O pintor Levitan está passando uns dias no meu sítio. Ontem, ao entardecer, eu e ele fomos à zona da caça às galinholas. Levitan disparou e uma ave, ferida na asa, caiu num charco. Eu a levantei. Tinha um bico comprido, olhos grandes e pretos e uma plumagem bonita. Olhava para nós, espantada. O que podíamos fazer? Levitan franziu a testa, fechou os olhos e me suplicou, com voz trêmula: "Por favor, esmague a cabeça dela com a coronha da espingarda". Respondi que não era capaz. Os ombros dele não paravam de sacudir, estava nervoso, contraía o rosto e suplicava. A galinhola olhava para mim, espantada. Tive de obedecer a Levitan e matá-la. E, enquanto dois imbecis voltavam para casa e sentavam-se para jantar, havia uma criatura fascinante a menos no mundo.

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Trecho de uma carta de Tchekhov, escrita em 1892. A situação vivida serviu de inspiração para a peça A Gaivota.


quarta-feira, 13 de março de 2024

Ninguém escreve ao coronel - Trecho


 

Ela engolia a canjica. Momentos depois notou, porém, que o marido permanecia ausente. 


- Agora, o que você deve fazer é aproveitar a canjica. 

- Está realmente boa - falou o Coronel. - De onde saiu?

- Do galo - respondeu ela. - Os rapazes trouxeram tanto milho que ele emprestou um pouquinho pra gente. A vida é assim.

- Se é - suspirou o marido. - A vida é a melhor coisa que já se inventou.

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Trecho de Ninguém Escreve ao Coronel, romance de Gabriel Garcia Márquez.


sexta-feira, 8 de março de 2024

A velha máquina de lavar


A máquina de lavar aqui de casa resiste há quase quarenta anos. Não desiste de trabalhar. Lavou roupas de quatro gerações. Avós, pais, filhos e, agora, os netos. Os avós não existem mais e se existissem seriam bisavós. Todas as modas e costumes do vestuário nacional – que vem e vão –passaram por essa Brastemp branca. Um sem número de consertos foram realizados nela. E pelo mesmo técnico: o senhor Baltazar. Um velho seco, bronzeado, rígido, de fala mansa e sorriso tímido.  

- E agora, vale a pena consertar essa geringonça, seu Baltazar?

- Vale, sim. Isso é coisa que não se faz mais. Muito melhor que as máquinas de lavar atuais.

E assim vamos indo. Dessa vez, a máquina não se entregou por muito pouco. O problema foi no cesto. E outro cesto para repor seria muito difícil de achar. A cada lavagem pequenos pedaços de plásticos se esfarelavam junto as roupas. Porém, como sempre, teve conserto. 

- Eu acho que essa máquina ainda vai lavar as roupas de meus netos, seu Baltazar – comentei com ele, enquanto o velho reinstalava tudo pela enésima vez. 

- É bem possível. 

- E acho que vai ser o senhor que vai consertá-la.  

Ele sorriu.  

- Acho que já vou ter ido me embora. Pra tudo tem conserto, né? Menos pra morte.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Pensar Duas Vezes


Diz a máxima que um diplomata é um sujeito que pensa duas vezes antes de dizer nada. Foi exatamente o que não fez Lula quando, durante um compromisso na Etiópia, resolveu dar um sermão em Israel, alegando que as ações israelenses na Faixa de Gaza são comparadas ao holocausto perpetrado por Hitler contra o povo judeu. Lula disse assim. “O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existe nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus”. 

Até então nenhum líder mundial tinha tido a ideia de usar o holocausto como sinônimo de nada relativo à guerra entre Israel e Hamas. Ainda mais contra os próprios judeus – estima-se que foram mais de seis milhões de mortos por Hitler. Uma comparação agressiva e desnecessária, ainda mais para quem preside o G20 – grupo que reúne as maiores economias do mundo – e lidera um país que está há milhares de quilômetros do conflito.  

Outro ponto que deixa o cenário mais absurdo é que Lula, ao vencer a última eleição presidencial, jurou que mudaria a imagem do Brasil no exterior, após o desastre que foi Bolsonaro nesse quesito. Inclusive, o slogan do atual governo é união e reconstrução. Indicativos que, no caso de Israel x Hamas, reforçar a importância de um cessar fogo, sem acusações a nenhum lado, seria um bom caminho retórico. 

Mas Lula sabe, sim, usar a diplomacia. No mesmo compromisso citado, o presidente brasileiro foi questionado sobre mais dois casos internacionais relevantes. Um deles foi a expulsão de agentes do escritório de Direitos Humanos da ONU na Venezuela, país vizinho. Outro tema foi a morte misteriosa de mais um opositor ao governo russo, de Vladimir Putin. Para ambos, Lula não tinha informações, sinônimos, adjetivos ou comparações.  

Ou seja, pensou duas vezes.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Algumas Boas Leituras Possíveis


Fiz uma lista breve com dicas de leitura para uma revista literária, que optou por não publicar meu texto. Faz parte.

Mas como gostei do que sugeri, publico por aqui. São livros de contos, romance, poesia, quadrinhos, biografia e jornalismo. 


A Vida Como Ela É – Nelson Rodrigues

Em uma série de entrevista culturais que fiz, em um certo momento da minha vida jornalística, conversei com algumas personalidades da Cultura, como músicos, escritores, cineastas. Durante o papo, perguntava sobre as ideologias políticas deles, essas coisas de ser de direita ou de esquerda. Quando o entrevistado se dizia de esquerda, eu tascava na sequência “e quem da direita você admira ou respeita?”. Quase todos diziam Nelson Rodrigues. 

Eu sei que indicar a leitura de um autor onipresente no imaginário brasileiro é reforçar o obvio ululante – termo cunhado pelo próprio Nelson. Porém, A Vida Como Ela É tem muita força. Seus contos e personagens ultrapassaram o lugar-comum de serem o retrato de sua época. Eles ainda residem nos subúrbios, nas altas rodas da sociedade ou nas páginas policiais. Basta ler – ou reler – com atenção. 

Dora Bruder – Patrick Modiano

Patrick Modiano inicia Dora Bruder, romance publicado em 1997, a partir de um anúncio, que descobriu folheando um jornal antigo, o Paris-Soir, do dia 31 de dezembro de 1941.

"Procura-se jovem, Dora Bruder, 15 anos, 1,55cm, rosto oval, olhos marrom-acinzentados, casacão cinza, suéter bordô, saia e chapéu azul-marinho, sapatos marrons. Qualquer informação dirigir-se ao Sr. e à Sra. Bruder, bulevar Ornano, 41, Paris".

A partir dessas informações, Modiano tenta recontar os passos de Dora, uma francesa filha de judeus. A narrativa, não linear, é construída com base em pistas, suspeitas, alguns dados oficiais e lembranças do período de ocupação nazista na França – tema recorrente nas obras do autor. A própria trajetória de Modiano, que viveu esse período na mesma região da personagem, serve como auxílio para tentar entender o que aconteceu a ela.

O romance reconstitui um tempo nebuloso de nossa história, onde vidas eram relegadas ao esquecimento, por pura tirana e intolerância. Entretanto, Modiano não aponta para os culpados, ele apenas se faz presente - de mãos dadas a Dora. Seu objetivo é não nos deixar esquecer a barbárie.

Morda meu coração na esquina: Poesia reunida – Roberto Piva

Roberto Piva não foi um poeta fácil - em todos os sentidos que a palavra compreende. Dono de uma poesia declamada, esbravejada, suja e lírica, ele dizia que só acreditava em poeta experimental, que tenha tido uma vida experimental. Um autor que estava fora de catálogo há anos e, ao mesmo tempo, era muito admirado, lido e copiado – poetas de redes sociais tem aos montes, fingindo ter a sua verve. 

Alguns arriscam que Piva foi um autor à frente de seu tempo, o que é uma bobagem – recorrente quando se fala de escritores do seu calibre. Entretanto, é inegável que seus versos falam desse mundo de hoje, tão virtual, frio, disperso, urbano e decadente. 

Bob e Harv: Dois Anti-Herois Americanos – Harvey Pekar e Robert Crumb

Quando um desajustado encontra outro desajustado a tendência é não dar boa coisa. Mas em Bob e Harv: Dois Anti-Herois Americanos a coisa funcionou muito bem. O consagrado Crumb soube captar as intenções e o próprio espírito de Pekar – um cronista de meia-idade, solitário e ranzinza.

O livro compila alguns dos quadrinhos publicados pela dupla em American Splendor, revista onde Crumb foi um dos tantos desenhistas colaboradores de Pekar. As histórias são sempre banais e giram em torno de uma cidade sem importância – Cleveland – e de um personagem cheio de manias – no caso, o próprio Pekar. 

Não parece uma leitura promissora, afinal, é só a vida acontecendo. Mas é como bem disse Laerte: “quando você já está lá dentro, conhecendo os amigos dele, achando graça nas esquisitices dele, como se fosse uma visita real naquele mundo”.

Dez! Nota dez! Eu sou Carlos Imperial – Denilson Monteiro

Não é uma tarefa simples resumir quem foi e o que fez Carlos Imperial. O trabalho do biógrafo Denilson Monteiro, portanto, foi uma missão árdua. Imperial lançou diversos cantores, como Roberto Carlos, Wilson Simonal e Tim Maia. Ele também compôs – há controvérsias – músicas de sucesso, foi jurado de programa auditório na televisão, cineasta e agitador do meio cultural nos anos 60, 70 e 80. Ah, Imperial foi pai de 11 filhos de sete mulheres diferentes.

Um anti-heroi e marqueteiro em estado puro. Alguém que jogou sujo com muita gente – Mário Gomes que o diga! Tudo isso está nessa biografia, nada chapa branca, assinada por Monteiro. Um texto ágil, bem construído e que também serviu como base para um ótimo documentário. 

O Gosto da Guerra – José Hamilton Ribeiro

José Hamilton Ribeiro, então jornalista da revista Realidade, foi escalado para cobrir a guerra do Vietnã, em 1968. Enquanto acompanhava soldados americanos no norte do país asiático, Ribeiro pisou em uma mina e perdeu a perna esquerda. Seu relato da guerra é cru, sem rodeios e não toma partido. Inclusive, em relação ao seu drama. Uma reportagem que virou o maior livro de jornalismo do país. A foto do trecho descrito abaixo ilustra a capa do livro.

"Ele foi na frente, seguindo o mesmo caminho usado pelos enfermeiros. E eu fui atrás dele. Nem bem dei uns cinco passos quando o estrondo de uma explosão povoou inteiramente meus ouvidos. Um zumbido agudo e interminável brotava na minha cabeça. Uma nuvem negra de fumaça fez desaparecer tudo à roda e eu tive a impressão, nítida, de que a bomba explodira exatamente em cima do soldado Henry. Quando a fumaça se dissipou um pouco e eu ainda não via Henry, imaginei que ele tivesse sido projetado para longe e a essa hora já devia até estar morto. Ele apareceu na minha frente de repente, com o rosto transformado numa máscara de horror. - Henry, você está bem? Ele não respondeu e continuou caminhando em minha direção. Senti-me sentado e não descobri por quê. Entrevi Shimamoto, saindo da fumaça, e ainda lhe perguntei: - Shima, você está ok? Ele trazia um cigarro aceso e tentou colocá-lo na minha boca. Não aceitei. Sentia na boca um gosto ruim, como se tivesse engolido um punhado de terra, pólvora e sangue - Hoje eu sei, era o gosto da guerra. Cuspia, cuspia, mas aquela gosma amarga permanecia na boca. Então senti um repuxão violento na perna esquerda e só aí tive consciência de que a coisa era comigo".